O arraigamento dos princípios da impessoalidade e da imputação volitiva (essa última base da teoria do órgão) ao longo das últimas décadas produziram como efeito colateral a desconsideração do gestor como indivíduo e, como tal, suscetível ao erro, ainda quando de boa-fé…
Por Rodrigo de Bittencourt Mudrovitsch e Guilherme Pupe da Nóbrega
No último dia 11, sobreveio o aguardado Decreto 9.830, regulamentando o artigo 20 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Decreto-lei 4.657/1942), cuja redação, conferida pela Lei 13.655/2018, assim dispõe:
Art. 20. Nas esferas administrativa, controladora e judicial, não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão.
Parágrafo único. A motivação demonstrará a necessidade e a adequação da medida imposta ou da invalidação de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa, inclusive em face das possíveis alternativas.
De nossa parte, as normas, regulamentada e regulamentadora, são dignas de aplausos, (i) dialogando com a segurança jurídica preconizada pelo artigo 2º, caput, da Lei 9.784/1999, (ii) encampando em boa parte os ideais que nortearam o Projeto de Lei 10.887/2018 (alterando a Lei de Improbidade Administrativa) e (iii) racionalizando em larga medida a regência atual, dada pela Lei 8.429/1992.
A fim de demonstrar a conclusão acima, colhemos o exemplo dos artigos 3º e 4º do referido decreto, que estabelecem que as decisões em geral, e bem assim aquelas dirigidas à invalidação de contratos, ajustes, atos ou normas, devem tomar em consideração — a aproximação com a teoria de Neil MacCormick é inevitável — suas consequências práticas. Mas não apenas isso. Essas mesmas decisões, quando posteriormente postas em perspectiva sob o ângulo daquele consequencialismo, deverão ser analisadas a partir do que era possível ao gesto divisar à guisa de consequência, no exercício diligente de sua atuação.
O artigo 5º do mesmo decreto se dá em idêntica toada ao impor que a revisão da validade de atos, contratos, ajustes ou normas deverá considerar as orientações gerais da época em que praticados ou editados; assim como o artigo 8º, parágrafo 1º, a rezar que a “decisão sobre a regularidade de conduta ou a validade de atos, contratos, ajustes, processos ou normas administrativos, serão consideradas as circunstâncias práticas que impuseram, limitaram ou condicionaram a ação do agente público”.
Todos esses dispositivos, como dito, para além de reverberar em nível inédito o princípio da segurança jurídica em nível administrativo, consagram o que podemos apelidar de “empatia administrativa”, ou simplesmente o exercício, por parte daquele que sindica atos e decisões, de se colocar no lugar do gestor sem simplesmente presumir sua má-fé.
A mudança é, a nosso ver, salutar: o arraigamento dos princípios da impessoalidade e da imputação volitiva (essa última base da teoria do órgão) ao longo das últimas décadas produziram como efeito colateral a desconsideração do gestor como indivíduo e, como tal, suscetível ao erro, ainda quando de boa-fé. Isso, aliado a um temor reverencial normativo com que a Lei de Improbidade alcança também aquele que analisa os atos a posteriori, favoreceram por vezes o que se poderia chamar de um critério de “engenharia de obra pronta”, ou um exame de atos sob o crivo do que deu errado após ter dado errado.
Uma vez mais, não se cuida, aqui, de uma ode à inapetência ou à corrupção. O que temos sustentado, isto sim, é que a seara sancionadora não deve ser banalizada a ponto de gerar insegurança a partir da igual censura tanto sobre o ato quanto sobre a inércia do administrador, que, em lugar de refletir sobre a medida que mais satisfaça o interesse público, acaba por incluir nessa ponderação a postura que minore os riscos sobre sua própria pessoa.
Seja para identificação do elemento subjetivo, seja para aferição da culpabilidade, o Decreto 9.830 e o PL 10.887 comungam, portanto, do resgate da “pessoalização” do gestor em certo sentido. A ressalva, sem embargo, fica por conta da manutenção, pelo decreto, da culpa grave como autorizadora da sanção. Natural. Sendo essa matéria submetida a reserva legal, e tendo presente que a interpretação jurisprudencial atual da Lei de Improbidade se dá naquele sentido, não se poderia esperar outra coisa. Ainda assim, a regulamentação deve ser celebrada por buscar, em seu artigo 12, a bem da segurança, objetivar o que seria “culpa grave”, discriminando também o que não poderia ser considerado como tal.
Há, contudo, outro ponto digno de realce e que simboliza um passo além no fortalecimento da cultura da composição no âmbito administrativo, dado pelos artigos 10 e 11 do decreto.
No primeiro daqueles dispositivos, é elucidado o instituto do compromisso, a ter lugar na “hipótese de a autoridade entender conveniente para eliminar irregularidade, incerteza jurídica ou situações contenciosas na aplicação do direito público, poderá celebrar compromisso com os interessados”. Como já pudemos aqui expor, não raro o interesse público pode ser atingido ou mais bem salvaguardado pela via negocial que pela via sancionadora, o que não implica uma livre disposição, mas, sim, uma homenagem à eficiência.
Os mais céticos poderiam intuir que esses ajustes somente farão migrar o foco da sindicância por parte dos órgãos de controle dos atos praticados para os acordos celebrados. Entendemos, todavia, que as condições impostas para a celebração daquele ajuste são objetivas nos incisos I e II (oitiva de órgão jurídica e consulta pública, quando cabível) e de mérito administrativo no inciso III; ou seja, o instrumento nos parece, sim, uma opção viável e segura, sem franquear grandes vulnerabilidades para tenacidades inquisitivas (ainda que não se possa subestimar tais tenacidades).
O artigo 11 do decreto, de sua vez, trata do termo de ajustamento de gestão, passível de celebração entre agentes públicos e órgãos de controle interno da administração com a finalidade de “corrigir falhas apontadas em ações de controle, aprimorar procedimentos, assegurar a continuidade da execução do objeto, sempre que possível, e garantir o atendimento do interesse geral” e desde que não haja dolo ou erro grosseiro. É evidente o paralelo com o termo de ajustamento de conduta, previsto no artigo 5º, parágrafo 6º, da Lei 7.347/1985, mas a lembrança mesmo assim é oportuna no sentido de rememorar que as controladorias e corregedorias detêm aquela prerrogativa, comumente mais exercida pelo Ministério Público.
Enfim, são esses alguns dos aspectos que nos credenciam a louvar o Decreto 9.830 não como mecanismo engendrado para dificultar responsabilizações, mas para facilitar gestões e assim deixar de punir o destinatário último de todas as normas administrativas: o administrado.
Rodrigo de Bittencourt Mudrovitsch é sócio-fundador do Mudrovitsch Advogados, professor de Direito Público, doutor em Direito Constitucional pela Universidade de São Paulo (USP) e mestre em Direito Constitucional pela Universidade de Brasília (UnB).
Guilherme Pupe da Nóbrega é advogado do Mudrovitsch Advogados, especialista em Direito Constitucional, mestre em Direito pelo Instituto Brasiliense de Direito Público, professor de Processo Civil do IDP, diretor-adjunto da Escola Superior de Advocacia da OAB-DF e secretário-geral da Associação Brasiliense de Direito Processual Civil.
Publicado originalmente na Revista Consultor Jurídico, 21 de junho de 2019, 7h18