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Notícia

Centro de Estudos Constitucionais e de Gestão Pública

Hermenêutica e Pandemia – por João Batista Ericeira

No caso do Brasil, o desentendimento entre as autoridades federais, estaduais e municipais sobre as providências sanitárias de enfrentamento da pandemia ensejou a manifestação do Supremo Tribunal Federal-STF sobre as suas competências. O Judiciário cumpriu a função de guardião da Constituição Federal e dos Direitos Fundamentais.

João Batista Ericeira é professor e advogado

 A pandemia evidenciou a fragilidade da condição humana, das economias nacionais e da internacional. Os conflitos bélicos, a provável eclosão de guerras nucleares, as agressões aos recursos naturais do planeta, o aumento da pobreza, geraram a aspiração por nova ordem mundial.

O final da Segunda Guerra, a vitória dos Aliados, em 1945, permitiu o arranjo das relações internacionais. Criou-se a ONU e a jurisdição internacional. Manteve-se até o final dos anos oitenta da centúria passada, encerrando-se com a desintegração do bloco soviético. A partir daí impôs-se a hegemonia dos Estados Unidos e o fortalecimento da Alemanha e do Japão.

As grandes empresas dominam a economia e a política do mundo. Detendo os megapoderes do controle financeiro, das tecnologias e das comunicações, disseminaram a ideologia neoliberal da redução do Estado, limitando-o ás atividades essenciais. A atual conjuntura desmente o pressuposto. A China, adotando o capitalismo de Estado e a ideologia socialista, emergiu como superpotência pela capacidade de produção e controle de tecnologias. Em cenário de multipolaridade, fala-se de sua bipolarização com os Estados Unidos.

A comunidade internacional é uma só. A pandemia comprovou a interpendência de todos os países e a necessidade da governança mundial. O tema não é novo. Entre 1972 e 1973, o historiador inglês Arnold Toynbee e o filósofo japonês Daisaku Ikeda, mantiveram interessante diálogo sobre as possibilidades de instalação definitiva da paz e de governança mundial. A ideia contemplada no livro “A Paz Perpétua” de Kant, em 1795, sustenta a igualdade jurídica entre os Estados e o estabelecimento de relações baseadas na ética e na democracia. Kelsen a revalidou defendendo o monismo com a prevalência do Direito Internacional, nosso Rui Barbosa a reafirmou em Haia em 1907.

Orientações díspares de governos nacionais tomadas em relação a pandemia comprometeram, e permitiram a disseminação do vírus em vários países. Os protocolos sugeridos pela OMS deveriam ter sido seguidos desde o início, e por si contribuem para a procedência do argumento de reforçar a autoridade dos organismos internacionais.

No caso do Brasil, o desentendimento entre as autoridades federais, estaduais e municipais sobre as providências sanitárias de enfrentamento da pandemia ensejou a manifestação do Supremo Tribunal Federal-STF sobre as suas competências. O Judiciário cumpriu a função de guardião da Constituição Federal e dos Direitos Fundamentais.

 O juiz Stephen Breyer, da Corte Suprema dos Estados Unidos afirmava: o julgador isolado, separado da sociedade, é uma quimera. O juiz representa o detentor originário do poder de julgar, o povo. Cabe-lhe a interpretação judicial em seu nome, fazendo-o através do ordenamento jurídico que lhe outorgou a representação para tanto.

A técnica jurídica deve estar a serviço dos interesses da sociedade, não podendo apresentar-se como tecnologia distante dos interesses da sociedade a que deve servir, sem qualquer prejuízo para a segurança jurídica.

As Declarações Internacionais dos Direitos do Homem são os principais referenciais normativos para  assegurar as liberdades fundamentais e coibir os abusos que possam ser cometidos na excepcionalidade da pandemia por autoridades ou por pessoas.

A OAB se posicionou pelo cumprimento dos Direitos Humanos e da Constituição e pela construção da necessária hermenêutica constitucional. Finalmente, Ives Gandra da Silva Martins, jurista emérito, venceu a infecção do coronavírus, recebeu alta hospitalar. Tempos atrás, estive com ele no escritório da Alameda Jaú, tratando do programa de métodos alternativos de solução dos conflitos para a AMAd, juntamente com o seu atual presidente Roberto Gomes. Contei com a preciosa intermediação de José Renato Nalini, então presidente do Tribunal de Justiça de São Paulo. Não esqueci um ponto do seu decálogo: o Direito é a mais universal das aspirações humanas, e ganha vida quando materializado pela advocacia.