“O seu mérito está em servir com patriotismo na defesa das instituições e da pátria, – e jamais em sair da sua própria esfera de ação, para impor a sua vontade, ou antes, o guante de sua força às classes civis, que formam a quase totalidade do povo ou da nação.” – Amaro Cavalcante (1849-1922).
Por Sergio Victor Tamer*
O espírito de corpo – Se até 1954 as motivações intervencionistas foram as causas “nobres” relacionadas com a tendência puritanista da pequena burguesia, representada maciçamente nos quartéis, a proclamação da República, no entanto – reconhece o ex-presidente do Senado Jarbas Passarinho (1981-1983) – teve como causa imediata o ferimento do brio militar, as ofensas dirigidas por políticos aos militares, e o espirit de corps acabou falando mais alto do que a obediência e a disciplina, situação que viria a repetir-se nos eventos de 1922 com o episódio das cartas do Dr. Arthur Bernardes. Ocorre ainda, segundo PASSARINHO, uma espécie de caráter endêmico nas intervenções militares, isso na maior parte dos cinco continentes. Reportando-se a SAMUEL FINER[1], acrescenta esta observação:
“Os golpes de 1958 a 1961 nada tiveram de excepcional. Dos 51 estados que existiam antes de e até 1917, todos, salvo 19, experimentaram golpes dessa natureza desde 1917, enquanto que dos criados entre 1917 e 1955, que foram 28, só 15 não sofreram essa sorte.”
Conclui, então, que há uma categoria de países nos quais os militares constituem nítido fator político, exercido de maneira iterativa, não se confundindo com fenômenos excepcionais e efêmeros. No entanto, ressalva que são incólumes às intervenções militares de natureza política, as velhas democracias em que o exercício do poder civil se faz escrupulosamente em obediência à lei, sem dissociação entre poder e autoridade tão comuns nas democracias incipientes e instáveis.
No caso brasileiro, sustenta a defesa dessas intervenções também sob o argumento de que os militares não poderiam ficar insensíveis à vasta fraude que dissociava, radicalmente, a vontade nacional, da representação eleitoral. No tocante ao espírito de corpo, JOSÉ MURILO[2] indaga se a arraigada tradição corporativista e talvez mesmo os valores corporativistas da sociedade não teriam ajudado a tornar mais palatável a intervenção dos militares na política.
Todavia, ao escrever, após o decurso dos dez primeiros anos da República entre nós, sobre o “Regime Federativo e a República Brasileira”, obra inicialmente publicada em 1899, AMARO CAVALCANTI[3] dedicou um capítulo sobre o envolvimento dos militares em diversos episódios de força verificados nos três primeiros governos, para aludir, em síntese, que, “… na maior parte deles, os seus autores ou diretores políticos procuraram, quase sempre, envolver o elemento militar. Ora insinuando perfidamente às classes armadas que elas, tendo tido ação decisiva na proclamação da República, deviam continuar a ter a última palavra na direção política do país; – ora lisonjeando a inexperiência da mocidade das escolas militares; proclamando-a como o sustentáculo mais forte da República; ora, finalmente, estimulando as ambições pessoais ou concitando os ânimos, a título de injustiças, reais ou não, provenientes de atos da administração pública…”
AMARO, que havia sido senador da República (1890), membro da assembleia constituinte (1891), ministro do Interior (1897) e posteriormente se aposentado no cargo de ministro do Supremo Tribunal Federal (1915), constatava, então, que os partidos políticos pautavam suas ações à custa das forças militares e que, muito embora muitos oficiais repelissem esse procedimento, outros, ao contrário, mal compreendendo seus direitos e deveres, se deixavam levar “pelos planos ilusórios de um bem, que não passa de um embuste bem mascarado”.
Em relação ao sistema dos pronunciamentos militares, com que a armada se valia para dirimir as contendas políticas, era tido por AMARO como “fatal às liberdades públicas” e, “igualmente prejudicial à própria sorte das classes armadas.” Com profunda argúcia, observava: “Os vencedores de hoje serão, por sua vez, os vencidos de amanhã, – e o braço forte das revinditas sucessivas aniquilará, alternadamente, todas as posições, todas as vantagens obtidas. Tal é a curta história do militarismo em toda parte.”.
De fato, como instituição permanente da República, não se acham, entre as funções das forças armadas, “nem ditar a lei, nem dirigir os destinos políticos da Nação”, mas, como inferiu AMARO , “o seu mérito está em servir com patriotismo na defesa das instituições e da pátria, – e jamais em sair da sua própria esfera de ação, para impor a sua vontade, ou antes o guante de sua força às classes civis, que formam a quase totalidade do povo ou da nação.”
Infelizmente, a história tem demonstrado o inverso e a república brasileira está toda ela pontilhada de intervenções militares, ora ditando as leis, ora dirigindo “os destinos políticos da Nação”, tradição que se manteve desde a sua proclamação a qual se deu, aliás, sobretudo por questões militares. A história do militarismo no Brasil, pelo que se analisou até aqui, não tem sido curta, ao contrário do que pensava AMARO, pois quando as forças armadas não se acham ostensivamente no poder nele permanecem, de forma camuflada, a exercer um papel de eminência parda dos governos presidenciais.
A defesa da “lei e da ordem” – Observa-se, sob outro prisma, que desde a Constituição de 1891 as forças armadas desempenham o papel de defesa da “lei e da ordem”, contrariamente ao que queriam alguns constituintes de 1988 que objetivavam limitar esse papel à defesa externa. Contudo, rejeitou-se a expressão “poderes constituídos”, em favor de “poderes constitucionais” pretendendo-se, com isso, negar amparo para governantes que conquistassem o poder através de golpe de Estado. O Poder Executivo não ficou com o monopólio de utilização das forças armadas, facultando-se a qualquer dos poderes constitucionais a sua convocação para a defesa da “lei e da ordem”.
Se do ponto de vista da Constituição de 1988 as forças armadas não são tutoras do Estado, muito menos Poder Moderador (extinto com a queda do 2º Império), mas sendo o presidente da República o seu chefe supremo, permanece a tradição de predomínio do Executivo sobre os demais poderes da União, situação alicerçada pela cultura nacional marcadamente intervencionista, de ranço positivista, e desejosa de um presidencialismo “forte” que data da proclamação da República.
JOSÉ MURILO DE CARVALHO, hodiernamente, em sua palestra sobre militares e civis[4] observa que a tutela militar foi normal na cena política da “Nova República” (1985-1990), dando a impressão de que deverá continuar a ser exercida. É como se houvesse concordância tácita – diz ele – de que ela não pode ser afastada ou de que não pode ser dispensada. Acredita ter havido consenso entre analistas de nossa política de que o presidente da República (José Sarney) teve, naquele período, como seu mais confiável sustentáculo político as forças armadas, particularmente o Exército.
Sergio Victor Tamer (69) é mestre em Direito Público pela UFPe, doutor em Direito Constitucional pela Universidade de Salamanca e pós doutor pela Universidade Portucalense. Professor e advogado – possui as seguintes obras publicadas sobre o tema: “Fundamentos do Estado Democrático e a Hipertrofia do Executivo no Brasil” – Ed. Fabris, RS,2002; “Atos Políticos e Direitos Sociais nas Democracias” – Ed. Fabris, RS, 2005; “Legitimidad Judicial en la Garantía de los Derechos Sociales”, Ed. Ratio Legis, Salamanca, ES, 2013.
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[1] SAMUEL FINER : Los Militares en la Política Mundial: Edit. Sudamericana, Buenos Aires, 1969, p. 17, apud Jarbas Passarinho, ob. cit., p. 416.
[2] JOSÉ MURILO DE CARVALHO: Militares e civis: um debate para além da constituinte : (MG/1990) : Anais da XIII Conferência Nacional da OAB: Conselho Federal, DF : 1991, p. 432
[3] CAVALCANTI, Amaro ( 1849-1922 ) : Regime federativo e a república brasileira: Brasília, Edit. UNB , 1983, p. 330
[4] Ob. cit. , p.440