JOÃO BATISTA ERICEIRA
Presidente da Amad, Membro da Academia Ludovicense de Letras, Coordenador do Núcleo de Ciência Política do CECGP, Presidente da Academia Maranhense de Letras Jurídicas e Diretor da Escola Superior de Advocacia - ESA/OAB-MA
A reforma ou revisão constitucional, a reforma política, a eleitoral, são temas preferenciais da mídia nos últimos meses. Quem não está afeito a esses assuntos pode imaginar que sejam novos na pauta dos políticos e da imprensa. Há quase cem anos, na campanha presidencial de 1919, Ruy Barbosa deles tratava com impressionante visão do futuro. Seu nome é sempre lembrado quando eclodem ou se agudizam as crises institucionais, como agora o fazemos. O patrono dos advogados brasileiros foi um dos principais ideólogos da Primeira República, dividiu e pelejou com os positivistas acerca de questões que ainda hoje desafiam o patriotismo e o talento de nossos homens públicos. As eleições presidenciais na Primeira República se faziam pelas indicações dos chefões do Congresso, ancorados no acordo “café com leite”, sob o comando dos governadores de São Paulo e Minas Gerais. A simples indicação pelos mandões era a garantia da eleição. Em 1919, eles indicaram o paraibano Epitácio Pessoa, chefe da Delegação brasileira a Conferência de Versalhes, em Paris. Tratava-se de manobra de fim duplo: aparentar pela eleição de “tertius” que se fugia ao rodízio Minas e São Paulo, continuado em seguida. Mas, sobretudo garantir que não se fizesse a desejada reforma da Constituição republicana de 1891.
Ruy, autor do texto da primeira Carta republicana, como de seu feitio, irresignou-se, lançou- se candidato à Presidência da República, com o apoio de apenas dois estados, Rio de Janeiro e Pará. Venceu em todas as capitais, à exceção do Amazonas e da Paraíba. Adotou a reforma constitucional como a principal bandeira de sua campanha. Proferiu conferências em Minas Gerais, Bahia, São Paulo e Rio de Janeiro. Neste último Estado pronunciou no Teatro Lírico, no dia 20 de março de 1919, a célebre oração “A Questão Social e Política no Brasil”. O texto vem sendo republicado ao longo dos anos. Um deles pela LTR Editora, em 1981, com comentários do advogado Evaristo de Moraes Filho, agora sob exame.
Dividia o tempo entre a banca de advocacia e os apelos irresistíveis pela vida pública. A esse respeito, em “Discursos Parlamentares”, presta inequívoco depoimento:
política é e será sempre a inimiga da minha prosperidade profissional. A minha banca de advogado seria um tesouro, se eu lhe pudesse consagrar exclusivamente o meu espírito e o meu tempo, repartidos, até hoje, com as exigências dessa rival intolerante. Mas, se o trabalho não fosse, como infelizmente creio que há de ser até ao termo de meus dias, o instrumento de minha subsistência, não é aos áridos labores forenses que eu consagraria a minha vida. A minha vocação reclamava um ideal mais alto: o das letras, o da arte, ou o da ciência desinteressada. Os que me conhecerem a natureza, hão de reconhecer que, com os meus instintos e os meus gostos, não pode ser voluntária a minha absorção no comércio dos autos. A atividade político-partidária era encarada pelo patrono da advocacia como um serviço desinteressado prestado à pátria. O que diria se pudesse ver o panorama da vida pública brasileira? Jejuna de ideias e propostas, repleta por inteiro de interesses negociais privados.
O Brasil vive crise institucional sem precedentes, guarda semelhança em alguns aspectos com aquela enfrentada na segunda década do século passado. O Parlamento desacreditado, o Poder Executivo sem apoio da sociedade, o Poder Judiciário submetido a interesses partidários. Uma voz se levantou naquele deserto de falta de patriotismo e de obsessão pela manutenção pura e simples do poder, a de Ruy Barbosa. Candidatou-se para defender a reforma constitucional da Carta de 1891, pelo seu alheamento a questão da representatividade da sociedade e aos problemas sociais que se agravaram no pós-Primeira Guerra Mundial. Ele sabia, a única forma de manter a Constituição era alterá-la para atender ao clamor das ruas. O Parlamento mantinha-se surdo aos gritos das ruas, enquanto os quarteis se manifestavam em revoltas como as de 22 e 24, até chegar a 1930, quando depuseram o presidente constitucional, Washington Luís, e revogaram a Carta de 1891. Ruy tinha a seu favor, a autoridade de autor do texto básico da Constituição de 1891, além de seu magistério cívico que ajudara a construir as pilastras democráticas do Parlamento, do Judiciário e da Imprensa. Não obstante o prestígio e a força moral, não foi ouvido pelos donos do poder, que pensavam em mantê-lo a todo custo, mas terminaram por contribuir para a derrocada das instituições.
Em 1926, tentaram um arremedo de reforma. Por meio de Emenda Constitucional, regularam os casos e condições para a efetivação de intervenção federal nos Estados, objetivavam limitar ou remediar os abusos cometidos pela União nessa matéria. Ao mesmo tempo estendiam à Justiça dos Estados as garantias asseguradas à magistratura federal, e restringiam o Habeas-Corpus aos casos de prisão ou constrangimento ilegal na liberdade de locomoção. Como se vê, introduziram alterações tópicas, não enfrentaram as questões essenciais da representação política da sociedade e as reivindicações trabalhistas, previdenciárias, e sociais, todas afligindo a população nos dias seguintes ao término da Primeira Grande Guerra Mundial. Sobre aquele contexto, Evaristo de Moraes Filho, na introdução da publicação da Conferência do Teatro Lírico, reporta-se às circunstâncias da época:
Perante a Associação Comercial (8 de março), volta Ruy a distinguir entre revolução (reforma) e dissolução. As sociedades que não despertam a tempo e não providenciam as reformas indispensáveis, dissolvem-se na anarquia, com a perda dos frutos acumulados pela civilização. Refere-se nominalmente ao bolchevismo russo. Na conferência do dia 20, não esconde, essa sua preocupação permanente. Declara que não adula os operários, pois é amigo deles e pretende dizer-lhes a verdade. Convida-os a escolher entre qualidade e a quantidade, entre Bélgica e a Rússia, que “ruiu, juncando hoje o solo dos seus destroços, combatentes uns com os outros, sob o domínio da miséria, da fome, da anarquia”.
Preconiza a democracia social não abrigada pela Constituição de 1891. Ao tempo em que manifesta profundo descontentamento com a desfiguração do presidencialismo, como forma de governo, conforme reportou Paulo Brossard, no Ciclo de Conferências sobre Reforma Constitucional, promovido pela Fundação Casa de Ruy Barbosa, em 1985, verbis:
Revisionista histórico da Constituição de que foi insigne colaborador, quando candidato à presidência da República equacionou o problema para dizer que a natureza democrática das nossas instituições nada perderia com a substituição do governo presidencial pelo governo de gabinete. E que do confronto que entre ambos se fizesse as formas parlamentares levariam a melhor; porque mais vale, no governo, a instabilidade que a irritabilidade.
Deixando de lado a compatibilidade do governo parlamentar com o Estado Federal, observou que lhe parecia imprudente encetar “o primeiro ensaio de reforma constitucional” com uma proposta contra a qual “as exigências da ortodoxia republicana são até agora irredutíveis”, embora salientasse que “em breves anos se venha a impor a sua discussão”. O Governo Hermes haveria de fornecer suficientes ocorrências que mereceram a condenação de Ruy. A título de exemplo, destaco esta passagem:
Onde o governo se realiza pelo sistema parlamentar, o jogo das mudanças ministeriais, dos votos de confiança, dos apelos à nação, mediante a dissolução das câmaras, constitui uma garantia, já contra os excessos do Poder Executivo, já contra as demasias das maiorias parlamentares. Mas, neste regímen, onde para o Chefe do Estado não existe responsabilidade, porque a responsabilidade criada sob a forma de impeachment é absolutamente fictícia, irrealizável, mentirosa, e onde as maiorias parlamentares são manejadas por um sistema de eleição que as converte num meio de perpetuar o poder às oligarquias estabelecidas, o regímen presidencial criou o mais chinês, o mais turco, o mais russo, o mais asiático, o mais africano de todos os regímens.
No momento em que se subverte a discussão a respeito das reformas política e eleitoral, convém ficar claro: a primeira antecede a segunda, para decidir temas como o tamanho do Estado, as suas funções; o pacto federativo incluindo o sistema tributário; e a forma de governo, se parlamentarista ou presidencialista.
São muitas as voltas que o mundo dá. Quem nos anos sessenta e setenta do século passado poderia imaginar que a Rússia interferiria nas eleições presidenciais dos Estados Unidos. O pleito que elegeu o atual presidente, Donald Trump, vem sendo investigado para apurar em que medida Vladimir Putin, o dirigente russo, concorreu para a vitória do dignitário norte-americano, utilizando-se dos recursos do sistema da rede mundial de computadores. A palavra sistema no Brasil, nos anos autoritários, significava o complexo militar-empresarial que governava o país. Os presidentes da República eram escolhidos após consulta aos quartéis e submetidos a homologação do Congresso Nacional.
O Parlamento, formalmente aberto, estava submetido aos atos institucionais e a legislação que criara artificialmente o bipartidarismo. Eram dois partidos, a Arena, do governo, e o MDB, da oposição consentida. Em 1974, mesmo com os limites impostos, a oposição ganhou as eleições proporcionais e majoritárias para o Senado, na maioria dos estados, ensejando que o sistema criasse a figura do senador biônico. Para aparentar que a fonte era boa e democrática, diziam que a inspiração era o modelo da França. Assim, de casuísmo em casuísmo chegou-se a 1985, em que esgotadas as possibilidades econômicas e políticas do regime instalado em 1964, pactuou-se a eleição de Tancredo Neves indiretamente pelo Colégio Eleitoral, formado pelo mesmo Congresso, eleito sob as condições impostas pelo sistema.
Falava-se que o presidente Castelo Branco, o primeiro do ciclo inaugurado em 1964, poderia ter promovido a reforma política, almejada pela sociedade, antes da deposição de João Goulart, em razão dos desvios e abusos praticados pela designada classe política. Castelo não dispunha de hegemonia no meio militar e no político, faltando-lhe as condições para implementá-la. Durante os vinte anos de regime autoritário, permaneceu hibernando a mesma legislação, o Código Eleitoral de 1965, e sobretudo, o desejo do sistema em manter-se no poder.
O pacto da eleição de Tancredo no Colégio Eleitoral previa a convocação da Assembleia Nacional Constituinte, que promulgou em 5 de outubro de 1988, a Constituição em vigor. Durante seus quase trinta anos de vigência não se cuidou de fazer a mais importante das reformas, a política, garantindo a representação e presença da sociedade nos atos de governo. A atual Constituição, elaborada em clima amplamente favorável a forma de governo parlamentarista, inspirava-se nos modelos das constituições social-democratas da Europa, especialmente a de Portugal. Tudo caminhava para a sua aprovação, quando se discutiu a duração do mandato presidencial. Criou-se então o impasse, adotou-se a forma de governo presidencialista. Vários institutos do parlamentarismo permaneceram no texto constitucional, incluindo as medidas provisórias. A Constituição de 88 tem parcialmente corpo presidencialista em alma parlamentarista. Por força de emenda, em 21 de abril de 1993, realizou-se plebiscito para escolha da forma de Estado e de governo. Os cidadãos escolheram a República e o presidencialismo. Agora, em decorrência da vasta crise que assola o país, volta-se a falar do parlamentarismo, como panaceia para todos os problemas políticos. As panaceias são discutíveis em quaisquer circunstancias. Mas abrindo o livro da história recente, em 1961, na crise provocada pela renúncia de Jânio Quadros e o impasse da posse de João Goulart, vetado pelos ministros militares, adotou-se o parlamentarismo.
A solução de ocasião comprovou-se válida. O Gabinete chefiado pelo Primeiro-Ministro Tancredo Neves administrou e aprovou leis da maior importância para o futuro do país. Mas o remendo revelou-se falho em outros aspectos, especialmente na questão partidária. A eficiência do regime parlamentar pressupõe, para bem funcionar, a existência de organizações partidárias sólidas, considerando que se estabelece a governança a partir do Parlamento. Alguns analistas precipitados argumentam que no presente presidencialismo de coalização, na prática, vem se processando a forma parlamentarista de governar. Trata-se de presidencialismo de coalização deformado, em que a negociação se procede em torno de emendas fisiológicas, às de cargos e de permanência em cargos. Quando a negociação verdadeira deve acontecer em torno de pontos do programa de governo. Defensores do parlamentarismo invocam o passado, sustentam que no Império, período de estabilidade política, o regime era parlamentar. Mas na vigência da Constituição imperial de 1824, o que predominava era o Poder Moderador do Imperador. O regime parlamentar é o mais democrático e moderno, mas para tanto, requer a existência de partidos políticos sólidos e programáticos. Que venha o parlamentarismo, mas não o de ocasião. E sim, o de convicção, submetendo-o a plebiscito na próxima eleição.
A adoção do governo parlamentar, tal como outras decisões sobre o modelo de Estado desejado pela sociedade brasileira, não se poderá fazer casuisticamente, e em função de apetites partidários ocasionais. As reformas deverão ser submetidas ao crivo da sociedade brasileira, por meio de consulta plebiscitária a efetuar-se juntamente com as eleições de 2018. O caminho é, pois, a Reforma Constitucional. Faz-se necessário distinguir a revisão da Reforma Constitucional, nesta há a alteração material no texto da Constituição, decorrente do poder constituinte residual deferido originariamente pelo legislador, enquanto na revisão “lato sensu”, dá-se a mutação do critério de interpretação do texto constitucional face a alteração das circunstâncias políticas e sociais. A pregação de Ruy incluía a necessidade da Reforma através de emendas e a revisão atualizadora dos critérios interpretativos. A sua voz ecoou no deserto. Não foi ouvido por gregos e troianos. Na célebre Conferência do Teatro Lírico, deixou o testamento de sua vultosa contribuição para a vida pública nacional, com impressionante antevisão do futuro ao falar dos Direitos Humanos e da Democracia Social, verbis:
A concepção individualista dos Direitos Humanos tem evoluído rapidamente, com os tremendos sucessos deste século, para uma transformação incomensurável nas noções jurídicas do individualismo, restringidas agora por uma extensão, cada vez maior, dos direitos sociais. Já se não vê na sociedade um mero agregado, uma justaposição de unidades individuais, acasteladas cada qual no seu direito intratável, mas a entidade naturalmente orgânica, em que a esfera do indivíduo tem por limites inevitáveis, de todos os lados, a (* *) coletividade. O direito vai cedendo à moral, o indivíduo à associação, o egoísmo à solidariedade humana. Estou, senhores, com a democracia social. Mas a minha democracia social é a que preconizava o cardeal Mercier, falando aos operários de Malines, essa democracia ampla, serena, leal, e, numa palavra, cristã: a democracia que quer assentar a felicidade da classe obreira, não nas ruínas das outras classes, mas na reparação dos agravos, que ela, até agora, tem curtido.
A XXIII Conferência Nacional da Advocacia é local apropriado para propor a realização de ampla reforma constitucional, o que agora faço, para colocar a política a serviço da sociedade, como sustentava o nosso patrono Ruy Barbosa.
REFERÊNCIAS CONSULTADAS
- BARBOSA, Ruy. A questão social e política no Brasil. Conferência pronunciada no Teatro Lírico, do Rio de Janeiro, a 20 de março de 1919. Pref. de Evaristo de Moraes Filho. Ed. Anotada. São Paulo, LTr – Rio de Janeiro, Fundação Casa de Ruy Barbosa, 1983.
- ______________. Discursos Parlamentares. Rio de Janeiro, Fundação Casa de Ruy Barbosa, 1985. XXI, 130p. (Obras Completas de Ruy Barbosa, v.23, t.5, 1986).
- ______________. Papéis Avulsos. Nº 5, Fundação Casa de Ruy Barbosa, 1987.
- FERREIRA, Waldemar Martins. História do Direito Constitucional Brasileiro; prefácio de Ronaldo Rebello de Britto Poletti. – Ed. fac-similar – Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2003. XX +388 p. – (Coleção história constitucional brasileira).
- MAXIMILIANO, Carlos. Comentários à Constituição Brasileira de 1981; prefácio de Eros Roberto Grau. – Ed. fac-similar – Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2005. XIV + 930 p. – (Coleção história constitucional brasileira; 7).10