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COCHRANE, O POLÊMICO MARQUÊS DO MARANHÃO – por Antonio Carlos Lima, da Academia Maranhense de Letras

Contratado pelo imperador D. Pedro I, que o colocou no comando da Primeira Esquadra da Marinha brasileira, formada por grande número de marinheiros ingleses e norte-americanos, obrigou as províncias, uma a uma, a jurarem fidelidade ao império brasileiro…

Mais de um ano depois de ter submetido o Maranhão ao nascente império brasileiro, com a expulsão dos portugueses que insistiam em manter a província sob o domínio de Portugal, o almirante escocês Thomas Alexander Cochrane, 10º. Conde de Donaldson, retornou a São Luís, onde, por seus atos, comprometeu em definitivo sua reputação na história do país. De herói da Independência, transformava-se em usurpador. 

Chegou a São Luís no dia 9 de novembro de 1824. Sem credenciais para tanto, e sob o pretexto de pacificar a província, destituiu o presidente da Junta Provisória que fora eleita com sua aprovação durante a primeira viagem. Depois de longa negociação, obrigou a Câmara, sob a ameaça de canhões e tropas de que não dispunha, a aprovar o confisco de todo o dinheiro do tesouro maranhense (106 mil contos de reis). Ameaçado de prisão se voltasse ao Rio de Janeiro, seguiu para a Europa. Nunca mais retornou ao Brasil. 

No excelente livro Lorde Thomas Cochrane (G. Ermakoff Casa Editorial), publicado no final do ano passado e já saudado como “a mais alentada e bem documentada” biografia desse militar escocês, o escritor George Ermakoff procura demonstrar que os excessos praticados pelo almirante, inclusive no Maranhão, não desmerecem os serviços por ele prestados ao país. Por essa razão, questiona a sua exclusão da galeria de heróis da Independência ou quando menos da galeria de heróis da Marinha brasileira, da qual foi o Primeiro Almirante. 

Ermakoff, que não esconde nenhum dos defeitos de seu biografado, os maiores dos quais foram, sem dúvida, a sua personalidade insubmissa e sua obsessão por dinheiro, razões de seus desentendimentos com o império brasileiro, retrata em seu livro um nobre ilustrado, um homem de luzes, um inventor de talento, um guerreiro implacável, um liberal na política, afoito, valente, astuto, vítima de incompreensões e injustiças, inclusive na Inglaterra, pela qual lutou nas guerras napoleônicas. 

E observa que a historiografia brasileira sobre a Independência é, preponderantemente, injusta com o almirante. 

De fato, deve-se a Lorde Cochrane a consolidação da independência do Brasil, com a manutenção de seu território de dimensão continental. Sem ele, concorda a maioria dos historiadores, a nação que nasceu a 7 de setembro de 1822 poderia estar resumida às regiões Sudeste e Sul. Contrárias ao império nascente, as províncias do Norte e do Nordeste, da Bahia ao Amazonas, fizeram ouvidos moucos ao Grito do Ipiranga. E poderiam ter permanecido como colônia portuguesa ou se fragmentado em repúblicas independentes, como as que floresceram na América Latina com a expulsão dos espanhóis. 

Contratado pelo imperador D. Pedro I, que o colocou no comando da Primeira Esquadra da Marinha brasileira, formada por grande número de marinheiros ingleses e norte-americanos, obrigou as províncias, uma a uma, a jurarem fidelidade ao império brasileiro. Encerrada com êxito a empreitada, foi recebido na Corte, sediada no Rio de Janeiro, com honras de herói. O próprio imperador foi recebê-lo no cais do porto. Concedeu-lhe a mais importante condecoração do império: a Grã-Cruz da Ordem do Cruzeiro. E conferiu-lhe um título de nobreza: Marquês do Maranhão, ora vejam!

Mas, como assinala Ermakoff, todas as homenagens cessaram no momento em que ele apresentou a conta da empreitada. Ele exigia do governo o pagamento do valor correspondente a todas as chamadas “presas de guerra”: os navios e mercadorias que confiscara aos portugueses, os seus bens e propriedades, inclusive os seus escravos. Essa, a exigência que fizera ao próprio imperador na assinatura do contrato. A mesma exigência que fizera ao Chile, pelo qual lutara contra o colonizador espanhol. 

Autor da iniciativa da contratação, José Bonifácio, o Patriarca da Independência, fora apeado do poder e, agora, D. Pedro lidava com um gabinete conservador, que, como ele próprio, queria conciliar-se com Portugal (governado por seu pai, D. João VI), em busca do reconhecimento do Brasil como nação independente. Além do mais, alegava-se, não houvera uma guerra contra Portugal, mas apenas a luta contra os que, internamente, se opunham à Independência. Não havia, portanto, “presas de guerra”.

No auge das desavenças em torno do pagamento, Cochrane ameaçou rebelar-se. Foi contido por novas promessas e um adiantamento para o soldo das tropas. E aceitou lutar novamente para debelar a chamada Confederação do Equador, rebelião republicana deflagrada em julho de 1824 em Pernambuco, disseminada em diversas outras províncias. Cochrane subjugou mais uma vez os rebeldes. Mas, pouco depois de chegar ao Maranhão, última etapa da viagem, convenceu-se de que nada receberia do governo imperial. E, o que lhe pareceu mais grave, fora avisado por carta de uma confidente da princesa Leopoldina, mulher de D. Pedro, que seria preso se voltasse ao Rio de Janeiro. Por isso, o saque, a manu militari.

No livro História da Independência da Província do Maranhão, publicado em 1862, até hoje única obra inteiramente dedicada ao tema, Luiz Antonio Vieira da Silva descreve a reunião da Câmara, convocada por Cochrane, para decidir o pagamento. Depois de apresentar suas credenciais, títulos e documentos, inclusive as insígnias de Marquês do Maranhão, e de conferir as credenciais dos participantes, apresentou a fatura. Acovardada, a Câmara autorizou o pagamento.

Reeditada pela Companhia Editora Americana, no Rio, em 1972, hoje esgotada (reclama reedição urgente!), essa obra é uma preciosidade, por apresentar um amplo panorama da realidade maranhense da época e da luta dos independentistas, como Salvador de Oliveira, no interior da província, onde, em muitas cidades, como Itapecuru e Caxias, a Independência foi proclamada antes da chegada de Cochrane. 

Nas notas à reedição do livro de Vieira da Silva, lê-se parte do artigo de Alfredo Baltazar da Silveira inserto no volume 5 da Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (página 57): “Não foram a sua desmesurada ambição, o seu doentio amor ao dinheiro, as maneiras bruscas, os seus gestos desordenados, as suas portarias arrogantes, Cochrane já teria sido perpetuado em bronze”. Outro historiador, Oliveira Lima, escreveu em O movimento da Independência, o Império brasileiro 1821-1889 (Edições Melhoramentos, São Paulo, 1861) que Cochrane foi “o grande condottiere naval da emancipação do Novo Mundo e agente principal da união do Brasil”.

Mas a ideia que prevaleceu na historiografia brasileira sobre o guerreiro escocês foi a de um mercenário. O historiador Francisco Adolfo de Varnhagen afirma em sua História da Independência do Brasil (Melhoramentos, São Paulo, 1957, 4ª. Edição) que “nenhum justo reconhecimento cabe a seu nome (de Cochrane) de parte da posteridade no Brasil”. E acrescenta: “Seu único ídolo era o dinheiro”. Outro importante historiador, Hélio Viana, citado por Mário Meireles na sua História do Maranhão, diz que ele não teve nenhuma participação nas lutas que então se travavam no interior da província. Um dia, ao visitar Westminster, o ex-presidente José Sarney pisoteou a lápide do almirante e resmungou, entredentes: “Corsário!”

 Para George Ermakoff esses julgamentos podem ser injustos, dados os inegáveis serviços que o escocês prestou ao Brasil. No Chile, onde lutou contra os espanhóis para igualmente garantir-lhe a independência, Cochrane é tratado como herói. O poeta Pablo Neruda dedicou-lhe um belo poema. Conheci a imensa estátua que o homenageia na cidade portuária de Valparaíso. Em Londres, seu corpo está sepultado ao lado dos grandes heróis do império britânico. 

 Reabilitação 

Quando foi convidado a lutar nas guerras de emancipação na América do Sul, Cochrane, que fora apelidado por Napoleão de “Lobo do mar” por suas vitórias nas guerras da Europa, vivia seu inferno astral. Tinha sido expulso da Marinha, acusado de aplicar um golpe milionário da Bolsa de Valores. Fora condenado, preso e libertado após um ano de cadeia.  

Segundo Ermakoff, o escocês aceitou a missão do Chile, e depois a do Brasil, por duas razões: era um liberal (integrara, pelo voto, a Câmara dos Comuns, onde combatera a corrupção e os privilégios da nobreza) e, portanto, estava disposto a lutar pela liberdade em qualquer parte. Em segundo lugar, viu na empreitada uma excelente oportunidade de ganhar dinheiro, sua obsessão. 

Ao retornar à Inglaterra, após sua escapada do Maranhão, dedicou todos os seus esforços à luta pela reabilitação de sua honra e de seus direitos.

Primeiro, obteve da justiça o arquivamento, por falta de provas, do processo que o condenou no episódio da Bolsa. Depois, conseguiu ser reintegrado à Marinha britânica e reaver seus títulos de guerra. Nos tribunais de arbitragem internacional conseguiu provar que todas as exigências que fizera ao Brasil eram justas, e, por fim, recebeu  tudo o que reclamara. Com juros.

No marco das celebrações do bicentenário da Independência, apesar da reabilitação e do reconhecimento de seus direitos, a figura de Lorde Cochrane, Conde de Donaldson, Primeiro Almirante da Esquadra da Marinha Brasileira e Marquês do Maranhão, reclama um olhar mais atento e desapaixonado. O que faz, com base em rica pesquisa e um texto cativante, o livro de George Ermakoff.

Essa visão, contudo, certamente não mudará os sentimentos que o lorde escocês despertou no Maranhão, onde jamais será tratado como herói. Mesmo que em muitos documentos ele tenha, como o reconquistador Jerônimo de Albuquerque, incorporado ao próprio nome o da província que usurpou: Cochrane Maranhão!