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Centro de Estudos Constitucionais e de Gestão Pública

As balizas constitucionais do controle judicial dos atos de poder, por Sergio Tamer

Os atos de poder  tem a sua controlabilidade decorrente da sua conformidade com a constituição. Por isso, a questão não será de legalidade mas de constitucionalidade. Assim, são eles cognoscíveis pelo Poder Judiciário, que deve contrastá-los com os princípios e preceitos constitucionais, e verificar se eles foram praticados em atenção à forma, à competência e à finalidade constitucionalmente definidas.

 

 Por Sergio Victor Tamer

       Professor e advogado, doutor em Direito Constitucional pela Universidade de Salamanca e mestre em Direito Público pela UFPe. Pós doutoramento na Universidade Portucalense. Texto extraido do livro:  Atos Políticos e Direitos Sociais nas Democracias (Editora Fabris, RS, 2005)

 

O CONTROLE DA FUNÇÃO ADMINISTRATIVA

Dois são os sistemas de controle jurisdicional da Administração atualmente adotados, grosso modo: o de jurisdição ordinária, também conhecido como de jurisdição única no qual os atos da Administração pública se submetem à revisão perante o Poder Judiciário em sua quase-totalidade;  e o de jurisdição dúplice ou de competência especializada, no qual os tribunais administrativos, transformados em verdadeiros tribunais, integrados numa ordem judicial, exercem a jurisdição comum em matéria administrativa, como em Portugal. Em última análise, ambos os sistemas têm o caráter jurisdicional. No Brasil – que adota o primeiro sistema – os atos dos particulares, assim como aqueles emanados da Administração pública se submetem à jurisdição comum.  Não iremos tratar aqui do histórico dos dois sistemas, pois o mesmo fez parte da temática de nosso outro Relatório [1], tendo sido objeto de circunstanciada elaboração. Nem tampouco das vantagens e desvantagens de cada um. Na realidade, como percebeu com precisão MEDAUAR, “a eficácia do controlo jurisdicional sobre a Administração não depende necessariamente da unidade ou dualidade de jurisdição. Qualquer deles é suscetível de realizar o controle de modo adequado e efetivo, desde que as insuficiências (…), umas típicas do controle da Administração, outras comuns à atuação do Judiciário como um todo, sejam sanadas ou atenuadas”.

Já se comentou em outro tópico a abrangência do inciso XXXV, do art. 5º da Constituição, ao estabelecer que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”. Ele traduz o princípio da inafastabilidade do controle do Poder Judiciário.  Ao analisar esse dispositivo, sob o aspecto do controle da Administração, FERREIRA FILHO[2] fez ver  que “a importância prática do preceito ora examinado está em vedar sejam determinadas matérias, a qualquer pretexto, sonegadas aos tribunais, o que ensejaria o arbítrio. Proíbe, pois, que certas decisões do executivo, que devem estar jungidas à lei, escapem ao império desta, eventualmente, sem a possibilidade de reparação. O crivo imparcial do judiciário, assim, pode perpassar por todas as decisões da Administração, contrariando a possível prepotência de governantes e burocratas”.

Mas em que casos a Administração pode sofrer a sanção judicial? Quando e como se manifesta a falta da Administração para com os seus princípios básicos, vicia o ato e o expõe à anulação por ela mesma ou pelo Poder Judiciário?  De forma bem sucinta, mas extremamente precisa, MEIRELLES[3] afiança que “todo ato administrativo, de qualquer autoridade ou Poder, para ser legítimo e operante, há que ser praticado em conformidade com a norma legal pertinente (princípio da legalidade), com a moral da instituição (princípio da moralidade), com a destinação própria (princípio da finalidade), com a divulgação oficial necessária (princípio da publicidade), e com presteza e rendimento funcional (princípio  da eficiência)”.

A influência estrangeira

BUCCI [4], porém, garante que para entender a forma de organização e a lógica do direito administrativo no Brasil – e as razões de sua maior ou menor funcionalidade – é indispensável examinar as origens do direito administrativo francês, embora ele não possa dar todas as respostas, até porque no país não fora adotado esse modelo na sua integralidade. Incorporou-se, ademais, no modelo de inspiração francesa que havia a influência americana, sobretudo a partir da Carta republicana de 1891 e mais recentemente a experiência das agências reguladoras, no que resultou num modelo híbrido, haja vista, por outro lado, as características peculiares do Estado e de sua história. Assim, garante a autora que a “forma” do direito administrativo brasileiro é francesa, em face de um regime jurídico especial para os atos e condutas em que a Administração se vale de sua posição de superioridade em relação aos cidadãos; além do que relaciona que seria inspirado na experiência francesa: o regime próprio dos funcionários públicos; o modo de organização da função pública, com sua multiplicidade de formas, de órgãos e entes públicos; as técnicas de descentralização e de desconcentração das atribuições administrativas; as autarquias; as empresas públicas; e as sociedades de economia mista.

No entanto, uma das principais feições do direito administrativo francês deixou de ser implantado no Brasil: o contencioso administrativo. De igual forma a construção jurisprudencial francesa do controle do abuso do poder político (excès de pouvoir) cometido pela autoridade administrativa foi substituída por uma figura mais amena e branda: o desvio de poder. Ao invés da figura mais abrangente da primeira, adotou-se o papel menor do desvio de poder que engloba somente o vício de finalidade dos atos administrativos[5].

Da influência francesa salta-se para a influência exercida pelo direito administrativo americano, época em que se sobressaem três grandes fases. A primeira surge com a reforma administrativa da era Vargas, a partir de 1937, “quando, sob a condução de técnicos do Departamento Administrativo do Serviço Público-DASP, com formação americana, montou-se uma nova estrutura” que iria marcar profundamente o sistema [6]. Em seguida, como uma espécie de segunda fase, vieram as concessões de serviço público, especialmente na área de águas e energia elétrica. O princípio da ação regulamentar do poder concedente substitui a concepção puramente contratual oriunda da experiência francesa. Surge o Código de Águas com regras básicas até hoje mantidas no plano constitucional. Uma terceira fase caracteriza-se pelo direito econômico tendo como marco a lei de combate ao abuso do poder econômico (Lei n. 4.137/62) – a primeira lei antitruste brasileira que cria o Conselho de Defesa Econômica-CADE, depois reformulado pela Lei  8.884/94[7] e, mais recentemente, a influência americana manifesta-se nas agências reguladoras criadas dentro do projeto recente de reforma do Estado brasileiro a partir da extinção das atividades de monopólio estatal verificadas na década de 70: “sua principal função é determinar o preço que seria o de mercado se houvesse mercado”.[8]

O controle da legalidade pelo judiciário

O controle da legalidade, onde o juiz, em princípio, não reexamina o conteúdo da decisão administrativa, limitando-se a declarar sua conformidade ou desconformidade com a lei e os efeitos daí decorrentes, é o objetivo da revisão judicial tanto no sistema americano quanto no brasileiro. Ocorre, no entanto, no direito americano, uma interpretação construtiva que leva, conforme BUCCI, a situações de inovação judicial, tendo, por conseguinte, uma atuação mais alargada em relação à brasileira.

Em relação às garantias dos cidadãos contra os abusos de poder da Administração – que corresponderia ao recurso por excesso de poder do direito francês – é o mandado de segurança, inspirado no writ of mandamus do direito anglo-saxônico . Nessa área das garantias processuais, agora já por influência predominantemente européia, notadamente a italiana, pretendeu-se uma resposta à demanda por meios de controlo da atuação administrativa. Mas qual o alcance e extensão do controlo jurisdicional da Administração? A matéria, sem dúvida, levanta questões relacionadas à legalidade, ao mérito e à discricionariedade administrativa. Alguns entendem que o controle judicial deve ser restrito, circunscrevendo-se somente à legalidade, esta entendida como uma atuação conforme a lei. Por esse entendimento, o controle judicial dar-se-ia somente quanto à competência, forma e licitude do objeto. Tratando-se de atos de poder, não haveria controle, invocando-se, para tal, o princípio da separação de poderes. Também com base na separação de poderes há os que justificam um controle alargado: se ao Judiciário cabe a jurisdição dentro de um sistema de contenção recíproca, logo, o controle da Administração é uma decorrência inevitável, inexistindo, pois, ingerência indébita [9].

Por fim, comungando dessa mesma argumentação, BANDEIRA DE MELLO[10] elabora o seguinte texto: “Não haverá indevida intromissão judicial na correção do ato administrativo, se o critério ou opção do administrador houverem sido insustentáveis, desarrazoados, manifestamente impróprios ante o plexo de circunstâncias reais envolvidas, resultando, por isso, na eleição de providência desencontrada com a finalidade legal a que o ato deveria servir. Sucede que, para chegar-se a tal conclusão, que deveria levar o juiz a abster-se de fulminar o ato ou, pelo contrário, a fazê-lo, é indispensável: a) que pleitos, envolvendo ampla discrição normativa, sejam admitidos; b) que perante eles o Judiciário investigue amplamente os fatos e que não titubeie em controlar a legitimidade destes atos, coibindo-se de assumir posição demasiado cautelosa pelo receio de invadir esfera de discrição administrativa”.

Em obra clássica sobre o tema no direito brasileiro, FAGUNDES[11]  apoiado em DUGUIT, BARTHÉLEMY e DUEZ,  lembra que todas as atividades da Administração são limitadas pela subordinação à ordem jurídica, não apenas tendo como fonte primária o texto legal, mas pautando-se segundo a orientação da lei e dentro dos limites por ela traçados. O princípio da legalidade, como visto, é aceito universalmente sem prejuízo da competência discricionária.

A Administração submete-se à ordem jurídica, porém, mediante um “tríplice sistema de controle das suas atividades: controle administrativo, controle legislativo, e controle jurisdicional. O controle administrativo é um autocontrole dentro da Administração. Objetiva corrigir os defeitos de funcionamento interno, aperfeiçoando-o no interesse geral, e ensejar reparação a direitos ou interesses individuais, que possam ter sido denegados ou preteridos em consequência de erro ou omissão na aplicação da lei”.[12] O controlo legislativo é essencialmente político tendo por base os aspectos da legalidade e conveniência ao interesse coletivo. Ao Poder Judiciário cabe o controlo jurisdicional o qual visa a proteção do indivíduo em face da Administração, mas também a defesa do interesse público. Num regime presidencialista como o brasileiro, deposita-se no Judiciário extrema importância em face de ser o único elemento fiscalizador das atividades executivas, haja vista a supremacia do Executivo sobre o Legislativo. O Judiciário aprecia a atividade administrativa tanto no âmbito das suas consequências para a ordem civil quanto para a ordem penal. FAGUNDES[13] afiança que o sistema de controlo pela jurisdição comum “assenta numa concepção da separação de poderes oposta à francesa, bem como na opinião de que os direitos individuais só ficam suficientemente amparados, em face dos atos administrativos, quando o exame contencioso destes é entregue a um órgão autônomo”.  Este é, sem dúvida, o sistema que melhor atende ao princípio da separação de poderes e especialização de funções, porque  dá margem a um regime de melhor equilíbrio entre os poderes, estabelecendo a reciprocidade de controlo.

Exceções ao princípio da legalidade – Há situações, porém, que escapam ao princípio da legalidade em condições políticas, sociais ou econômicas excepcionais, e que, conforme ROCHA[14], “refogem ao ordinário das condições da vida social no Estado para as quais são feitas as normas de Direito”. De fato, em casos tais, “o próprio sistema, para assegurar a juridicidade e a permanência do Estado de Direito, estabelece uma regulação jurídico-normativa de aplicação extraordinária, temporária e precária”

A Administração não age, então, segundo o voluntarismo do agente público, mas segundo normas que não são aquelas ordinariamente válidas e cumpridas. É a chamada teoria das circunstâncias excepcionais que promove uma aparente exceção ao princípio da legalidade. As circunstâncias excepcionais são estados sociopolíticos que expõem uma “situação de crise constitucional”, logo, de crise de todo o sistema de Direito.

No Brasil, as denominadas circunstâncias excepcionais são aceitas pela doutrina administrativista como restrições excepcionais ao princípio da legalidade, conforme a lição de BANDEIRA DE MELLO, que aponta, como restrições, (1) – as medidas provisórias – art.62, CF; (2) – o estado de defesa – art.136,CF; e (3) – o estado de sítio – art.137,CF.

No entanto, em que pesem sua excepcionalidade, são elas normas de Direito, são previstas pelo sistema de Direito do Estado, exatamente para que a Administração Pública não suspenda ou subverta a ordem jurídica, ou comprometa o Estado de Direito. Mas, são instrumentos que conferem ao poder político ampla e absoluta discricionariedade. Tem sua origem no Conselho de Estado francês, tendo como fonte a guerra, de 1914 a 1918.

Vinculação e Discricionariedade

 Vimos, já, que enquanto a vinculação se identifica pela impossibilidade de mais de um comportamento possível por parte da Administração, a discricionariedade abre um leque maior de opções ao agente, conforme um dos comportamentos que a lei prescreve. Cotejando, agora, as condições ou requisitos do ato administrativo com a vinculação e a discricionariedade, temos o seguinte resultado, com base no estudo de OLIVEIRA [15]: a) sujeito – será sempre vinculado. Não haverá possibilidade de ser ou não ser competente ao mesmo tempo; b) conteúdo – é o próprio ato. É o que ele prescreve ou dispõe. Motivo que trará ele, em seu bojo, a discricionariedade. É a condição através da qual o ato se revela, se exterioriza; c) finalidade – é sempre vinculada (interesse público). Mas os fins podem ser discricionários; d) formalidade – é sempre vinculante. A forma poderá ser discricionária; e) motivo – poderá ser discricionário, ou seja, poderá haver a escolha dos pressupostos. Quanto ao exame da causa, temos: f) causa – serve como limite de se apurar o poder discricionário [16]. É uma relação de adequação entre os pressupostos do ato e o seu objeto (conteúdo). É, em outras palavras, a correlação lógica entre o motivo e o objeto em função da finalidade legal do ato editado (GASPARINI). Quando os pressupostos não couberem no conteúdo, a ele não se adequarem, ou houver uma dissonância entre os motivos (pressupostos de fato) e o conteúdo, teremos um desvio de poder, limitado pela causa, que seria o limite do exercício da atividade discricionária.

A escolha da Administração, nos atos discricionários, se faz , como sabido, por critério de conveniência e oportunidade. A conveniência dá-se sempre que o ato interessa, convém ou satisfaz ao interesse público; a oportunidade traduz-se pela prática do ato no momento adequado à satisfação do interesse público. São, portanto, juízos subjetivos do agente competente sobre certos fatos e que levam essa autoridade a decidir de um ou de outro modo. “É a zona franca em que a vontade do agente decide sobre as soluções mais adequadas ao interesse público. É a sede de poder discricionário do administrador” (Conf. GASPARINI, p.88).

Os defeitos do ato administrativo no que concerne ao mérito (conveniência e oportunidade), serão sanados pela própria Administração. Esse saneamento não cabe ao Judiciário, salvo, como já se salientou, em casos de extravagante confronto com  o sistema normativo ou, nas palavras de BANDEIRA DE MELLO, quando “manifestamente impróprios ante o plexo de circunstâncias reais envolvidas, resultando, por isso, na eleição de providência desencontrada com a finalidade legal a que o ato deveria servir”.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

  1. Em breves considerações, podemos anotar, do que foi exposto, que o crescimento das funções estatais impôs ao Executivo novas atribuições, aumentou-lhe consideravelmente a incidência na vida social, o que está a exigir um controlo reforçado por parte de poderes que tiveram sua importância funcional reduzida. Assim, função política e função administrativa, embora não sejam funções exclusivas do poder Executivo, manifestam-se com imensurável força e vigor no seu interior, com tendência para prevalecer sobre os demais poderes. Há, evidente, com o aumento da esfera de interferência estatal na vida social, por parte de um dos ramos do poder –, o risco de comprometer conquistas já consolidadas no âmbito das garantias e liberdades. E o que é mais agravante: sem que as respostas aos novos desafios exigidos, sejam satisfatórias. Observado tais riscos, pode-se, contudo, afirmar que o princípio clássico da harmonia e independência entre os poderes, base do sistema democrático, embora sofra fortes altercações diante do crescimento desmesurado do Executivo, ainda assim,  deverá subsistir.
  2. Contudo, a manutenção da harmonia e independência entre os poderes não se fará sem ajustes importantes no sistema de separação de poderes. Deve-se reconhecer, nesse passo, que o Poder Judiciário, hoje reconhecidamente reduzido em suas proporções, mas se apoiado pelos novos atores sociais, entidades da sociedade civil, meios de comunicação, instituições classistas, a influenciar o conjunto da opinião pública em prol do interesse coletivo e no controle das atividades estatais –, poderá manter, na sua integralidade, as funções que lhes são precípuas no concerto entre os poderes. Para tanto, deverá aumentar seu campo de fiscalização sobre os atos de poder , excluindo qualquer imunidade, para que estes se mantenham nos limites traçados pelas balizas constitucionais. GARCIA DE ENTERRÍA [17], abeberando-se nas palavras de TOCQUEVILLE, sublinhou: A força dos tribunais tem sido, em todos os tempos, a maior garantia que se pode oferecer à independência individual, mas isto é, sobretudo, verdadeiro nos séculos democráticos; os direitos e os interesses particulares estariam sempre em perigo se o poder judicial não crescesse e não se estendesse à medida que as condições se igualam.
  3. O Estado liberal-social, que objetiva manter as conquistas do liberalismo e, ao mesmo tempo, acrescer as conquistas na área social, concentrou, como é evidente, muito poder no Executivo. As funções administrativas avultaram-se de tal maneira que se passou a falar em Estado-administrativo ao mesmo tempo em que decrescia o prestígio do Legislativo, apequenado em suas funções prevalentes em face das denominadas delegação de poderes transferência constitucional de competências, prática temerariamente usual no constitucionalismo contemporâneo. Com efeito, a interpenetração das funções não pode causar um desequilíbrio no controlo do poder pelo poder. Como vimos, a tônica a prevalecer entre os poderes, a chave do sistema, modernamente adaptado, consiste na integração de poderes com o inevitável entrelaçamento entre as funções, o que afasta a utilização exclusiva de qualquer delas e propicia um melhor controlo em face do Executivo.
  4. Os atos de poder não podem ficar imunes a um efetivo controlo judicial. A teoria da divisão de poderes, na lição de VALMAYOR, nasceu precisamente ante a necessidade de colocar o poder político nos limites da legalidade e de garantir as liberdades cidadãs – razão pela qual a atividade política, fruto dessa teoria, ao constituir-se num perigo real para as garantias reconhecidas aos cidadãos, não deixa de se afigurar como um paradoxo. A juridicização dos atos de poder constitui-se numa garantia contra qualquer forma atual de arbítrio, inclusive aquelas promovidas pelo poder econômico em cumplicidade com o órgão de direção política do Estado.
  5. Em que pese o esforço doutrinário para efetuar uma nítida distinção entre a atividade política e a atividade administrativa, ainda perdura uma certa dificuldade nesse campo. A função governamental, mais ostensiva, ganha maior visibilidade sobretudo quando da adoção de políticas econômicas e diante da assunção de compromissos internacionais. No entanto, saliente-se, no panorama atual, a crescente autonomia da administração a exercer um autêntico “poder oculto” no âmbito das funções estatais. Duas doutrinas tradicionais estudam o fenômeno: a primeira delas é a doutrina do Governo como parte do Poder Executivo e a segunda  é a doutrina do Governo como quarta função do Estado.
  6. VALMAYOR[18] garante que as novas soluções constitucionais diferenciarão, embora implicitamente, estes dois conceitos: (1) a atividade política constituirá o gênero uma vez que a mesma será desenvolvida conjuntamente por todos os órgãos do Estado; (2) a função de direcionamento político constituirá a espécie pois se concretizará no Governo como atividade de impulso e coordenação de toda a atividade política em geral (Funzione d’indirizzo político, da doutrina italiana).
  7. O traço característico dos atos de poder é o de serem editados em execução direta da Constituição (infraconstitucional), enquanto que os atos administrativos o são em nível de lei ordinária (infralegal). Apresentam ampla margem de discricionariedade, conferida diretamente pela Constituição, enquanto que os atos administrativos possuem uma discricionariedade vinculada ao princípio da legalidade. Sua edição, contudo, não é prerrogativa do Executivo, uma vez que as demais funções do Estado também exercem atividade política, a exemplo do Poder Judiciário que amiúde procede à revisão judicial das leis e dos atos normativos, diante da Constituição, anulando-os quando com esta incompatível.
  8. A função política, no Brasil, é exercida preponderantemente pelo presidente da República que, no caso brasileiro, reúne as atribuições de Chefe de Estado e de Chefe do Governo, cabendo-lhe a última palavra nas soluções emergenciais ou de vulto. A Política valora e sinaliza os fins a alcançar dentro de uma determinada coletividade e o Direito, por sua vez, constitui o meio para conseguir esta finalidade. Por isso, a primeira imprime um sentido e uma orientação – indirizzo – ao segundo (VALMAYOR). O Direito, sendo uma manifestação da Política, e sendo esta um prius em relação aquele, conclui-se que o poder político ao manifestar-se juridicamente se encontra por este mesmo motivo automaticamente limitado.
  9. Os atos de poder, conforme amplíssima abordagem feita por QUEIROZ[19], tem a sua controlabilidade decorrente da sua conformidade com a constituição. Por isso, a questão não será de legalidade mas de constitucionalidade. Assim, são eles cognoscíveis pelo Poder Judiciário, que deve contrastá-los com os princípios e preceitos constitucionais, e verificar se eles foram praticados em atenção à forma, à competência e à finalidade constitucionalmente definidas.
  10. O controle legislativo sobre determinados atos do Executivo não leva em conta os direitos individuais dos administrados, mas os superiores interesses do Estado e da comunidade. É um controlo eminentemente político , feito pelos órgãos legislativos ou por comissões parlamentares [20]. Esse controle, por ser feito em caráter político-jurídico, deve limitar-se ao que prevê a Constituição, para evitar a interferência inconstitucional de um Poder sobre outro [21].
  11. Num regime presidencialista como o brasileiro, deposita-se no Judiciário extrema importância em face de ser o único elemento fiscalizador das atividades executivas, haja vista a supremacia do Executivo sobre o Legislativo. O Judiciário aprecia a atividade administrativa tanto no âmbito das suas conseqüências para a ordem civil quanto para a ordem penal. FAGUNDES[22] afiança que o sistema de controlo pela jurisdição comum “assenta numa concepção da separação de poderes oposta à francesa, bem como na opinião de que os direitos individuais só ficam suficientemente amparados, em face dos atos administrativos, quando o exame contencioso destes é entregue a um órgão autônomo”. Este é, sem dúvida, o sistema que melhor atende ao princípio da separação de poderes e especialização de funções, porque  dá margem a um regime de melhor equilíbrio entre os poderes, estabelecendo a reciprocidade de controle.

De tudo quanto foi exposto, podemos acrescentar que tanto a Administração pública quanto os órgãos do poder, estes depositários da direção política do Estado,  limitam-se ao espaço demarcado pelos princípios e preceitos constitucionais, não podendo afrontá-los. Pela natureza de sua função, cabe ao Judiciário exercer o pleno controle constitucional dos atos de poder, que são em última análise atos jurídico-públicos, sem que isso signifique quebra no princípio da harmonia e independência entre as funções estatais, mas, ao contrário a afirmação dos seus mais lídimos fundamentos. Mas essa atividade judicante se fará, repita-se, dentro das balizas constitucionais, não podendo ultrapassá-las, sob pena de este poder incorrer, ele próprio, em abuso e desvio de função…

Referências bibliográficas (conf. as obras contidas na bibliografia)

[1] Conf. o nosso “Relatório referente à disciplina de Direito Constitucional”  apresentado ao Professor Doutor Jorge Miranda, sobre o tema “O Contencioso administrativo e os atos políticos – controle, limites e competência em Portugal e no Brasil”.

[2] FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Comentários à Constituição Brasileira de 1988, vol.I, 1990, p. 55

[3] MEIRELLES, ob. cit., p. 673

[4] BUCCI, Maria Paula Dallari. Direito administrativo e políticas públicas. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 53

[5] BUCCI, ob. cit., p.53

[6] BUCCI, ob. cit., p. 74

[7] BUCCI, ob. cit., p.76

[8] BUCCI, ob. cit., p. 78

[9] MEDAUAR, ob. cit., pp.171/173

[10] BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. O controle judicial dos atos administrativos,in RDA 152/15, abr-jun/1988, apud MEDAUAR, ob. cit., p. 174

[11] FAGUNDES, Miguel Seabra.  O controle dos atos administrativos pelo poder judiciário. Rio de Janeiro: Revista Forense, 3ª edição, 1957, p. 113

[12] FAGUNDES, ob. cit., p. 121

[13] FAGUNDES, ob. cit. p. 146

[14] ROCHA, Carmen Lúcia Antunes. Princípios  Constitucionais da Administração Pública. Belo Horizonte: Del Rey, 1994, p.126

[15] OLIVEIRA, Régis Fernandes.  Ato administrativo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 3ª edição, 1992, p. 92

[16] ANDRÉ GONÇALVES PEREIRA, Lisboa, Ática, 1962, p.122, apud GASPARINI e OLIVEIRA, ob. cit., p.92

[17] GARCIA DE ENTERRÍA, Eduardo. La lucha contra las inmunidades del Poder em el derecho administrativo. Madrid: Editorial Civitas, 1979, p. 99

[18] VALMAYOR, ob. cit., p. 629

[19]  QUEIROZ, ob. cit., ps. 177/193

[20] MEIRELLES, ob. cit., p. 666

[21] Conf. STF, RTJ 143/510 – apud MEIRELLES, ob. cit., p. 667

[22] FAGUNDES, ob. cit. p. 146

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