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Crise política norte-americana mostra como o Direito Constitucional é obra inacabada…

EUA BANDEIRAS

 

A ‘emergência nacional’ de Trump e a separação de Poderes nos EUA*

 Por CÁSSIO CASAGRANDE

 Doutor em Ciência Política, Professor de Direito Constitucional da graduação e mestrado (PPGDC) da Universidade Federal Fluminense – UFF. Procurador do Ministério Público do Trabalho no Rio de Janeiro.

 

Os Estados Unidos estão à beira de uma latente crise política e constitucional, precipitada pela arriscada e temerária decisão do presidente Donald Trump de declarar estado de “emergência nacional”, com o fim de obter, sem aprovação do Congresso, recursos orçamentários para a construção do seu famigerado muro na fronteira com o México. Na última semana, a Câmara dos Representantes (Deputados), sob a presidência da democrata Nancy Pelosi, aprovou resolução determinando a cessação dos efeitos da declaração presidencial. A matéria segue agora para apreciação do Senado, que é obrigado a votá-la em um prazo de 18 dias.

A questão vem suscitando enorme debate entre políticos e juristas, pois muitos entendem que o Presidente republicano estaria agindo de forma flagrantemente inconstitucional, violando o princípio da separação dos Poderes ao usurpar as prerrogativas do Congresso em matéria financeira, especialmente porque o Legislativo, ao votar o orçamento anual, acabou de negar verbas para aquele faraônico e perdulário projeto; outros analistas, no entanto, defendem que o chefe do Executivo federal está meramente exercendo as atribuições inerentes ao cargo.

Para compreender a intricada questão, é necessário analisar o sistema de checks and balances concebido na Filadélfia, como também sua evolução institucional concreta e a interpretação que a Suprema Corte se lhes dá. Ao contrário do que ocorre no constitucionalismo latino-americano e brasileiro, a Constituição dos EUA não prevê “estados de exceção constitucional”. Não há, no texto daquela carta, a possibilidade de o Presidente, nem mesmo com o aval do Congresso, decretar estado de “sítio”, “defesa”, “calamidade” ou mesmo de “guerra” (essa última uma prerrogativa do legislativo), com a finalidade de suspender garantias constitucionais ou o livre e independente funcionamento dos Poderes.

O documento constitucional da Filadélfia prevê apenas a possibilidade de suspensão do habeas corpus quando “em caso de rebelião ou invasão, a segurança pública o exigir”. E essa decisão é, também, privativa do Congresso (Art. 1, Seção 9, cláusula 1ª).

Apesar dos limitados poderes do Poder Executivo federal na letra fria da Constituição, a lenta evolução institucional das atribuições da presidência da República dos EUA levou a um natural aumento da autoridade executiva, em especial após a expansão sem precedentes do estado administrativo a partir do início do século XX.

Embora não prevista expressamente no texto constitucional, a necessidade de dar execução às leis levou naturalmente os presidentes, desde George Washington, a editar as “ordens executivas”, que são a manifestação do poder regulamentar no direito administrativo americano. Essas ordens executivas, que podem ser traduzidas como “decretos presidenciais”, são passíveis de controle tanto pelo legislativo como pelo judiciário (pois, afinal, foram os americanos que criaram a revisão judicial dos atos administrativos).

Foi através destas ordens executivas que, ao longo da história americana, decisões controversas em matéria constitucional durante períodos de “exceção” foram tomadas, seja por Abraham Lincoln no correr da guerra civil na segunda metade do século XIX, seja pelos vários presidentes que administraram o país durante o curso dos inúmeros conflitos bélicos em que os EUA acabaram se envolvendo ao longo do século XX.

E no que diz respeito a essas ordens executivas, o Congresso dos EUA foi, em geral, bastante deferente à autoridade presidencial e isso se deve a fatores institucionais e ao próprio modelo político e partidário americano.

Como a Constituição não estabelece expressamente uma forma de controle direto do Congresso sobre as “ordens executivas” (uma vez que elas surgiram como costume constitucional), a única forma de “revogar” aquele ato do poder executivo é a edição de uma lei dispondo em sentindo contrário ao contido no decreto editado pelo Presidente. E, nesse caso, é claro que a edição de uma lei demanda mais tempo (em razão dos intricados procedimentos de tramitação do processo legislativo) do que uma votação para simplesmente anular um ato concreto emitido pelo Presidente, que em tese poderia ser levado à plenário rapidamente (como ocorre no direito constitucional brasileiro, o que por sinal verificou-se no mês passado com o decreto presidencial sobre sigilo de documentos na administração pública, conforme previsão do art. 49, inc. V, da CR: é da competência do exclusiva do Congresso Nacional … sustar os atos normativos do poder executivo que exorbitem do poder regulamentar…).

Todavia, em se tratando de uma “lei” editada para retirar os efeitos de uma ordem executiva, o presidente teria o poder de veto, o qual somente poderia ser derrubado pelo voto de 2/3 dos membros do Congressos. Ocorre que é praticamente impossível a derrubada de veto presidencial em um sistema bipartidário como o americano, onde é inviável, na prática, um presidente obter maioria muito ampla nas duas casas. A consequência de tudo isso é evidente: o Congresso dificilmente contraria as ordens executivas porque confrontar o presidente nestas circunstâncias é uma derrota anunciada e um desgaste político muito grande para os parlamentares que votam contra o executivo.

Por isso, é mais provável que o “contrapeso” às ordens executivas que extrapolem o poder regulamentar provenha do Judiciário, embora, na prática, tais decisões sejam pouco comuns também.

O exemplo clássico no direito constitucional norte-americano foi a célebre decisão proferida pela Suprema Corte no caso Youngstown Sheet & Tube Co. v. Sawyer, 343 U.S. 579 (1952), na qual os Justices cassaram o decreto presidencial de Harry Truman que havia estatizado siderúrgicas durante a Guerra da Coreia. Houve casos menores também em outros governos, como a decisão da Justiça Federal que em 1995 barrou ordem executiva de Bill Clinton determinando a exclusão de licitações públicas das empresas que adotavam práticas antissindicais. Porém, em outros momentos da história norte-americana, o judiciário também comportou-se de forma excessivamente tíbia diante de arroubos claramente inconstitucionais contidos em ordens executivas, sendo o caso mais notório o julgamento de Korematsu v. United States. 323 U.S. 214 (1944),no qual a Suprema Corte não se opôs ao internamento compulsório de japoneses e seus descendentes americanos durante a Segunda Guerra Mundial, determinado pela administração F.D. Roosevelt, decisão, aliás, que é considerada como uma das páginas mais vergonhosas na longa trajetória daquele tribunal.

Para contornar esse problema da dificuldade em barrar ordens executivas arbitrárias, o Congresso aprovou, em 1976, a National Emergency Act, cujo propósito era o de delimitar de forma mais clara as hipóteses em que o chefe do executivo poderia emitir decretos em situação de alegada “emergência nacional”. Observe-se que essa lei não vedava ou restringia as ordens executivas rotineiras da administração, que continuaram a ser editadas normalmente; na verdade a norma apenas pretendia delimitar quais seriam as situações de maior gravidade que justificassem a supressão temporária do processo legislativo. Note-se que a norma foi editada na era pós-Nixon, em que havia profunda desconfiança dos excessivos poderes presidenciais, que no caso deste último presidente resvalaram para o arbítrio.

Mas, é claro, declarações de “emergência nacional” são usadas não só em época de guerra como também em tempos de paz, para combater crises econômicas ou sociais, epidemias, calamidades, desastres ambientais, enfim, imprevistos de toda sorte e outras urgências que se apresentam ao chefe do poder executivo. Por isso, sempre haverá certa subjetividade na decisão presidencial. O problema é que, no caso concreto da ordem assinada por Trump, ficou clara a sua intenção de “contornar” a decisão congressual sobre a lei orçamentária que claramente rechaçava a alocação de recursos para a construção de muro na fronteira. Alguns veem nisso um aparente atentado ao princípio da separação de poderes e foi por essa razão, sobretudo, que doze deputados do Partido Republicano perfilaram-se aos Democratas na votação da semana passada.

Mas mesmo com a edição da National Emergency Act, não é fácil para o Congresso invalidar uma ordem executiva do Presidente, seja pela relativa subjetividade das situações que podem ser caracterizadas como “emergenciais”, seja porque a referida norma, na sua redação original, apesar de permitir que o ato seja submetido à convalidação pelas duas casas do Congresso, não foi clara ao determinar se essa decisão congressual seria ou não terminativa (isto é, se poderia ou não ser vetada pelo presidente).

A questão ficou ainda mais complicada quando, posteriormente, a Suprema Corte julgou um dos mais importantes casos sobre separação de Poderes da história constitucional americana, Immigration and Naturalisation Service v. Chadha, 462 U.S. 919 (1983). A questão não dizia respeito diretamente a ordens executivas ou a emergência nacional, mas sim ao funcionamento prático do mecanismo de separação e equilíbrio entre executivo e legislativo.

A Lei de Imigração e Nacionalidade (Immigration and Nationality Act) estabelecia que uma agência federal do poder executivo, o Serviço de Imigração e Naturalização, poderia suspender a deportação de um estrangeiro que estivesse residindo nos Estados Unidos por pelo menos sete anos, se o Advogado-Geral da União (U.S. Attorney General), discricionariamente, considerasse que do ato pudesse resultar “extrema dificuldade”. Se assim decidisse, o Advogado-Geral (integrante, é claro, do poder executivo) deveria comunicar o resultado do procedimento ao Congresso, o qual, por qualquer uma das suas casas, teria o poder final de vetar aquela decisão governamental.

Uma hipótese como essa ocorreu com o imigrante queniano Jagdish Rai Chadha, que fora poupado da deportação por ato do Advogado-Geral, mas cuja decisão acabou sendo revertida por um “veto legislativo” da Câmara dos Deputados. Ele recorreu ao judiciário e depois de longo trâmite a Suprema Corte entendeu que o “veto legislativo” por qualquer das casas do Congresso violava não apenas o princípio do bicameralismo, como também aquele segundo o qual todas as decisões legislativas devem ser submetidas ao veto do poder executivo.

Assim, essa lógica de vedação do “veto legislativo” foi transposta à interpretação da National Emergency Act, que acabou sendo emendada em 1986, de modo que a partir de então, toda e qualquer decisão do Congresso sobre a cessação do estado de emergência deve ser submetida ao veto presidencial, o que também deve ocorrer com o ato de Donald Trump, se o Senado seguir a mesma direção da Câmara.

De qualquer forma, como vimos acima, ainda há espaço para debate constitucional, na medida em que o Presidente, ao valer-se da declaração de emergência nacional para contornar a decisão do Congresso em matéria orçamentária, acabou de alguma forma subvertendo a finalidade do sistema de checks and balances. É exatamente por isso que já há uma enxurrada de ações na justiça federal dos Estados Unidos questionando a ordem presidencial.

Esse impasse diz muito sobre a forma de conformação do constitucionalismo americano: mesmo depois de tantos anos em vigor, a Constituição da Filadélfia ainda está sendo preenchida em seus muitos vazios e pormenores. Afinal, o direito constitucional, sempre vinculado ao mutante fenômeno político, é tal como a construção das antigas sés, uma obra eternamente inacabada.

  • Publicado originalmente na Revista JOTA

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