“No pronunciamento em que rompeu com o Presidente Bolsonaro, seu antigo aliado, o Governador de Goiás citou uma passagem de Barack Obama: “Na vida e na política, a ignorância não é uma virtude”. Esse pequeno extrato “viralizou” e tem circulado bastante nas redes sociais…”
CÁSSIO CASAGRANDE – Doutor em Ciência Política
Trata-se de um discurso de formatura que o político do Illinois proferiu em 15 de maio de 2016, na Rutgers University, localizada no Estado de New Jersey – portanto, no último ano de seu mandato – e que é considerado por muitos como um dos mais brilhantes que o ex-presidente produziu ao longo de seus oito anos à frente da Casa Branca.
O discurso ocorreu no final do seu mandato e já durante a campanha eleitoral que opôs Hillary Clinton a Donald Trump. Assim, o ex-presidente aproveitou a ocasião para, além de dar valiosos conselhos aos graduandos, fazer um balanço de sua gestão e advertir sobre os perigos do populismo, que se anunciava com a então excêntrica candidatura do Partido Republicano.
Mas, afinal, qual a conexão entre o discurso de Obama de 2016 e a realidade do Brasil de 2020, que fez políticos de direita e esquerda recomendarem suas palavras?
O ponto central de sua fala foi uma crítica ao antiintelectualismo, ao “achismo”, à inexperiência como suposta virtude na vida pública, à rejeição ao debate franco, ao arrivismo pretensioso, à desqualificação da ciência, do conhecimento acumulado e da academia. Um ataque, enfim, ao que de pior há em políticos populistas. Vamos ao trecho que vem sendo replicado aqui no Brasil:
“Fatos, evidência, razão, lógica, uma compreensão da ciência – tudo isso são coisas boas. Essas são as qualidades que você quer nas pessoas que fazem políticas públicas. Essas são qualidades que você quer para continuar a cultivar em si próprios como cidadãos. Isso deveria parecer óbvio. (….)
Tradicionalmente sempre valorizamos essas coisas. Mas se você estiver ouvindo o debate político de hoje, poderia se perguntar de onde veio essa onda de antiintelectualismo. Então, alunos da Turma de 2016, permitam-me ser tão claro quanto possível. Na política e na vida, a ignorância não é uma virtude. Não é bacana não saber do que você está falando. Isso não é “ser autêntico” ou “dizer o que eu penso”. Isto não é “desafiar o politicamente correto”. É apenas não saber do que você está falando. E sim, nos tornamos confusos sobre isso.
Vejam, nossos Fundadores – Franklin, Madison, Hamilton, Jefferson – eram filhos do Iluminismo. Eles procuraram fugir da superstição, do sectarismo, do tribalismo e do niilismo. Eles acreditavam no pensamento racional e na experimentação, bem como na capacidade de cidadãos bem informados para decidir nossos próprios destinos. Isso está incutido em nosso design constitucional. Esse espírito informou nossos inventores e exploradores, os Edisons e os Irmãos Wright, os George Washington Carvers e os Grace Hoppers, os Norman Borlays e os Steve Jobses. É o que construiu esse país.”
Ao referir-se aos Founding Fathers para debater a relação entre política e verdade, Obama apenas reiterou, sob outras formas, o que era talvez a preocupação central dos grandes patriarcas que criaram a Constituição da Filadélfia: a necessidade de equilibrar Democracia e República, isto é, compatibilizar ao mesmo tempo o governo da maioria com princípios universais de bom governo (“verdades evidentes por si mesmas”, na linguagem da Declaração de Independência de Jefferson).
Ou seja, toda a base do constitucionalismo norte-americano repousa na ideia de que há verdades fundamentais que não podem ser contestadas pela maioria, e essa ideia em si, para além da filosofia constitucional, é também a receita da política democrática no mundo liberal, que estabelece mecanismos de contenção (checks and balances) e responsabilidade (accountability) para conter eventuais excessos irracionais do governo da maioria.
Desde que a democracia foi posta em prática após as revoluções liberais, grandes pensadores, seguindo as preocupações de Hamilton, Madison e Jay nos “Artigos Federalistas”, desenvolveram teorias para advertir e lembrar que a democracia poderia muito facilmente descambar para a tirania da maioria se populistas apelassem apenas às vontades populares, desprezando os princípios racionais de governo e, claro, ninguém melhor o fez no século XIX do que Alexis de Tocqueville em “A Democracia na América” (1861).
A preocupação com a ascensão do populismo cresceu à medida que as franquias eleitorais foram sendo dilatadas ao longo dos séculos XIX e XX e, evidentemente, se por um lado esse fato foi extremamente auspicioso e positivo por alargar a participação de pobres e excluídos no processo democrático, por outro suscitou legítimas preocupações pela inclusão do “homem-massa” (Ortega y Gasset, 1930) no processo político, cuja opinião, na sociedade industrial, mostrou-se perigosamente manipulável por políticos que apelam aos instintos (nacionalismo, patriotismo, racismo, xenofobia) e não à razão, fenômeno que foi constituinte do nazifascismo.
Nos Estados Unidos, os perigos do populismo na sociedade democrática foram antevistos pelo grande escritor H.L. Mencken. Embora muitas vezes denunciado como “demófobo” (tal como ocorreu com Tocqueville), o “Sábio de Baltimore” percebeu como ninguém que a democracia, mesmo nos EUA, repousa sempre num equilíbrio precário entre verdade e mistificação. Em “Notes on Democracy”, Mencken resumiu perfeitamente o real perigo da política democrática: “manter o populacho alarmado (e em decorrência disso, clamoroso por ser levado à segurança pelo líder), ameaçando-o com uma série interminável de fantasmas, todos imaginários”.
Ele adentrou por isso, em seu costumeiro estilo mordaz e sarcástico, nos riscos à democracia decorrente da ignorância das pessoas comuns, quando adulada por políticos irresponsáveis e igualmente ignorantes: “À medida que a democracia se aperfeiçoa, o presidente representa, mais e mais fidedignamente, a alma íntima do povo. Nos movemos em direção a um ideal elevado. Em um grande e glorioso dia, os sujeitos mais simplórios terão seus desejos finalmente antendidos e a Casa Branca será adornada por um completo idiota.”
A democracia, nos ensina Mencken, não pode ser o governo dos idiotas, para os idiotas, pelos idiotas. Aqui no Brasil, Nelson Rodrigues já esbravejava nos anos 1960 contra a ascensão da idiotice na política e, tal como o escritor de Baltimore, suas palavras azedas soam proféticas:
“De repente, os idiotas descobriram que são em maior número. Sempre foram em maior número e não percebiam o óbvio ululante. E mais descobriram: – a vergonhosa inferioridade numérica dos ‘melhores’. Para um ‘gênio’, 800 mil, um milhão, dois milhões, três milhões de cretinos. E, certa dia, um idiota resolveu testar o poder numérico: – trepou num caixote e fez um discurso. Logo se improvisou uma multidão. O orador teve a solidariedade fulminante dos outros idiotas. A multidão crescia como um pesadelo. Em 15 minutos, mugia, ali, uma massa de meio milhão.”
É também contra a idiotice na política que Barack Obama segue em seu discurso na Rutgers University, embora de forma mais delicada e sútil do que Mencken e Rodrigues:
E hoje, em cada celular como esses que estão em seus bolsos temos acesso a mais informação do que em qualquer tempo na história humana, com um simples toque na tela. Mas, ironicamente, essa torrente de informações não nos ajudou a discernir melhor a verdade. Sob alguns aspectos, isso só nos fez confiar mais em nossa ignorância. Pressupomos que tudo que está na internet deve ser verdadeiro. Procuramos por sites que apenas reforçam nossas predisposições. Opiniões travestidas de fatos. As teorias da conspiração mais bizarras são tidas como a palavra do evangelho.
Então, entendam, estou certo que vocês aprenderam durante seus anos de universidade – e se não aprenderam, aprenderão em breve – que há muita gente que tem boa cultura livresca, mas nenhum senso comum. Isso é verdade. Vocês encontrarão pessoas assim, se é que já não encontraram. Assim, mesmo que eles tenham um diploma notável, você precisa conversar com eles para ver se eles sabem do que estão falando. Qualidades como bondade e compaixão, honestidade, trabalho duro – frequentemente importam mais do que habilidades técnicas ou know-how.
Mas quando nossos líderes expressam um desdém pelos fatos, quando não são responsabilizados por reproduzirem falsidades e inventarem coisas absurdas, ao passo que os verdadeiros experts são desqualificados como elitistas, então nós temos um problema.
Vejam, é interessante que quando ficamos doentes, queremos realmente estar certos de que os médicos frequentaram uma escola de medicina, de que eles sabem do que estão falando. Quando entramos em um avião, esperamos contar com um piloto que seja capaz de dirigir a aeronave. E, apesar disso, em nossas vidas públicas, certamente pensamos: “não quero alguém que já fez isso antes” (risos). A rejeição dos fatos, a rejeição da razão e da ciência – este é o caminho para o declínio. Isso me faz recordar as palavras de Carl Sagan, que estudou no ensino médio aqui em New Jersey – ele dizia: ‘podemos avaliar o nosso progresso pela coragem de nossas perguntas e pela profundidade de nossas respostas, pelo nosso compromisso em defender o que é verdade ao invés daquilo que parece conveniente’”.
Além do discurso de Obama, Tocqueville, Ortega y Gasset, Mencken e Rodrigues (autores insuspeitos de esquerdismo) são leituras que recomendo nesses tempos de pandemia, em que eleitores iludidos e governantes irresponsáveis negam a realidade dos fatos e o conhecimento científico.
O discurso completo de Barack Obama na Rutgers University pode ser visto e lido neste link.
CÁSSIO CASAGRANDE – Doutor em Ciência Política, Professor de Direito Constitucional da graduação e mestrado (PPGDC) da Universidade Federal Fluminense – UFF. Procurador do Ministério Público do Trabalho no Rio de Janeiro.
Publicado originalmente na Revista JOTA