CECGP

Notícia

Centro de Estudos Constitucionais e de Gestão Pública

As Dificuldades para dar Efetividade à Constituição de 1988

SERGIO TAMER

É doutor em direito constitucional pela Universidade de Salamanca e autor dos livros Fundamentos do Estado Democrático e a Hipertrofia do Executivo no Brasil (RS, Fabris, 2002); Atos Políticos e Direitos Sociais nas Democracias (RS, Fabris, 2005); La garantia judicial de los derechos sociales y su legitimidad democrática (Salamanca, Ratio Legis, 2018); é presidente do Centro de Estudos Constitucionais e de Gestão Pública- CECGP.

O CECGP, com esta edição especial da Revista Juris Advocatus, celebra os 30 anos da nossa Constituição. Em 2013 realizamos o seminário “A Reforma Política e o Clamor das Ruas”, mas até aqui nem a Reforma veio tampouco a classe política deu ouvidos àquele inusitado movimento que havia sacudido o País. Promessas constitucionais não cumpridas pelo Poder Executivo, sobretudo no campo social, provocaram uma mudança radical do eleitorado cujo resultado foi estampado nas urnas de outubro de 2018. Mas se as políticas públicas são precárias ou inexistentes para garantir direitos fundamentais sociais, como temos constatado nos últimos anos no Brasil, não podemos atribuir a culpa à Constituição. Ela fez a sua parte. A doutrina e a jurisprudência também. Mas na hora de dar efetividade à norma constitucional de natureza social o Poder Executivo se complica. O que se passa com o Brasil, uma economia pujante e moderna, mas atrasado socialmente? Há, de fato, uma enorme dificuldade para fazer chegar os direitos sociais ao conjunto da sociedade e este é um tema constitucional de extrema importância, pois está vinculado à efetivação dessas normas fundamentais, sobretudo em um país como o nosso que guarda diferenças regionais e de desenvolvimento bastante acentuadas.

É certo que as constituições de natureza liberal-social, como a brasileira, ou a social-democrática, como a portuguesa e a espanhola, dão uma extraordinária importância à implementação dos direitos sociais e à dignidade da pessoa humana. No Brasil, o art. 1º da Constituição estabelece como um dos fundamentos do estado a dignidade da pessoa humana. A Constituição portuguesa de 1976, que teve uma grande influência sobre a primeira, igualmente estabelece em seu artigo 1º que “Portugal é uma República soberana, baseada na dignidade da pessoa humana”. Na Constituição espanhola de 1978 se lê em seu artigo 10.1 que “a dignidade da pessoa, os direitos invioláveis que lhe são inerentes, o livre desenvolvimento da personalidade, o respeito à lei e aos direitos dos demais são fundamento da ordem política e da paz social”. Interpretando essa linha de pensamento constitucional e europeu o constitucionalista português Jorge Miranda afirma que “de modo direto e evidente os direitos econômicos, sociais e culturais comuns tem a sua fonte ética localizada na dignidade da pessoa, de todas as pessoas”. Sob esse enfoque, a erradicação da pobreza e a redução das desigualdades sociais e regionais – que na Constituição brasileira aparece no art. 3º, III, como um dos objetivos fundamentais da República – vem sendo uma das maiores prioridades na construção de sociedades mais justas, ao mesmo tempo em que se reconhece cada vez mais que as causas e condições da pobreza são diferentes para homens e mulheres, negros e brancos. Por isso, há que reconhecer-se que as necessidades de mulheres e negros devem levar-se em conta de maneira explícita e efetiva nas estratégias para reduzir a pobreza bem como nas políticas de geração de emprego e renda.

Nesse panorama estamos celebrando os 30 anos de uma Constituição democrática que nos trouxe muitas promessas sociais e também, com elas, algumas frustrações. Nesse ponto, devemos sempre atentar para a advertência feita pelo cientista político Robert Dahal no sentido de que a democracia, para que exista plenamente, tem que ir “de mãos dadas com vários companheiros de viagem, entre os quais estão a cultura política, o desenvolvimento econômico e a modernização social”. Entretanto, em nosso país, constatamos que a cultura política de natureza oligárquica e patrimonialista freia o desenvolvimento econômico e impede a modernização social, vale dizer, o acesso aos bens econômicos, culturais e sociais. Noberto Bobbio, em sua vasta obra, recorda que o desenvolvimento dos direitos humanos passou por três fases, uma das quais é a da proclamação dos direitos sociais que em sua concepção expressam a maturação das novas exigências, inclusive dos novos valores, como os de bem-estar e de igualdade não somente formal, que se poderiam chamar de liberdade “através” ou “por meio” do Estado. O próprio filósofo de Turín assinala, com absoluta propriedade, que

 “[…] el argumento más fuerte dado por los reaccionarios de todos los países contra los derechos humanos, en especial contra los derechos sociales, no es ya la falta de fundamento en sí, sino su imposibilidad de realización. Cuando se trata de enunciarlos el acuerdo se consigue con relativa facilidad, independientemente de la mayor o menor convicción de su fundamento absoluto: cuando se trata de pasar a la acción, aunque fuese el fundamento indiscutible, comienzan las reservas y oposiciones.” 

Dessa forma e, seguindo a linha de raciocínio de BOBBIO, o problema a que nos defrontamos não é filosófico senão jurídico e, em sentido mais amplo, político. Não se tratam de averiguar “quais e quantos são esses direitos, qual é sua base e sua natureza, se são direitos naturais ou históricos, absolutos ou relativos, senão melhor dizendo qual é a maneira mais segura de garanti-los para impedir que sejam violados continuamente, apesar das declarações solenes”.

Com tais considerações preliminares realço aqui o fato de que a hipótese por nós averiguada foi no sentido de que a garantia judicial dos direitos sociais depende, em larga medida, da eficácia das políticas públicas bem como da eficácia dos instrumentos processuais de que dispõe o cidadão para o exercício desses direitos e, inclusive, com uma clara compreensão da função do Poder Judiciário no âmbito do Estado Social e Democrático de Direito, como propõe a Constituição brasileira que é, ela própria, uma síntese liberal-social. Temos, dessa forma, como premissa, que os indivíduos possuem direitos subjetivos às prestações estatais e às consequentes políticas públicas para fazê-los efetivos e que o Poder Judicial tem legitimidade e competência para assegurar o desfrute dos direitos sociais e provocar a execução das prestações e políticas sociais do Estado.

Mas, como consequência dessas questões outros questionamentos chaves são necessários, como, por exemplo: a) Qual é o limite e extensão do exercício da função política, por parte do Poder Judiciário, no campo da garantia dos direitos sociais? b) É possível, sem afrontar o princípio clássico da harmonia e independência entre os poderes, garantir direitos fundamentais omitidos pelas políticas públicas a cargo do Executivo? c) Que princípios constitucionais poderão prevalecer para a concretização dos direitos sociais por parte do Poder Judiciário?

O professor Ingo Sarlet, seguindo a linha de outros autores de igual importância, aduz que admitir a sua plena judicialidade supõe colocar o controle da agenda política e do próprio orçamento estatal em mãos do Poder Judiciário e não do Parlamento. Por isso, defende que a lei se apresenta, com relação a esses direitos, como condição sine qua non, é dizer, a atuação legislativa se faz necessária para determinar o modo e os limites do direito, não a sua existência. Para o professor JJ Gomes CANOTILHO, a violação do direito às prestações por parte do legislador inativo ou de um Executivo inerte equivale, em gravidade jurídico-constitucional à interferência ilícita no âmbito da liberdade e da propriedade dos cidadãos. Entendemos, nesse contexto, ainda que com certo dissenso, que a omissão legislativa ou de políticas públicas no que se refere à concessão de um padrão elementar de dignidade deve suprir-se por meio dos instrumentos processuais de garantia judicial. Portanto, consideramos que quando uma Constituição como a brasileira de 1988 – que agora completa 30 anos de existência – incorpora uma serie de direitos sociais e adota uma cláusula explícita de auto-aplicabilidade, como a do parágrafo 1º do art. 5º , a garantia efetiva dos direitos sociais passa a ser um dever político compartido por todas as esferas do poder do Estado, o que afasta a suposta ilegitimidade do Poder Judiciário ao assegurar, neste âmbito, as chamadas prestações positivas do Estado.

Todavia, no Brasil, em que pese as garantias legislativas e judiciais para tornar efetivo os direitos sociais, a estrutura cultural e política do Estado oferece um obstáculo suplementar a esse propósito. Tais obstáculos, contudo, não aparecem explícitos na doutrina jurídica nacional – que sequer os mencionam – bem como na doutrina internacional que via de regra elegem obstáculos de outra ordem para a efetivação desse direitos. No entanto, tais entraves, entre nós, são compostos por elementos culturais e políticos historicamente arraigados, e por isso detentores de um poder avassalador sobre o sistema de garantias de natureza prestacional a ponto de sufocá-lo e de oferecer um risco permanente à efetividade constitucional nessa área, a saber: 1) a burocratização; 2) a corrupção; 3) as políticas públicas ineficientes ou inexistentes; 4) os direitos sociais tomados como “assistencialismo social” em detrimento de seu caráter universal. Indubitável é que a burocratização e a corrupção são como irmãs siamesas neste processo cultural e político. Uma alimenta a outra. E assim, tanto uma como outra, atuando em sua peculiar maneira de ser nas estruturas estatais, bloqueiam ou dificultam até à sua inefetividade as políticas públicas destinadas a cumprir os mandamentos constitucionais ou infra constitucionais. Como se sabe, não há déficit legislativo no Brasil pois aqui temos lei para tudo, especialmente nesse campo. O que há é um retumbante fracasso na execução das políticas públicas pois os direitos sociais passaram a cumprir, de forma demagógica, uma função partidária e eleitoral como fruto de uma prática assistencialista e clientelista, originárias que são de práticas oligárquicas e que se aperfeiçoaram com o tempo, passando por vários governos. Assim, falam-se nos comunicados oficiais para o fomento de programas governamentais em “direitos sociais” que na realidade nem são aqueles de natureza constitucional e sequer o são de assistência social – mas de simples programas de caráter eleitoral o que seria mais bem apropriado chamá-los de “assistencialismo social”.

Ressalte-se que esse partidarismo “assistencialista-eleitoral” se localiza tanto no âmbito federal quanto na esfera estadual e municipal do poder político. Uma prática que, lamentavelmente, desvirtua o caráter universal desses direitos e compromete a sua eficácia plena. Conclusões A jovem Constituição brasileira, nascida que foi sob o estigma de um longo período de governos militares, reúne de forma detalhada duas grandes famílias de Direito, os de liberdade, representados pelos direitos civis e políticos, e os de igualdade, onde situam-se os direitos sociais. Assim, a premissa básica nos estados sociais e democráticos de direito reside em não haver liberdade efetiva onde não haja direitos sociais básicos. Essa é a condição política estruturante para a decantada promoção kantiana da igualdade de oportunidades. Democracia, desenvolvimento e direitos humanos – ainda que não seja possível encontrar plenamente atendidos nos Estados contemporâneos, passaram a ser indispensáveis para legitimar esses mesmos Estados. O princípio da dignidade da pessoa humana ganha destaque, nesse cenário, como valor supremo, e passa a ser a fonte por excelência dos direitos fundamentais. Mas o grande desafio para o constitucionalismo social continua sendo o de reduzir a distância estrutural entre normatividade e efetividade. Por fim, não culpemos a Constituição de 1988 pelas transgressões e desvirtuamos a que ela tem se submetido, ora por práticas abusivas do Executivo ora por excesso de invocações principiológicas e de teorias estapafúrdias adotadas em profusão por eminentes membros do Judiciário a mitigar o caráter soberano de suas normas que, ao fim e ao cabo, se reescrevem em cada julgado. E se é verdade que a Constituição democrática é a “união do povo com o Estado” deixemos que esse casamento seja duradouro, ainda que em meio às suas relações conflituosas, evitando, assim, tantas infidelidades constitucionais…