Rita de la Feria é professora catedrática de Direito Tributário na Universidade de Leeds, no Reino Unido e participou (11/03) da primeira audiência pública da Comissão Mista da Reforma Tributária no Congresso.
Ela afirma que a tributação sobre o consumo utilizada pelo Brasil é a pior do mundo. Isso porque o país descumpre uma série de “princípios-chave” para uma boa tributação: tem tributos setoriais, diversas isenções, uma multiplicidade de alíquotas e impostos cumulativos.
A solução, para a pesquisadora, seria a criação de um IVA, nos moldes do previsto na PEC 45/2019. De la Feria, que prestou assessoria em política tributária ao governo português e acompanhou países como Moçambique, Angola e São Tomé e Príncipe na implementação de IVAs, defende ainda que uma reforma pode auxiliar o Brasil a frear a crise econômica pela qual passa o país. “O sistema tributário brasileiro atual é um impedimento ao investimento porque é muito complexo. É um impedimento à competitividade dos seus produtos porque tributa as exportações”, afirma.
A volta da CPMF ainda é tema polêmico no Brasil. Rejeitado pelo Congresso, o tributo volta e meia volta à discussão pelo Executivo.
Para a especialista em política tributária Rita de la Feria, professora catedrática de Direito Tributário na Universidade de Leeds, no Reino Unido, entretanto, impostos nesses moldes são “destrutivos à economia”, já que incidem em cascata e incentivam a informalidade. “No fundo este imposto vem na direção absolutamente oposta do que estamos fazendo a nível internacional”, diz.
Em entrevista concedida ao Boletim Jurídico JOTA, Rita de la Feria assim se posicionou:
Quais elementos devem ser observados em uma reforma tributária?
Em termos de tributação indireta, a melhor prática internacional é a de implementação de um IVA. O ICMS do Brasil começou como uma tentativa de fazer um IVA, mas hoje não é, nem de perto e nem de longe, um IVA. Primeiramente porque o mundo evoluiu muito, e aquilo que se pensava que era um IVA na década de 1960, quando os IVAs começaram a ser implementados na América Latina e na Europa, já evoluiu muito. E depois porque o Brasil já alterou muito os impostos, e não tem hoje um IVA verdadeiro.
Hoje a maioria dos países do mundo tem um IVA, alguns melhores e outros piores, mas eu posso dizer que o sistema de tributação do consumo no Brasil é o pior do mundo
Há uma série de princípios-chave para uma boa tributação do consumo, e há vários países que violam uma ou outra característica, mas o Brasil viola todas. A primeira é que deve haver um imposto geral sobre o consumo que abranja todos os setores, a segunda é uma base tributável alargada, com o mínimo de isenções e uma alíquota uniforme. A terceira é um imposto multifásico, e não cumulativo, e a quarta é que deverá haver a tributação no país de destino.
Há vários países que violam uma dessas regras. Na Europa temos mais de uma alíquota, infelizmente, mas não é como o Brasil, temos três, e temos alíquotas múltiplas. Há outros países que têm isenções, há países que tiveram aplicação setorial, há vários que violam a não-cumulatividade porque não têm capacidade financeira para dar créditos. E o problema no Brasil é que vocês têm isso tudo.
O sistema de tributação sobre consumo no Brasil neste momento é setorial: são cinco tributos para fazer as vezes de um. Existe uma base tributável muito reduzida e muito heterogênea, com uma quantidade brutal de alíquotas. Há isenções, regimes especiais e um problema de cumulatividade, os impostos são todos cumulativos. E há uma tributação na origem interna.
Não dá para alterar só um pouco o sistema atual, porque os problemas do Brasil são demasiadamente grandes. A única solução é começar do zero.
Nós temos basicamente duas propostas de reforma tributária em tramitação no Congresso. A senhora acha que elas seriam suficientes para resolver o problema?
A proposta da PEC 45, que eu estou mais familiarizada, corresponde a todas estas regras. Vai ter um só imposto, com uma base alargada, uma alíquota uniforme, não-cumulatividade multifásica e tributação no destino.
O ministro Paulo Guedes demonstra um interesse em um tributo sobre movimentação financeira, sobretudo online. Como a senhora vê essa possibilidade?
Não cabe a mim comentar a situação política no Brasil, portanto não cabe a mim fazer comentários sobre uma proposta específica do ministro Paulo Guedes. Eu posso falar em abstrato sobre como, em termos de política tributária, é vista a prática internacional relacionada a esse imposto. E eu posso dizer que é muito negativa.
Este imposto é visto como muito destrutivo à economia porque ocorre em cascata e distorce a cadeia de produção
Tem um problema ainda maior, que é a criação de um incentivo à informalidade, de [o cidadão] não usar o sistema financeiro, mas pagar em dinheiro. E uma vez pagando em dinheiro a capacidade para controlar a economia é muito diminuída. Em Israel, por exemplo, haviam propostas de tributar as transações em dinheiro, para desincentivar as pessoas a usarem dinheiro porque, uma vez estando com cartão de crédito, se controla tudo. Com dinheiro não se controla nada.
No fundo este imposto vem na direção absolutamente oposta do que estamos fazendo a nível internacional. Outros países já consideraram, mas neste momento só existe um [imposto desta natureza] em vigor, na Colômbia, e mesmo lá existem resistências por conta das distorções que o imposto causa. A única razão de ainda existir, segundo colegas colombianos, é que a tendência de receita é grande.
Quando vamos fazer um sistema tributário a receita é só uma das considerações, e pode não ser a mais importante. Uma das mais importantes é o efeito na produtividade e na economia do país.
A senhora falou sobre os incentivos fiscais, que aqui no Brasil são muitos. Acha que a solução seria um sistema sem nenhum incentivo fiscal, nem mesmo para saúde, educação ou medicamentos, por exemplo?
Quem vai às clínicas e escolas privadas? O sistema público não estará no imposto, porque é de graça.
É preciso deixar claro que quando falamos de saúde e educação não estamos falando para todos, estamos falando da saúde e da educação que é paga, e que só é utilizada por uma porcentagem pequena da população brasileira. Em termos de política tributária não estamos protegendo os mais pobres ou carentes, estamos protegendo o consumo de pessoas como eu, que vou a clínicas privadas, e meus filhos estão em escolas privadas.
É bom que esteja claro qual o objetivo destas propostas, e dissociar o objetivo que é dito do que é possível. Em termos de finanças públicas, quem utiliza mais os serviços públicos são as famílias carentes, portanto cada vez que retiramos tributos que seriam pagos por pessoas como eu, é receita que não é reinvestida no serviço público, que vai necessariamente proteger as pessoas carentes.
É a mesma questão da tributação dos lucros e dividendos?
Esta é uma questão de competitividade externa, não devemos olhar só o que é bom para o Brasil em termos isolados, mas o que é bom em termos de competitividade externa.
E essa é outra questão: quando retiramos a cumulatividade do imposto a exportação sai sem imposto nenhum, e neste momento há uma situação absolutamente surreal no Brasil que é a tributação das exportações. Ninguém faz isso no mundo. Do ponto de vista da balança comercial esta é uma das coisas básicas: tributa-se as importações e isenta-se as exportações.
Hoje, no Brasil, não é possível saber o que está na exportação, porque existem tantos regimes especiais que possivelmente será impossível analisar produto a produto, serviço a serviço o que é ICMS, o que é PIS, o que é Cofins, o que está lá dentro. E não é em uma etapa anterior da cadeia de produção, mas pode vir de cinco etapas. Com isso o Brasil reduz a competitividade externa dos produtos.
Acho que parte do problema é que há uma espécie de aceitação pública de que este é o sistema, mas na verdade há coisas muito melhores
E não há razão prática para o Brasil não avançar para um sistema dos mais avançados. Vocês têm uma administração tributária extremamente competente, um sistema de softwares extremamente bom. Há países que têm dificuldades com a pouca capacidade da administração tributária, por exemplo. Há países que não têm dinheiro para comprar o software necessário para gerir o imposto digital, mas não é esse o caso do Brasil.
As discussões no Congresso têm girado em torno de termos um sistema tributário mais simples e justo. Um sistema mais simples é necessariamente mais justo? Como unificar esses dois fatores?
Há muita discussão em torno do IVA ser regressivo e as alíquotas reduzidas ajudarem mais os mais pobres, mas não é bem assim por uma série de razões. Eu vou dizer as duas principais: porque muitas vezes, quando estudamos o efeito nos preços de redução das alíquotas, verificamos que muitas vezes as alíquotas reduzidas não são refletidas nos preços. Isto é um problema de incidência.
Mesmo em bens fundamentais, como a comida, quando nosso rendimento aumenta, nosso consumo desses produtos básicos aumenta proporcionalmente. Ou seja, quando se isenta quem está sendo mais beneficiado são as pessoas mais ricas. São esses que não estão pagando o imposto. O que identificamos é que quando nós introduzimos as alíquotas mínimas ou as isenções aumenta a regressividade do imposto das pessoas mais ricas.
Atravessamos uma crise econômica no Brasil. A senhora acha que a instituição de uma reforma tributária melhoraria esse cenário?
Claro. O sistema tributário tem consequências na cadeia de produção. O sistema tributário brasileiro atual é um impedimento ao investimento porque é muito complexo. É um impedimento à competitividade dos seus produtos porque tributa exportações.
No Brasil há a proposta de, apesar da reforma tributária, manter o Simples nacional, que abrange pequenas e médias empresas. A senhora acha que a opção faz sentido?
Às vezes, em um período de transição, faz sentido manter algumas partes [do sistema antigo] que poderiam ajudar as pequenas empresas. Mas, por princípio, os limiares para entrada em vigor dos IVAs, quando são muito altos, causam problemas.
Na Europa estamos enfrentando esse problema. Já tínhamos antes, mas agora está pior por conta da digitalização da economia, a chamada Gig Economy, que funciona com pessoas que atuam como trabalhadores independentes, e não passam o limiar para serem contribuintes do IVA. Mas as empresas que prestam o mesmo tipo de serviço são contribuintes do IVA. Isso causa uma grande distorção à concorrência.
BÁRBARA MENGARDO – Editora
BERNARDO GONZAGA – Repórter
BRASÍLIA
10/03/2020