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Artigo 217-A do CP: a vagueza que vitamina a desproporcionalidade – Por Lenio Luiz Streck e José Conrado Kurtz de Souza

“Se quisermos destacar duas principais características do tratamento dado aos crimes sexuais pelo legislador e pelos tribunais brasileiros, dir-se-ia que são elas o moralismo e o subjetivismo. Isso se vê na tipologia dos crimes sexuais. E causa, por vezes, verdadeiros absurdos…”

 

Não há dúvida de que nos últimos anos houve avanços na tipificação dos crimes sexuais, a começar pela própria concepção na qual se inspira a legislação específica. Na esteira de vários países, o Brasil superou a vetusta concepção dos crimes sexuais como crimes contra os costumes. São, agora, contra a dignidade sexual.

  • A Lei 12.015/09 e a vedação da proibição de excesso – Übermaßverbot

Malgrado tenha o legislador da Lei 12.015/09 afirmado expressamente essa nova concepção, o desenho tipológico se mostrou inadequado. A começar pelo novo Art. 213 do CP, que resultou em uma (quase) pura e simples aglomeração do anterior crime de Atentado violento ao pudor (Art. 214) ao de Estupro (Art. 213).

Apesar das boas intenções, fato é que não se atentou para a diversidade de condutas e graus do injusto nos crimes sexuais, ou, se se preferir dizer de outro modo, à diversidade de modos de realização dos crimes e dos diversos graus de culpabilidade (Art. 29 do CP), em particular no caso do crime de Estupro, e mais ainda no crime de Estupro de vulnerável (217-A).

A excessiva abertura semântica que já existia na anterior fórmula “…ato libidinoso diverso da conjunção carnal” do Atentado violento ao Pudor (no revogado Art. 214 do CP), agora com leve alteração de roupagem: “outro ato libidinoso” (Artigos 213 e 217-A), transportava e segue transportando sensível perigo de contrabandos moralistas e subjetivistas para dentro dos julgamentos dos crimes sexuais. Lembramos de antiga jurisprudência que dizia “beijo lascivo configura atentado ao pudor”. Quantas pessoas foram condenadas com base nesse mantra.

Tudo pode ser outro ato típico se compreendido pelo intérprete como libidinoso. E aqui há algo importante a salientar: embora a lei não exija a satisfação da lascívia do agente, ou mesmo de outrem, para a consumação do crime – no que andou bem o legislador, pois o agente pode praticar o crime sem mesmo obter prazer sexual – segue recorrente a interpretação judicial de que o grau de satisfação da lascívia é o elemento subjetivo que completa a integralidade da figura típica. O que isso significa em termos filosóficos, ninguém sabe dizer. Será algo “ontológico”, no sentido de uma “essência” de maldade no ato?

Esse grau de satisfação da lascívia é, sem embargo, problemático, pois, como já dito, não há como saber, salvo por critérios objetivos e comparativos, se o agente satisfez ou não sua própria lascívia ou a de terceiro, e em que grau e intensidade, até mesmo porque não existe, ao que saiba, algo como um libidômetro.

Em suma, tudo isso não estaria em discussão não fosse de todos o problema maior, que aliás é o ponto deste trabalho: a descompensada resposta penal prevista pelo legislador aos crimes sexuais contra vulnerável (Art. 217-A), nos quais a pena mínima abstratamente prevista no tipo é – sempre – de 8 anos de reclusão, podendo alcançar, abstratamente, 15 anos.

Como já se pode inferir, a situação como está reclama correção. Urgente. Passadas de mãos pelo corpo, pela genitália, por cima da roupa, ou por baixo dela, com a penetração de membros corpóreos, do pênis, língua, dedos, ou penetração de objetos outros que não corpóreos no corpo da vítima, configuram diversidade de condutas que, embora da mesma espécie, expressam graus diversos do injusto. Isso é fato. Por isso, é equivocado terem sempre a mesma resposta penal que parta de 8 anos de reclusão. Há aqui flagrante excesso de ação estatal/excesso de pena!

É preciso que se diga, para acalmarem-se os mais sensíveis, que é notório e inquestionável que todos os atos violadores da dignidade sexual, em particular aqueles cometidos contra crianças e adolescentes, são graves e marcados por intensa e profunda repulsa social e moral, justamente pelo sofrimento psíquico que causam às vítimas.

Contudo, a atuação estatal em prol da concretização da segurança, na qual se insere a repressão aos delitos, conforme art. 144 da Constituição Federal, está evidentemente abarcada pela ordem constitucional. Isto significa dizer que a atuação repressiva estatal deve ser proporcional, usada a palavra até mesmo no sentido mais tradicional, representado pela metáfora de que não se pode usar um canhão para matar um passarinho. 

Ou seja, o Direito Penal reclama proporção[1], cuja face deve espelhar mínimos e máximos de tempo de pena de privação da liberdade em correspondência com elementos objetivos, exteriores, que permitam comparação fragmentária, de diferenças casuísticas dentro da mesma área penal, e não visualizados em balaio, todos sob o prisma subjetivo e moral.

É necessário levar em consideração a enorme diferença existente entre condutas como a de toques, passadas de mãos no corpo da vítima, e a cópula vaginal ou o coito anal, nos quais estão presentes mais elevados riscos objetivos de transmissão de doenças sexualmente transmissíveis — DSTs —, como Aids, Hepatites, Sífilis, Gonorreia, HPV etc.

Sob hipótese alguma é admissível que, por se tratar de vítima vulnerável, com toda a proteção especial a que constitucionalmente tem direito, que se desconsidere a justa e proporcional resposta penal ao agente violador da lei criminal. A proteção à dignidade sexual dos vulneráveis deve cumprir o requisito da proporcionalidade, o que é autoevidente num Estado de Direito como o nosso.

O legislador brasileiro, enfatize-se, ao aglutinar condutas incriminadoras de tamanha diversidade em mesmo tipo penal, atribuindo a mesma sanção penal inicial, caracterizou, dentro do sistema penal vigente, flagrante incoerência endonormativa (Luciano Feldens), que expressa excesso de ação estatal, violando o princípio da individualização da pena e a resposta penal do Estado Constitucional sob o viés da proibição de excesso, Übermaßverbot.

Tal carência tipológica, é preciso que se diga, não dispensa o aplicador da lei de impor sanções justas e equânimes-proporcionais em correspondência a diferentes condutas diversas da conjunção carnal, que, em um mesmo tipo penal têm prevista a mesma punição mínima – 8 anos de reclusão -, nada obstante o conteúdo do injusto penal diverso[2].

Parece intuitivo dizer que um crime grave como o estupro deve ser apenado com rigor, como fez o legislador ao impor de 8 a 15 anos a sanção. A questão está na aplicação dessa pena diante da diversidade de condutas passíveis de enquadramento. Lembra-se, nesse ponto, que a proporcionalidade do Direito Penal é a difícil concretização da maior liberdade quanto possível com a justa medida, para usar um termo aristotélico, de tanto Estado quanto necessário.

Nessa linha, parece possível defender a necessidade de uma punição rigorosa para os atos de conjunção carnal, que acompanham altos níveis de infecção e de proliferação de DST, e para os atos praticados com violência e grave ameaça, extremamente traumáticos para os vulneráveis, desdobrando consequências físicas e psíquicas que podem acompanha-los por toda a vida.

Entretanto, a prática de outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos é por demais ampla para entender que a pena de oito a quinze anos seja proporcional. Por exemplo, um casal de uma jovem de 18 anos com um menino de 13, no qual a jovem pratica ato libidinoso consentido como passadas de mãos pelo corpo, pela genitália, por cima da roupa, ou por baixo dela trarão uma pena mínima de 8 anos com um possível regime inicial de cumprimento de pena fechado.

A desproporcionalidade também pode ser percebida na comparação entre, por exemplo, a passada de mão por cima da roupa numa festa na qual a vítima possui 18 anos (violação sexual mediante fraude, qual seja: praticar ato libidinoso com alguém, mediante meio que dificulte a livre manifestação de vontade da vítima) com pena entre 2 a 6 anos e a mesma ação na mesma festa com uma vítima de 13 anos que entrou com carteira falsa (Estupro de vulnerável, qual seja: praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos) com pena entre 8 a 15 anos.

O escopo fático da norma é excessivamente diverso para entender pela sua proporcionalidade-equanimidade. Ainda na mesma linha comparativa, outras duas situações diversas demonstram a incoerência da pena:

— A primeira delas é a prática de eventual ato libidinoso mediante fraude, como uma passada de mão inesperada por cima da roupa no transporte público, que pode ser repreendida com uma pena de oito a quinze anos.

— A segunda, que vai de encontro à situação anterior, é a prática de agressão física contra vítima de mesma idade que tenha como consequência deformidade permanente. Esse delito será apenado com dois a oito anos, o que possibilitaria, a depender das circunstâncias do caso, regime inicial aberto de cumprimento de pena. A flagrante desproporcionalidade na resposta penal demonstra uma violação à individualização da pena e o forte traço moralista herdado pela compreensão dos crimes sexuais como ofensivos aos costumes. Lembremos, de novo, que usamos o sentido de “proporcionalidade” no sentido original, bruto, como “equanimidade” de aplicação do Direito.

A isso se soma o fato de que o ordenamento jurídico deve ser um todo coerente e íntegro. Ainda, a harmonia e a proporcionalidade (equanimidade) da regulação jurídica e da atuação estatal, mesmo na punição de delitos, é essencial para a manutenção do rule of law.

Por isso, no mesmo sentido das comparações anteriores, deve-se ressaltar que a pena mínima para os delitos aqui analisados, a prática de ato libidinoso contra vulnerável sem violência ou grave ameaça, é simplesmente oito vezes maior que a pena mínima do homicídio culposo, dois anos maior que a pena do homicídio simples e cinco anos maior que a pena do aborto provocado por terceiro sem consentimento da gestante.

Não é necessário discutir “fórmula de pessoa”, adequação e/ou necessidade para perceber o tamanho do problema.

Como solução, enquanto o legislador não traz novidades, defendemos a inadequação — por desproporcionalidade (falta de equanimidade) —  da pena especificamente para a conduta típica referente às ofensas sexuais que envolvam outro ato libidinoso sem violência ou grave ameaça, dada a insuficiência tipológica do art. 217-A do CP.

Outro ato libidinoso é um conceito “ônibus”. Com efeito, é razoável e jurídica a aplicação da minorante genérica da tentativa como mecanismo regulador/hermenêutico viabilizador da adequação da reprimenda diante de situações claramente menos graves de ofensas sexuais que envolvam outro ato libidinoso, dada a insuficiência tipológica do Art. 217-A do CP.

  • Entre a proibição de excesso e a proibição de proteção insuficiente: a minorante genérica da tentativa como regulador da proporção no Artigo 217-A do CP

Sem medo de incorrermos em arbítrio, seguimos a advertência de Gadamer: ao juiz que se vê na contingência de ter de atualizar a lei, ou muito menos ainda no intuito de usurpar a função do legislador, temos que a utilização da minorante genérica da tentativa como elemento regulador da proporcionalidade é viável e jurídica. Elemento regulador, eis o ponto.

A propósito, o próprio legislador deu recentemente importante passo que pode ser interpretado como reconhecimento do que estamos a criticar neste trabalho ao editar a Lei nº 13.178/2018. Essa lei, que inseriu o Art. 215-A do CP (importunação sexual)[3], reconhece, ainda que implicitamente, no plano objetivo, a diferença capital entre a conduta de manter conjunção carnal com a de praticar outros atos libidinosos contra alguém. Com isso, temos que o legislador, claramente, buscou abrandar a resposta penal estatal dos crimes sexuais, a partir de uma equanimização de condutas. Em verdade, o legislador, ciente da diversidade de condutas que se encaixam na expressão outro ato libidinoso, atribuiu valores penais bem menores do que o fez para os Arts. 213 e 217-A ambos do CP.

Mas, atenção, porque aqui há um ponto que recomenda cautela. O Art. 215-A não se presta à desclassificação – sob argumentos de (des)proporcionalidade – para condutas menos graves tipificadas originariamente no Art. 217-A. E, por quê? Porque o Art. 215-A não se aplica a crimes em que a vítima seja vulnerável. E mais ainda, o preceito secundário da norma penal define a punição abstratamente considerada entre 1 e 5 anos de reclusão, o que pode, em muitos casos de desclassificação pura e simples para este artigo, na esteira do resgate da almejada proporcionalidade (que corre o risco de se transformar em mero subjetivismo), caracterizar a proibição de proteção insuficiente (Untermaßverbot), passando-se de um extremo a outro. Dois erros não dão um acerto.

De outro viés, há mais dois pontos: (i) o fato de muitas condutas que hoje se veem aglomeradas no Art. 217-A do CP deverem configurar, se não tipos autônomos, ao menos causas especiais de diminuição de pena; (ii) a necessidade de maior especificidade tipológica não pode ser substituída pura e simplesmente por quantidades penais maiores quando da aplicação das moduladoras do Art. 59 do CP, como vem sendo defendido em vários tribunais. Isto porque não se pode confundir as circunstâncias judiciais, que têm repercussão limitada quando da dosimetria da pena-base, com a carência de descrição típica.

 Conclusão
Desde o século XIX a proporção entre a conduta típica e a sanção prevista ao agente é obrigação do legislador e direito constitucional do réu, sendo vedado o excesso de ação estatal, do mesmo modo como é vedada a proibição insuficiente.

No caso específico do Art. 217-A do CP, até que o legislador ofereça tipologia conforme a Constituição, é razoável e jurídica a aplicação da minorante genérica da tentativa — e dela suas frações em correspondência com a especificidade (grau do injusto) do fato –  como mecanismo de regulação da proporção diante do excesso de ação estatal, não sendo o melhor caminho a desclassificação das condutas capituladas no Art. 217-A do CP para o crime previsto no Art. 215-A do CP, que não tem aplicação para crimes praticados contra vítimas vulneráveis, e ainda em apenamento limitado de 1 a 5 anos de reclusão.

Assim sendo, a hipótese de aplicação da minorante genérica da tentativa, quando a conduta praticada envolver outro ato libidinoso, deve ser avaliada em cada caso penal em que seja excessivo e desproporcional o apenamento cheio previsto no artigo 217-A, sendo viável, na linha do exposto, a aplicação de uma das frações dispostas no parágrafo único do Art. 14 do CP às condutas praticadas de acordo com os critérios de necessidade e suficiência para a prevenção do crime, atendendo-se desse modo o princípio da individualização da pena sem excessos e, ao mesmo tempo, sem proteções deficientes.

[1] Utilizamos “proporcionalidade” no sentido mais tradicional, surgida no Código Geral Prussiano, que previa que “leis e atos estatais devem limitar a liberdade natural e os direitos dos cidadãos na medida exigida pelo interesse comum”. O Código exigia também que uma autoridade “só poderia elaborar as medidas necessárias à preservação da segurança e ordem pública”. Nesse sentido, é exemplar a tese doutoral de Lucas Catib de Laurentiis, A proporcionalidade no direito constitucional (2015, USP). A proporcionalidade nasce como uma forma/técnica de limitação da atuação do poder estatal dentro da esfera de liberdade dos indivíduos (ver também William Dietrich. Proporcionalidade irracional: qual delas? In: Empório do Direito – https://emporiododireito.com.br/leitura/43-proporcionalidade-irracional-qual-delas).  Portanto, aqui não estamos a falar das máximas ou postulados (sic) e nem mesmo nos remetendo a Robert Alexy. Para a (necessária) crítica sobre a proporcionalidade Alexyana e sua aplicação pelos tribunais brasileiros, ver Lenio STRECK, Dicionário de Hermenêutica, Belo Horizonte: Letramento, 2018; também Fausto de MORAIS, Ponderação e Arbitrariedade e  Rafael DALLA BARBA, Nas Fronteiras da Argumentação, ambos da Editora Juspodium.

[2] A determinação do conteúdo do injusto diz respeito não mais à relação entre tipo e antijuridicidade, mas sim à estrutura desses dois elementos e à significação dos juízos de valor que necessariamente são emitidos sobre a conduta criminosa. A constituição do conteúdo do injusto decorre, assim, da análise diferenciada que se deve realizar sobre os elementos que compõem o tipo e a antijuridicidade, de modo a tomar possível a perfeita delimitação da conduta proibida ou mandada (v. TAVARES, Juarez. Teoria do Injusto Penal. 2ª ed. rev. e ampl. Belo Horizonte: DelRey, 202. p. 180).

[3] Art. 215-A. Praticar contra alguém e sem a sua anuência ato libidinoso com o objetivo de satisfazer a própria lascívia ou a de terceiro: Pena – reclusão, de 1 (um) a 5 (cinco) anos, se o ato não constitui crime mais grave.

 

 

Lenio Luiz Streck é jurista, professor de Direito Constitucional, titular da Unisinos (RS) da Unesa (RJ).

José Conrado Kurtz de Souza é mestre em Filosofia (PUC-RS) e doutorando em Filosofia (PUC-RS), desembargador membro da 7ª Câmara Criminal do TJ-RS.

Publicado originalmente na Revista Consultor Jurídico, 6 de abril de 2020