É pouca, e praticamente desconhecida, a presença do Maranhão na obra de João Guimarães Rosa (1908-1967) , um dos maiores (senão, o maior) escritores brasileiros de todos os tempos.
Mas o Maranhão está lá, honrosamente presente, em pelo menos um poema e um conto, lavrados no melhor estilo rosiano, em dois livros que só vieram a público após a morte do autor de Grande sertão: veredas, em 1967: Estas estórias (1969) e Ave, palavra (1970). Talvez por isso, o desconhecimento – embora as duas peças tenham sido depois incluídas na antologia Guimarães Rosa. Ficcção completa, publicada em 1994 pela Editora José Aguillar.
O poema em alusão é “Grande louvação pastoril à linda Lygia Maria”, publicado em Ave, palavra. (Poucos sabem, mas Guimarães Rosa estreou literariamente com um livro de poesias, Magma, premiado pela Academia Brasileira de Letras em 1936, mas só publicado postumamente). A “linda Lygia Maria” do poema era a filha recém-nascida do jornalista e crítico literário maranhense Franklin de Oliveira, de quem Rosa era grande amigo. O romancista ofereceu o poema a Lygia no dia 21de março de 1953, quinze dias depois que ela nascera.
Extenso auto infantil (11 páginas na edição da José Olympio), o poema dá voz a personagens do folclore sertanejo, juntando cantadores de bumba-meu-boi do Maranhão, “vaqueiros do baixo Rio das Velhas, violeiros do São Francisco, sanfoneiros da Folia de Reis, tambores do Congado e tocadores de berrantes”, na louvação à filha do amigo maranhense. Um breve excerto:
OS ZABUMBEIROS:
Então, bumba, bumba,
Ei, bumba, zabumba…
É pra o bumba-meu-boi?
OS CABOCLOS:
Êh, Maranhão!
Maluco, não:
Quem toca zabumba
Não dá opinião
Deixa o boi louvar
Meu boizinho lindo
Pois Lydinha Maria
Já está sorrindo.
No conto “A simples e exata estória do burrinho do Comandante”, que abre o livro Estas estórias, publicado poucos meses antes de Ave, palavra, 1969, o Maranhão se faz presente de modo mais explícito.
O conto é uma homenagem a São Luís, cidade que o autor nunca visitou, mas que descreve como se a conhecesse intimamente. É uma história divertida, narrada pelo comandante de um destroier que foi enviada ao Maranhão pela Marinha brasileira para impedir a invasão da capital pela Coluna Prestes, a marcha revolucionária comandada pelo capitão Luís Carlos Prestes, em 1926.
O destróier deixa o Rio de Janeiro e se dirige a São Luís, onde o Comandante não precisará lutar, mas viverá uma experiência inesquecível: o amor a um burrinho muito inteligente, pelo qual (por quem) se apaixona. A estória remete o leitor, inevitavelmente, à lembrança de Sete-de-Ouros, o protagonista de “O burrinho pedrês”, um dos melhores contos de Sagarana, primeiro livro publicado por Guimarães Rosa, em 1946.
“A simples e exata estória” foi publicado originalmente pela revista Senhor, em 1960, a pedido de Odylo Costa, filho, outro grande amigo de Guimarães Rosa.
“Apreciei bem aquela cidade”
Abaixo, trechos do conto “A simples e exata estória do burrinho do Comandante”, de Guimarães Rosa, publicada no livro Estas estórias, nos quais é mencionada a cidade de São Luís:
Em 1926, no fim do ano, até começos de 1927, estive em São Luís do Maranhão, porque a Coluna Prestes andava operando seus rebuliços por dentro do Piauí, apalpando a arpéu os governos dos dois Estados. A ameaça era estudável (…)
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Um dia, por fim, o Amazonas abriu a onda azul do mar do Maranhão, que estalava, banzeiro, nos dando contrabalanço (…). (…) recordei que, mesmo ali, naquelas baía e barra, aparecera um dia, a bordo da nave Pedro I, também sozinha, o almirante Cochrane, a fim de libertar a província do Maranhão, a 26 de julho de 1823 foi a efeméride (…).
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Dali, do meu navio, eu contemplava, acolá da muralha, casas e coqueiros, a cidade em dois níveis, parte baixa e parte alta. Em algum trecho do porto, na baía, em outros coloniais tempos, o cais, aqui, de San Luiz do Maranhão, se chamava “O Cais do Desterro.
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Conhece São Luís? É antiga, tresanda a decorosas famagorias, e grava com um relento de torpor o passado, não obstante a certa e simpática veemência de seus habitantes. Achei-lhe encantos. A cidade estimável, com ruas desenvolvidas de distortas, de várias ladeiras, as ricas igrejas de repente vetustas, diz-se que são entre si ligadas por subterrâneos cheios de morcegos… Os sobrados centenários, imensas quadras desses, sobradões de dois ou três andares, mansões de beirais salientes, balcões com grades de ferro bem trabalhadas, mirantes. E azulejos, azulejos, por vezes se estendendo até as cimalhas; depoentes aspectos. (…)
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Recorde a sua geografia. Veja, a costa do Maranhão é o desenho, a linha frontal de uma gaivota em voo, o desdobrar-se d´asas; ela encentra um V, um golfo aberto em ângulo.
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Agarrei a paisagem. À direita, o bloco da Ponta de São Francisco, com o grande prédio do Asilo de Mendicidade, e casas entre coqueiros, juçareiras, mangueiras e cajueiros, em penduramento no barranco.
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Fora bem recebido da gente maranhãense – (porque é assim e não “maranhense”, que digo, conforme melhor me parece e soa).
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Apreciei bem aquela cidade de São Luís do Maranhão, de sobrados de azulejos e singulares ruas, de muita poesia. Tocava uma banda-de-música – as retumbantes marchas – e já para trás.