OS GOVERNOS CIVIS DA PRIMEIRA REPÚBLICA
A história é sempre uma boa conselheira. Para bem entender as relações conflituosas de hoje entre os poderes é preciso deitar um breve olhar sobre o passado… É o que fazemos nesta página web do CECGP onde publicamos o quarto artigo da série relacionada ao papel desempenhado pelo Poder Judiciário brasileiro, como órgão de cúpula e integrante das funções de soberania do Estado. A narrativa descreve os tempos turbulentos da nascente República e serve para uma reflexão sobre o nosso passado constitucionalista, pois assim melhor poderemos entender os dias de hoje…
Sergio Victor Tamer*
O governo de Prudente de Morais e a transição para a República oligárquica (1894 – 1898) – Prudente vinculou-se ao grupo oligárquico paulista que se formou após o desenvolvimento da cultura cafeeira. Iniciou o período dos governos civis. Ocorreu, nesse período, uma espécie de transição da chamada “República jacobina”[1] para a nova fase nacional, a da “República oligárquica”[2], uma prática política viciada e antidemocrática que iria se estender até 1930. Em 1898, após atender uma decisão do Supremo Tribunal mandando soltar presos políticos, Prudente, em mensagem ao Congresso, recriminou severamente aquela decisão judiciária ao sustentar que a mesma havia sido proferida “influenciada pela paixão partidária e animou ou aumentou a ousadia dos perturbadores da ordem”. E mais: que além de contrariar decisões anteriores do próprio STF, feria a decisão o art.80 da Constituição fato que, no seu entendimento, “abalou a harmonia indispensável entre os Poderes, que a mesma Constituição criou como órgãos da soberania nacional…”. Em resposta, o Tribunal aprova uma moção de protesto atacando, em termos veementes, o Executivo.
O governo de Campos Sales ( 1898 – 1902 ) – deu o primeiro golpe na frágil organização partidária ao garantir, aos governadores, o reconhecimento dos deputados por eles apoiados em troca do apoio do Congresso. As duas facções parlamentares – narra SERTÓRIO DE CASTRO[3] – “mantinham-se em atitude contemplativa, votando por unanimidade todas as medidas que lhe pedia o governo”. Aos Estados era assegurada plena autonomia. Tem início a “República Oligárquica” (1898 – 1930), adequada às vontades de fazendeiros e agricultores. Alijados os militares de tendência antioligárquica, ainda no governo de Prudente de Morais, desenvolve-se uma política de cúpula característica das elites dominantes. O ideário republicano cede lugar aos interesses econômicos e políticos dessa elite.
A República era governada a partir dos Estados, sobretudo São Paulo, Minas Gerais e Bahia. A imprensa era assediada e subornada pelos grupos oligárquicos. A prática da “degola”, ou seja, do “ganha- mas-não-leva”, foi instituída nessa época: os representantes eleitos para o Legislativo não eram nomeados se fossem opositores do governador de seus Estados. A corrupção eleitoral foi uma das suas mazelas políticas. As eleições regulares eram manipuladas e tinham o eleitorado reduzido e, sob o manto de “democráticas”, escondiam as mais diversas fraudes e corrupções imagináveis, tudo com o intuito de manter ad aeternum as elites políticas dos Estados. SERTÓRIO DE CASTRO[4] confirma que “eram eleitos, diplomados e reconhecidos os candidatos que as comissões executivas dos partidos dos governadores houvessem indicado em seus boletins”. Esse sistema eleitoral, largamente utilizado, tinha, desta maneira, um significado estritamente homologatório, especialmente nesse período que se estendeu até 1930.
O governo Rodrigues Alves ( 1902 – 1906 ) – A campanha da vacina obrigatória para combater a febre amarela , para a qual foi incumbido, com amplos poderes, o sábio higienista Oswaldo Cruz, na condição de Diretor da Saúde Pública, provocou forte reação por parte da “ …inconsciência de uma multidão envenenada por maus brasileiros” – segundo impressão do próprio Oswaldo Cruz transmitida a Rodrigues Alves . “SERTÓRIO DE CASTRO, ao narrar o episódio da vacina obrigatória, em sua obra “A República que a Revolução destruiu”, assinala com indignação e lamento:” Explodiu, então, na capital do país, um motim popular e de quartéis que deveria constituir objeto de um dos mais tristes capítulos da história nacional.”
A sublevação militar, tendo com estopim a Escola Militar do Brasil, não tardaria a ocorrer como decorrência do motim das ruas. Falava –se , então, conforme o relato de SERTÓRIO DE CASTRO [5], “no propósito de depor o presidente para proclamar ditador o Sr. Lauro Sodré, aspiração da denominada corrente castilhista, formada no exército por aquela mesma mocidade que uma vez mais abria as portas da casa gloriosa da Praia Vermelha às solicitações da política, para sofrer uma nova e pungente desilusão. Estava o movimento marcado para o dia 15 de novembro, quando o general Silvestre Travassos deveria comandar as forças em parada, mas foi precipitado porque os acontecimentos que vinham perturbando a vida da cidade impediram a realização da revista militar destinada a comemorar a data da proclamação”.
As oligarquias imperavam no Norte e no Nordeste: Silvério Nery, no Amazonas; Antônio Lemos, no Pará; Benedito Leite, no Maranhão; a família Pires Ferreira, no Piauí; a família Acioly, no Ceará; e em Pernambuco reinava, absoluta, a vontade de Rosa e Silva. O Rio Grande do Norte tinha como chefe supremo da política Pedro Velho. Na Paraíba, monsenhor Walfredo Leal e em Alagoas triunfava, com mão-de-ferro, a oligarquia dos Maltas. Em Sergipe perdurou o domínio político do monsenhor Olímpio de Campos até quando do seu assassinato em praça pública. O Espírito Santo estava nas mãos dos irmãos Jerônimo e Bernardino Monteiro. No Sul não era diferente: Vicente Machado mandava arbitrariamente no Paraná enquanto que Borges de Medeiros, que já havia instaurado a sua era de domínio exclusivo no Rio Grande do Sul, passava a respeitar, por questões regionalistas, a liderança nacional de Pinheiro Machado.
O governo Afonso Pena (1906 – 1909) – estabeleceu como metas o incentivo à imigração, a reforma do sistema monetário e a criação de parques industriais. No primeiro senso industrial realizado no Brasil, em 1907, registraram-se 3.258 indústrias as quais empregavam cerca de 150 mil operários. Os trabalhadores deram início à sua organização e à participação nos movimentos políticos. A política de valorização do café não surtiu o efeito esperado, tendo aumentado o endividamento externo e arruinado a economia brasileira. Sem articulação com os Estados e desprezando a “política dos governadores”, não teve êxito na indicação do seu sucessor. Afonso Pena morreu no último ano de seu mandato, sendo sucedido pelo seu vice, Nilo Peçanha.
O governo Nilo Peçanha (1909 – 1910) – passou a apoiar o marechal Hermes da Fonseca para presidente provocando uma reviravolta na política. Promoveu, assim, o retorno dos militares ao cenário político que desde o governo de Prudente de Morais ( 1894 – 1898) estavam afastados . Ministro da Guerra de Afonso Pena, Hermes personificava o “militarismo” e por isso representava uma ameaça para as oligarquias. Por um lado, as oligarquias nos Estados se consolidavam e fortaleciam o sistema político federalista; mas, por outro lado, acabavam por enfraquecer esse mesmo sistema, pois não permitiam a alternância do poder. O confronto, no entanto, estava delineado entre o “militarismo”, representado por Hermes da Fonseca e os “civilistas” que tinham na figura de Rui Barbosa, ligado aos interesses da política paulista, a esperança de se opor à escalada militar. No plano econômico e doutrinário, Rui filiara-se ao princípio do intervencionismo protecionista e a campanha aprofunda a dissensão entre civis e militares. Os militares, então, acusam os “casacas” e querem o retorno da honestidade como prática da vida política nacional. O chamado “salvacionismo”, patrocinado pelos adeptos de Hermes, prega a democracia autêntica e o combate aos sistemas oligárquicos. O eleitorado entusiasma-se pela primeira vez numa disputa presidencial. SERTÓRIO DE CASTRO[6] descreve assim aquele período: “De um lado, ia-se formando a resistência da cultura, ao sopro benéfico do espírito civilista. (…) De outro lado, ia-se formando a política utilitarista que se comprazia em aceitar o domínio da força, o império do tacão da bota e do rebenque, desde que não lhe fugissem as posições, uma vez que conservassem as complacências do poder.” Assim, em 8 de outubro de 1910, a flotilha do Amazonas em colaboração com as forças de terra, bombardeava a cidade de Manaus para depor o governador Antônio Bittencourt que havia cometido a “audácia” de se alistar nas fileiras civilistas. O atentado tinha por fim restituir, à força, o domínio político do Estado aos partidários de Pinheiro Machado, dentre eles o vice – governador Sá Peixoto. Nilo Peçanha, ante o clamor da indignação pública, determina aos comandantes daquela bombástica operação militar que reponham no cargo o governador defenestrado arbitrariamente do poder. Também foi reposto no governo de Sergipe, por ordem do presidente, Rodrigues Dória, que por questões de disputa política local havia sido apeado do cargo. Quanto à relação do Executivo com o Supremo Tribunal, SEABRA FAGUNDES faz justiça à posição de Nilo Peçanha, considerando o quadro predominante na Primeira República de “inconformidade com a atuação constitucional do Supremo Tribunal e de insólitas agressões aos seus julgados.” Cita, como exemplo, a Mensagem que enviou ao Congresso, datada de 3 de maio de 1910, que testemunha o seu respeito ao Poder Judiciário.[7]
Mas o quadro nacional era de concentração de rendas e de empobrecimento das classes trabalhadoras, situação que se agravava com a prática desenfreada da corrupção eleitoral, empreguismo no setor público, bacharelismo e parasitismo. Hermes da Fonseca venceu as eleições beneficiando-se da própria máquina eleitoral montada pelo sistema dos governadores – muito embora tenha se apresentado como seu principal contestador. Coube a Quintino Bocaiúva proclamar eleitos os candidatos daquela que foi, no dizer de SERTÓRIO DE CASTRO, “uma clamorosa alquimia eleitoral”.
Na próxima semana: O último ciclo da “República Oligárquica”, (de Hermes da Fonseca a Washington Luís) que se encerra em 1930: ainda mais autocracia, militarismo e conflito entre os poderes.
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Sergio Victor Tamer (69) é mestre em Direito Público pela UFPe, doutor em Direito Constitucional pela Universidade de Salamanca e pós doutor pela Universidade Portucalense. Professor e advogado – possui as seguintes obras publicadas sobre o tema: “Fundamentos do Estado Democrático e a Hipertrofia do Executivo no Brasil” – Ed. Fabris, RS,2002; “Atos Políticos e Direitos Sociais nas Democracias” – Ed. Fabris, RS, 2005; “Legitimidad Judicial en la Garantía de los Derechos Sociales”, Ed. Ratio Legis, Salamanca, ES, 2013.
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[1] PENNA assim justifica a origem da expressão: “No seio das camadas médias urbanas, principalmente na capital, crescera consideravelmente o jacobinismo brasileiro, alimentado, sobretudo pela insatisfação em ver os antigos representantes da velha ordem influindo nos destinos da República. A crise provocada pelo aumento do custo de vida, a retração do mercado de trabalho, a imigração são fatores objetivos que acionam esses contingentes sociais. Os jacobinos perceberam, desde cedo, que o discurso liberal continha um indisfarçável apelo conservador. Os “casacas”, alcunha que se dava a esses liberais, não tinham compromissos reais com a República. Ao contrário, os militares devotavam grande afeição ao regime. Tinham consciência da tarefa a eles atribuída, a de sustentação da República por eles proclamada. Foi por ocasião da Revolta da Marinha que esta aliança entre Floriano e o jacobinismo se consolidou. Os jacobinos centravam seu ódio nos estrangeiros, principalmente os portugueses. Seus partidários eram civis e militares, pertencentes aos estratos intermediários e se consideravam os legítimos representantes do verdadeiro ideal republicano.(…) O governo de Floriano granjeou a simpatia das camadas médias urbanas e, influenciado por elas, adotou uma política austera e nacionalista.” – PENNA, Lincoln de Abreu: República Brasileira, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999
[2] PENNA, in ob. cit., p. 89, assim destaca o tema: “Na visão dos contemporâneos do fenômeno oligárquico, a oligarquia no Brasil tem peculiaridades próprias, consistindo em enunciado genérico que define suas várias formas de manifestação histórico-social. Entre essas peculiaridades está a sua íntima relação com o coronelismo. A rigor, a diferença entre oligarca e coronel é mais uma diferença de dimensões políticas. Enquanto os oligarcas possuem um raio de ação estadual, e por vezes até regional, o coronel é um chefe político local, mais associado à ideia do “mandonismo local”.
Mas, além de retirar da União o poder de conduzir os destinos da República de modo a integrar as unidades da federação a um projeto nacional, com vistas a equacionar os problemas frente aos quais se defrontava a sociedade, a prática federalista de conteúdo oligárquico gerou inúmeras mazelas políticas. A mais desastrosa, sem dúvida, foi a corrupção eleitoral. (…)… Há traços comuns que permitem englobá-los na caracterização dos grupos oligárquicos. Tais traços são: a presença de núcleos mais ou menos impermeáveis; lealdade para com os chefes políticos, reconhecidos como tais; controle das instâncias de decisão política e exclusão dos favores e benefícios a todos que não compuseram de forma efetiva esses núcleos. Essa caracterização, proposta por Edgard Carone em seu estudo sobre oligarquias, parece resumir bem o fenômeno político que dominou hegemonicamente o panorama político brasileiro até 1930.
[3] CASTRO, Sertório de: A República que a revolução destruiu: Brasília, Edit. Universidade de Brasília, 1982, p.110
[4] Ob. cit., p. 111
[5] Ob. cit.. , p. 137
[6] Ob. cit., p. 168
[7] FAGUNDES, Seabra. “As funções políticas do Supremo Tribunal Federal” – Palestra proferida em 13.9.1978, na UNB: Sesquicentenário do Supremo Tribunal Federal, edit.UNB, Brasília, 1982, p. 54