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Notícia

Centro de Estudos Constitucionais e de Gestão Pública

Dois juízes federais analisam o papel do juiz e criticam o Processo Penal do espetáculo…

Processo penal do espetáculo?

Qual deve ser o papel do juiz?

 

RAFAEL VASCONCELOS PORTO – Juiz federal em Minas Gerais, Doutorando em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa, Mestre em Direito Previdenciário pela PUC/SP, professor na pós-graduação lato sensu da Universidade Presbiteriana Mackenzie, professor na graduação e em cursos preparatórios.
ROSMAR RODRIGUES ALENCAR – Juiz federal em Alagoas, Doutor em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP), professor de Processo Penal na Universidade Federal de Alagoas (UFAL) e no Centro Universitário Tiradentes (UNIT-AL).

 

“Estava sentado ao balcão da lanchonete do clube recreativo que frequento, após ter disputado uma intensa partida de futebol, então a consumir um isotônico e a comer qualquer coisa para recuperar as energias, quando fui abordado por um amigo, também frequentador do local e advogado militante na área criminal. Ele me questionava sobre uma operação policial deflagrada no dia anterior, que prendera uma quadrilha numerosa e de longo histórico de atuação na região.

– E aquela operação de ontem? Foi decisão sua, certamente?

Nem caberia fingir de desavisado, afinal era eu então o único juiz federal atuando naquela Subseção Judiciária de vara única.

‘Sim’, limitei-me a responder, a aguardar o teor das indagações que viriam a seguir.

– Pois, sabe o que achei curioso? Saiu uma longa reportagem no telejornal local, em que apareceram servidores de diversos órgãos – Polícia Federal, Polícia Rodoviária Federal, Ministério Público Federal e até da Receita Federal -, mas sequer mencionaram a Justiça Federal. Ao leigo, fica parecendo até que foi o membro do MPF quem proferiu a decisão. O resultado é que todos aqueles órgãos ganham projeção midiática, crescem no gosto popular, enquanto a Justiça perde uma oportunidade de auferir dividendos. Não te parece contraprodutivo isto?

A pergunta me pegou de surpresa, devo confessar. Não disfarcei o espanto – pelo tipo de pergunta, já que estava a esperar outra abordagem, não pela situação descrita, que me parecia absolutamente natural – e pensei por alguns segundos na melhor resposta.

– Bom, imagine se um dos detidos fosse parente seu e você visse na TV o juiz que autorizou a busca e apreensão e a prisão a dar entrevista sobre o caso, a se vangloriar do ‘feito’, a chamar a atenção para a ‘destreza’ da atuação da JF no caso, a convocar a opinião pública a apoiar a operação? Como você se sentiria?

Ele me olhou desconfiado e se pôs a pensar. Aproveitei o silêncio e prossegui:

– E tem outra coisa. Nesse caso, eu deferi as medidas pleiteadas (na verdade, não todas, mas não convinha falar mais sobre o caso do que o que já estava sobre a mesa), mas noutro caso eu poderia indeferir, indo contra o gosto da ‘turba’, e aí? Se eu convoco o apoio da opinião pública (melhor diria, ‘publicada’) num dado caso, eu acabo por me tornar refém dela, o que nos dias de hoje é perigosíssimo, já que se eu precisar contrariá-la noutro caso, poderei ficar sujeito inclusive a sofrer ameaças pessoais, como de resto já tem mesmo acontecido. E um juiz precisa ter plena independência para decidir conforme o caso se lhe apresente1.”

O diálogo acima – que é baseado em fatos reais, conquanto tenhamos alterado alguns dados, para evitar a identificação – nos foi relatado por um amigo, colega de carreira, numa conversa em que discutíamos acerca da posição do Judiciário e do papel do juiz no processo penal. Ele serve para introduzir, de forma descontraída, o assunto do qual pretendemos aqui tratar: qual é o papel do juiz no processo penal?

A expressão “processo penal do espetáculo” é tomada por Rubens Casara para representar uma forma de realidade ocupacional da sociedade brasileira. Há um gasto considerável de energia por todos os que acompanham os noticiários e o evolver ininterrupto de investigações criminais, onde a sede do fórum é o programa televisivo. O autor explica que o espetáculo é um projeto social, mediado por estímulos provocados por imagens constitutivas de um enredo que do qual faz parte o sistema de justiça criminal2.

Ele é também um termostato das expectativas sociais, haja vista que é apto a condicionar relações humanas. Das notícias que não estão mais na moda, Afrânio Silva Jardim, pondera que “há muito tempo que a imprensa não noticia que algum preso tenha sido surpreendido com entorpecentes ou outros objetos ocultos em suas vestes… Será que isto não mais ocorre em nosso país ou será que este espetáculo já não tem mais público?”3

Essa percepção permeia a nossa rotina.

Para delinearmos o papel do juiz, precisamos, à partida, esclarecer a razão pela qual o processo penal existe. Em apertada síntese, e na perspectiva do contratualismo, quando o Estado avoca o monopólio da força, ele se compromete a, pondo fim ao estado de natureza, apurar e punir os crimes praticados, de modo a fazer prevalecer a paz social. Para tal, cria um órgão público responsável por, em nome do povo, apresentar a acusação, quando estiver convencido da existência de crime. Este órgão, no Brasil, é o Ministério Público. O Parquet, portanto, representa o povo (ainda que no Brasil não se use a terminologia “o povo contra fulano de tal”, como se dá no EUA, é o que ocorre) no processo penal, apresentando a pretensão acusatória.

Por tal razão, é possível dizer que o Ministério Público tem um compromisso com a população, com os cidadãos, de buscar apurar os crimes ocorridos (se não se tratar de ação penal privada, convém ressalvar) e – se evidenciada a inexistência de elementos que o façam concluir pela inocência do imputado – pleitear a punição daqueles que julga serem culpados pela prática de atos criminosos. Cabível, assim, cobrar do MP uma postura aguerrida, conquanto serena, e ativa. O MP, ao lado dos órgãos de segurança pública, tem um compromisso com a sociedade em relação à apuração de crimes e, consequentemente, do controle da criminalidade por meio das funções da pena de prevenção, geral e especial (que subsistem ao lado da de retribuição, umbilicalmente ligada ao monopólio da força que dantes suscitamos, e da de ressocialização do criminoso), ou seja, de advertência. Em suma, é cabível dizer, no jargão popular, que o MP “deve uma resposta à sociedade”.

E qual é o espaço reservado para o acusado? Num Estado Democrático de Direito, o processo penal de destina, primordialmente, à tutela da liberdade, razão pela qual garante-se ao acusado o direito de contradizer a acusação (contraditório), de apresentar suas provas (ampla defesa), de ter no mínimo o mesmo espaço que a acusação tem para falar (paridade de armas), de ser absolvido no caso de insuficiência de provas (in dubio pro reo), de não ser considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória (presunção de não-culpabilidade) proferida dentro de um processo judicial que tenha observado todas as garantias dantes relatadas, dentre outras (devido processo legal).

Em relação à pessoa responsável por apreciar o caso, que é o juiz, exige-se que seja alguém a quem a lei tenha previamente atribuído competência (juiz natural, vedação de “tribunal de exceção”), que não mantenha proximidade com qualquer das partes (equidistância) e que não tenha interesse na causa (imparcialidade).

Convém ressaltar que, ao falarmos de imparcialidade, não estamos tratando do mito da neutralidade, tendo em vista que, a nosso sentir, na linha do que expõe a filosofia da linguagem pelo menos desde Wittgenstein, a neutralidade de qualquer pessoa se desfaz já na própria esfera da linguagem4, ou seja, na mera apreensão de um texto de lei (ou, ainda mais, de um material probatório). Imparcialidade, portanto, não se confunde com neutralidade5.

O que é, então, o juiz imparcial? É o juiz que não tem, à partida, qualquer interesse no desfecho da causa, nem o adquira ao longo do curso do processo. Tal interesse pode ter um caráter objetivo, por assim dizer (por exemplo, quando tenha um filho sendo processado por fato semelhante), ou subjetivo, o qual tem lugar quando o juiz se envolve emocionalmente com a causa ou se “apaixona” pelo processo e, assim, passa a almejar6 um determinado desfecho7.

Então, afinal, diante do quadro preliminarmente descrito, vamos ao enfrentamento da questão central que nos propomos a aqui responder: qual é o papel do juiz no processo penal?

O juiz irá, em síntese, analisar a viabilidade da pretensão acusatória, ou seja, dirá se, diante do quadro probatório apresentado, a acusação deve ou não prosperar (decreto absolutório ou condenatório) e em que medida (dosimetria da pena). Esta é a função do juiz. Para tal, deverá, mantendo-se equidistante, analisar todos os argumentos apresentados pelas partes e o conjunto probatório colhido em observância ao contraditório, fazer o cotejo com a legislação posta e então proferir o seu veredicto, ou seja, a sua opinião, desinteressada e juridicamente embasada no que consta nos autos.

Se o juiz autorizar a aplicação da pena, a responsabilidade, pela aplicação, retorna ao Poder Executivo, que então a executa em nome do povo. A interposição judicial, portanto, tem lugar como uma garantia do réu (e, obliquamente, de toda a sociedade, visto que uma injustiça contra um é uma ameaça contra todos), no sentido de que a pretensão acusatória é viável e, destarte, deve prosperar. O juiz concede, enfim, uma homologação.

Estando em tal posição, de árbitro interposto entre dois contendores, o juiz deve adotar postura de equilíbrio, tal qual a imagem triangular eqüilátera (dividido em duas partes, sem que o juiz se incline em favor de uma delas), sem envolvimento com quaisquer dos lados, concedendo-lhes o mesmo tipo de tratamento (cordial, porém distanciado8), donde resulta que não deve, obviamente, aconselhar qualquer delas. Não deve ter nenhum interesse no destino da causa, razão pela qual não deve interferir para além de manter a ordem e a racionalidade dos trabalhos.

Neste sentido, recomenda-se que evite se manifestar publicamente sobre o caso ou chamar ou conceder especial atenção, em detrimento de outros, para determinado processo, por julgá-lo “mais relevante” para a sociedade. Este não é um seu papel. Ele não tem, perante a sociedade, um compromisso punitivo, ele não é órgão de persecução penal, senão quem realiza o controle desta.

Tem o juiz, porém, algum tipo de compromisso perante a sociedade? Para além dos já descritos, ou seja, de conduzir a causa de forma imparcial (sem “tomar partido”), acreditamos que o juiz tem sim o compromisso de entregar a prestação jurisdicional com rapidez, na medida do possível e sem que isso possa implicar redução do espectro de garantias individuais fundamentais. Ou seja, conforme os prazos processuais consignados em lei e as amarras impostas pela natureza das coisas (por exemplo, a complexidade probatória do processo).

Em virtude da característica descrita como “inércia da jurisdição”, deve o juiz aguardar a provocação da acusação, por meio da apresentação da denúncia criminal (ou pelo manejo de medidas pré-processuais), ou seja, só deve processar o que lhe chega, não possui iniciativa para inaugurar um processo penal, pelo que não deve se interessar pela celeridade na conclusão das investigações, ainda que tenha proferido decisão pré-processual (o que só ocorre excepcionalmente e sempre em resguardo do réu), visto que não está no âmbito de suas atribuições (afinal, ele não é corregedor da atuação policial ou ministerial). Proposta, contudo, a ação, pela característica do “impulso oficial”, deve sim o juiz dar andamento ao processo, praticando os atos que lhe são atribuídos e intimando as partes a praticarem os delas.

Aí está, como frisamos anteriormente, o compromisso que o juiz tem perante a sociedade: celeridade. Deve conduzir o processo com agilidade – na medida do possível, ao mesmo tempo em que vela pelas garantias processuais -, concluindo-o dentro de tempo razoável.

Convém ressalvar, contudo, que o compromisso do juiz com relação à prescrição aí se limita, ou seja, ele deve conduzir o processo – todos os processos – de forma célere, mas não deve, todavia, dosar a pena olhando para o prazo prescricional ou atropelar atos ou negar a produção de provas ou diligências, salvo se flagrantemente protelatórias, com o objetivo de impedir a consumação da prescrição. Se o fizer, está já atuando fora de suas atribuições, ou seja, já deixou de ser juiz e assumiu outro papel.

Está aí, a nosso sentir – em apertada síntese e em linguagem coloquial, para que seja acessível ao leigo, visto ser este também destinatário do presente ensaio – o papel do juiz no processo penal, o que nos pareceu conveniente relembrar, repisar, na quadra atual em que muitos setores parecem confundir os papeis e realizar um verdadeiro amálgama entre as funções ministeriais e jurisdicionais. Juiz não é MP, MP não é juiz: possuem missões flagrantemente distintas.

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1[1] Como salienta Aury Lopes Júnior, o juiz “deve estar acima de quaisquer espécies de pressão ou manipulação política (…); alguém que realmente possua condições de formar sua livre convicção. Essa liberdade é em relação a fatores externos, ou seja, não está obrigado a decidir conforme queira a maioria ou tampouco deve ceder a pressões políticas. A independência deve ser vista como a sua exterioridade ao sistema político e, num sentido mais geral, como a exterioridade a todo sistema de poderes.” (Direito Processual Penal: e sua conformidade constitucional. 5ª Ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 121).

2[1] CASARA, Rubens R. R. Estado pós-democrático: neo-obscurantismo e gestão dos indesejáveis. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2017, p.157-159.

3[1] JARDIM, Afrânio Silva; AMORIM, Pierre Souto Maior Coutinho do. Direito processual penal: estudos, pareceres e crônicas. 15. ed. Salvador: Juspodivm, 2019, p.875-876.

4[1] Como dissemos noutro lugar (ALENCAR, Rosmar Rodrigues. Efeito vinculante e Concretização do Direito. Porto Alegre: Fabris, 2009, p. 30-32), é desse modo que Wittgenstein aviva, no ponto 5.6, que “os limites da minha linguagem significam os limites do meu mundo”, para desdobrá-lo, no subitem 5.61, na afirmação de que “a lógica enche o mundo; os limites do mundo são também seus limites”, não havendo possibilidade de “dizer em lógica: ‘no mundo há isto e isto, mas não aquilo’”, haja vista que “aquilo que não podemos pensar, não podemos pensar; também não podemos dizer aquilo que não podemos pensar” (WITTGENSTEIN, Ludwig. Tratado lógico-filosófico. Investigações filosóficas. Trad. de Tiago J. de Oliveira. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1985, p. 114-115.).

5[1] Cabe destacar aqui, contudo, que conquanto a neutralidade total seja mesmo um mito, não deve, porém, ser perdida como um norte. O juiz deve buscar se despir de preconceitos, efetuar um juízo de abstração de suas preferências pessoais, inclusive políticas, se esforçar para não trazer para o processo cargas emotivas personalistas ou impor sua visão do mundo, inclusive em detrimento das opções legislativas. Como destaca Bickel: “(…) scholars often bring a valuable detachment to affairs. (…) Much of what there is comes from academic and professional persons, (…) known to be certified in accordance with neutral standarts, not political objectives. (…) If the ‘accrediting’ institutions themselves become politically engaged, their accreditation loses its value, and society will be the poorer. Disinterested judgment will have lost much of its moral authority. It is as if judges were assumed to decide on the basis of personal predilection, class interest, or political affiliation. No one of course can step altogether out of himself, but there is a category of men, including judges, to whom we assign the role of making the effort.” (BICKEL, Alexander. The Morality of Consent. New Haven: Yale University Press, 1975, p. 134-135).

6[1] Com efeito, a partir do momento em que o juiz passa a desejar um certo resultado, ele precisa já repensar sua postura. Podemos apontar os seguintes estágios de um comportamento patológico do magistrado, do de menor para o de maior gravidade: 1) desejar um resultado; 2) buscar um resultado, tomando ativamente medidas que favoreçam a linha defendida por uma das partes, sob a justificativa de procurar a “verdade real”; 3) estar comprometido com determinado resultado. No estágio 3, o mais grave, o juiz já decidiu o processo à partida, ou seja, antes mesmo de colher as provas, de analisar os argumentos das partes, já sabe que irá condenar ou absolver, em virtude de algum sentimento pessoal (não estamos falando aqui em corrupção, convém frisar). Em tal caso, o processo se torna um teatro e a sentença puro exercício de retórica. No estágio 2, o juiz está inclinado a um resultado (ainda que admita outro, caso o conjunto probatório seja insuperável) e, para tal, assume o protagonismo da acusação ou da defesa, chegando mesmo a se sobrepor ao labor do membro do MP ou do defensor, por exemplo dirigindo os trabalhos de inquirição do réu e das testemunhas na audiência de instrução ou buscando voluntariamente fontes ou provas. No estágio 1 – menos grave, porém ainda assim patológico -, o juiz acaba vestindo uma “viseira” que o impede de atuar com liberdade e observando uma isonomia entre as partes, ainda que não tome propriamente consciência disto. Tal postura gera inúmeros reflexos danosos. Um juiz que não está a desejar qualquer resultado atua com maior serenidade e com uma percepção mais aguçada do que se passa em todos os meandros do processo. É comum, inclusive, que altere sua convicção preliminar conforme vão sendo colhidas as provas ou que descortine algum detalhe que passara despercebido até então quando realiza a análise derradeira do conjunto probatório para sentenciar.

7[1] Neste sentido, Aury Lopes Júnior destaca que “só o juiz consciente de seu papel garantidor e que, acima de tudo, tenha a dúvida como hábito profissional e como estilo intelectual é merecedor do poder que lhe é conferido. Aqui está outro grave problema: o juiz que assume ‘uma cultura subjacente, de forte conotação de defesa social, incrementada pela ação persistente dos meios de comunicação, reclamando menos impunidade e maior rigor penal, derivada, por sua vez, de uma cultura geral política autoritária, como a herdada nos países latino-americanos’, que afeta o juiz (enquanto homem político e social), impõe uma concepção de processo menos dialética e igualitária para as partes. É aquele juiz que absorve esse discurso de limpeza social e assim passa a atuar, colocando-se no papel de defensor da lei e da ordem, verdadeiro guardião da segurança pública e da paz social. A situação é grave, na medida em que tudo isso se reflete na eleição e no próprio sentir do ato decisório, pois a sentença é reflexo da eleição de uma das teses a ele submetidas (acusação e defesa), bem como de um juízo axiológico da prova e a lei aplicável ao caso. Esse juiz representa uma das maiores ameaças ao processo penal e à própria Administração da Justiça, pois é presa fácil dos juízos apriorísticos de inverossimilitude das teses defensivas; é adepto da banalização das prisões cautelares; da eficiência antigarantista do processo penal; dos poderes investigatórios/instrutórios do juiz; do atropelo de direitos e garantias fundamentais (…); da relativização das nulidades pro societate; (…) introjeta com facilidade os discursos de ‘combate ao crime’ (…). Mas, principalmente, esse juiz transforma o processo numa encenação inútil, meramente simbólica e sedante, pois desde o início já tem definida a hipótese acusatória como verdadeira.” (op. cit., p. 125).

8[1] Embora possa até ser comum na prática, o juiz deve evitar olhar de forma diferente a acusação e a defesa. O colega Nagibe de Melo Jorge Neto escreve que “O juiz não joga no mesmo time dos procuradores e policiais, mas normalmente enxerga-os como agentes públicos, servidores pagos pelo Estado, que, em alguma medida, estão comprometidos com um julgamento justo e não com a condenação a qualquer custo. Isso pode ser um erro do nosso sistema, mas é assim.” (disponível em: https://direitoeesquerdoblog.wordpress.com/2019/06/16/sobre-juizes-procuradores-e-hackers/. Acesso em: 17/06/2019). Em primeiro lugar, não, o sistema não é assim. Tal postura é patológica, não é decorrência inexorável do sistema – deve, portanto, receber o tratamento curativo devido, individual e coletivamente. O juiz não pode enxergar no membro do MP um “parceiro” que o “auxiliará” em busca de um “julgamento justo” e, em contrapartida, o defensor como alguém em busca de escamotear a verdade, se valendo de artimanhas, de chicanas processuais, de medidas protelatórias que lhe permitam alcançar a prescrição. Ainda que um ou outro advogado possa adotar tal postura – isto também é uma patologia -, o juiz não pode partir de tal pressuposto em relação a todo defensor (o juiz que assume tal visão tende a se enquadrar no perfil patológico n. 02, que descrevemos algumas linhas acima), inclusive porque sua conduta gera reflexos, ou seja, se o advogado percebe que o juiz está previamente inclinado a menoscabar seu papel dentro do processo, parece natural que opte por uma postura de beligerância. Ao contrário, quando o juiz demonstra que é efetivamente alguém que pretende cumprir o exato papel que lhe é destinado dentro do processo, dialogando com ambas as partes com respeito e acatamento, isto contribuirá para o arrefecimento dos ânimos, muitas vezes inclusive em relação ao próprio acusado. De mais a mais, se o membro do MP é um servidor pago pelo Estado e comprometido com um julgamento justo, é de se perguntar para que serve o juiz? O MP é parte e deve ser tratado como tal – sempre, em qualquer circunstância. Como bem aduz Alexander Bickel, “our system of the administration of criminal justice (…) is na adversary, accusatory system (…). Police and prosecutors, with us, are supposed to seek justice, of course, but we channel their zeal to the pursuit of evidence of guilt, and train them to rely on the defense to find and present to an impartial third party eviddence of innocence. (…) This adversary system may not be the best, the most efficient, or ultimately the most just. But the worst and most unjust system is assuredly a mixed one, an adversary system wich weights the scales, contrary to its fundamental premises, in favor of the prosecution.” (op. cit., p. 82). Retomando, é verdade que o MP muitas vezes pede a absolvição quando constata que o conjunto probatório é flagrantemente desfavorável à acusação, assim como o réu não raramente confessa a prática do delito quando percebe que não terá como contrariar as provas apresentadas pela acusação (ou mesmo por algum outro motivo, como o arrependimento, por exemplo, o que é menos comum, mas ocasionalmente também acontece). De todo modo, a decisão final ainda é o juiz, que pode tanto absolver o réu confesso como condenar mesmo diante de parecer ministerial pela absolvição.