“…a onda de liberalismo não é uma coisa passageira, não é uma moda, como alguns intelectuais teimosamente apegados a dogmas da esquerda velha gostam de insinuar. Não é um modismo. É uma onda histórica profunda, partindo para o multipartidarismo, e por isso mesmo ela é mundial – das Filipinas a Moçambique.” – José Guilherme Merquior
O CECGP faz um resgate histórico ao publicar, em sua página web, a entrevista que José Guilherme Merquior, um dos intelectuais mais completos que o Brasil já teve, concedeu ao correspondente do antigo Jornal do Brasil, no ano de 1990, na França. Na época, Merquior tinha 49 anos e enfrentava um câncer no pâncreas, vindo a falecer pouco tempo depois. Nas palavras de José Mário Pereira, “a densa e meteórica trajetória intelectual de José Guilherme Merquior foi vincada pelo compromisso com a razão, o apreço ao debate de alto nível e a paixão pelas ideias. Se, ao longo de sua carreira, peregrinou por correntes diversas de pensamento, perseguiu sempre, no entanto, a noção de rigor e a ideia de verdade. Autêntico iluminista, Merquior leu tudo “por dentro”, e, embora tenha realizado uma carreira universitária única, não se deixou tentar pela vida acadêmica. Em verdade, tinha genuíno desprezo pelas guildas universitárias”…(…) Até o dia de sua morte – uma perda irreparável para a cultura do país – Merquior permaneceu lúcido, com a vivacidade e o humor que fizeram dele não só o amigo ideal, mas o ensaísta elegante, o inexcedível crítico de poesia, e o polemista implacável, sempre disposto, porém, a aplaudir o adversário inteligente….(Da apresentação do livro “O Liberalismo – Antigo e Moderno”. Merquior, José Guilherme. Rio, Editora Nova Fronteira, 1991 – disponível na biblioteca do CECGP/SVT Faculdade).
“Ao lado de sua mulher Hilda, colega desde os tempos da Faculdade de Filosofia, José Guilherme Merquior luta com coragem admirável contra um câncer. Nem isso faz esmorecer sua criação literária, suas reflexões políticas de longo alcance. Com 49 anos, embaixador do Brasil junto à UNESCO, em Paris, Merquior continua o intelectual polêmico, brilhante, com uma intensa produção literária. Neste abril estará nas livrarias em Nova York, Paris e nas cidades brasileiras a sua História do liberalismo. Doutor em Letras pela Sorbonne, Doutor em Sociologia pela London School of Economics, este diplomata, traduzido em francês, inglês, espanhol e italiano, este ano teve ampliado seu universo de leitores: holandeses, japoneses, chineses e turcos poderão lê-lo em seus idiomas. Reflexões políticas, filosóficas e sociais marcam os 20 livros publicados por Merquior até hoje.
Defensor intransigente do liberalismo, Merquior credita à América Latina o início da onda liberal que tomou conta do mundo e se manifestou com mais realce no desmantelamento dos governos comunistas na Europa do Leste. Mas alerta: “O pior equívoco é o desmantelamento irrefletido e irresponsável do Estado.” E prega como prioridade nacional uma revolução: a da educação. Seu argumento: “Hoje, no Brasil, se você perguntar a alguém quem é José Bonifácio de Andrada e Silva, o sujeito vai responder: ‘É o técnico do Bangu.” Leitor voraz e polemista famoso, que não poupa equívocos de seus adversários, Merquior está em permanente disposição para refletir sobre pontos de vista opostos e só é intolerante em um grupo: o da patrulha ecológica. “Hoje estão acuados na História”, diz. Em seu apartamento na Avenue Foch, Merquior falou ao jornal do Brasil durante três horas.”
ENTREVISTA / JOSÉ GUILHERME MERQUIOR
JORNAL DO BRASIL
DOMINGO, 16/12/90 1º CADERNO
Entrevista concedida a Silvio Ferraz, então correspondente do Jornal do Brasil na França
“O pior equívoco é o desmantelamento irrefletido e irresponsável do Estado.”
— O liberalismo veio para ficar?
— Acho que o liberalismo realmente é um processo profundo, historicamente marcante, uma tremenda página virada. De resto, quero assinalar que este movimento não brotou assim de repente, com a queda do muro de Berlim. Não é isso; 1989 foi um ponto culminante, particularmente expressivo porque marcou o fim da guerra fria. Mas, na realidade, passamos toda a década de 80 assistindo a movimentos em direção da liberalização econômica. Tivemos o retorno do que eu chamo, baseado em autores latinos do entreguerras, de retorno ao “liberalismo”, em processos de democratização muito importantes em países que por sua projeção, dimensão, pelo menos regional, podem ser considerados países-chaves. Brasil, Argentina, Filipinas, se inscrevem neste quadro.
— Então a onda liberalizante começou na América Latina?
— Sim. Nos anos 80 vimos se consolidar um movimento de liberalização política do qual a Europa falou pouco. Os Estados Unidos também. E isso devido ao eterno problema da falta de visibilidade que nossos temas e problemas têm diante do “olhar metropolitano”, “meridional”. É uma pena, porque gastou-se tanta tinta — e era justo que se gastasse — com as chamadas revoluções descomunizantes do Leste. Mas, quando se situa a coisa numa perspectiva global, planetária, você verifica que no Sul – para se usar a expressão lançada por Giscard d’Estaing – é que começou este processo de liberalização política. No nosso caso, começou bem cedo, nos anos 80 – distensão, abertura e finalmente plena democratização. Tudo isso, que diabo, foi feito com alguns aninhos de antecipação em relação ao Leste. Mas, é claro, foi um processo menos espetacular.
— E por que foi tão ignorado pelo primeiro mundo?
— Primeiro, porque algumas das liberalizações latino-americanas foram do “tipo espanhol”, ou seja, transições controladas, ao invés de mudanças súbitas e radicais. De outro lado, sair de regimes autoritários não é a mesma coisa que sair de regimes totalitários. Há esta diferença fundamental. Mas, o que queria assinalar é que a onda de liberalismo não é uma coisa passageira, não é uma moda, como alguns intelectuais teimosamente apegados a dogmas da esquerda velha gostam de insinuar. Não é um modismo. É uma onda histórica profunda, partindo para o multipartidarismo, e por isso mesmo ela é mundial – das Filipinas a Moçambique.
“Um intelectual liberal não pode ter pretensões a guia.”
— Quem terá um papel importante nessa virada liberal?
Bom, o intelectual liberal tem um papel crucial. Não é que ele vá dirigir o processo, mesmo porque por ser um intelectual liberal ele não pode ter esta pretensão. Esta pretensão tem a elite dirigente no sentido “gnóstico”, do tipo “nós temos um conhecimento superior ao das massas por isso vamos tanger o rebanho na direção certa” – este era o problema fundamental do intelectual de outro tipo, do estatocrata, do ideocrata do tipo justamente “iliberal”. Um intelectual liberal não pode ter pretensões a guia. Agora, ele pode influenciar muito na criação de uma cultura da liberdade como gosta de dizer Vargas Llosa, buscando iluminar ou pelo menos erodir, a curto prazo, aqueles reflexos da sociedade civil que se opõem à liberalização. O que é verdade é que, embora seja muito popular, e popular entre certos liberais, simplesmente contrapor estado e sociedade civil numa atitude angélica – quer dizer, o anjo é a sociedade civil, o demônio o estado – essa não é a situação real.
“Não se trata de viver com Estado ou sem Estado. Trata-se de saber qual é o tipo de Estado que você precisa para aumentar a liberdade.”
Qual é ela?
A situação real é a seguinte: para que o próprio estatismo, pecado no qual tanto incidimos e reincidimos, tivesse uma vida tão longa e tentáculos tão numerosos, é porque houve conivência e até cumplicidade de muitos setores da sociedade civil. Se tivesse sido assim, o Estado seria uma nave espacial, uma coisa surrealista. Não foi isso, que diabo, que aconteceu. Nas sociedades latino-americanas, sociedades como a brasileira, a mexicana, a argentina, que foram muito longe em excessos estatistas – principalmente, no campo econômico -, isso não aconteceu por métodos de conquista como nos tempos de outrora. Quer dizer, não foi de repente que uma raça conquistadora tomou o Brasil, conquistou a Argentina e ocupou o México, impôs um determinado regime econômico. Portanto, isso vem de longe. Vem de hábitos, de reflexos, de tradições que têm raiz, também, na sociedade.
Então, seria preciso desmantelar o estatismo?
É preciso, primeiro, não confundir desmantelamento do estatismo com desmantalemento irrefletido e até, de certa forma, irresponsável do Estado. Afinal de contas, o liberalismo não é uma doutrina anti-estado. É uma doutrina anti-estatismo. Senão você confundiria o liberalismo com o anarquismo – uma doutrina bonita nas suas formulações românticas, mas inviável, impraticável, dada a complexidade da vida social, em particular da sociedade moderna. Em suma, não se trata de viver com Estado ou sem Estado. Trata-se de saber qual é o tipo de Estado que você precisa para aumentar a liberdade. A liberdade precisa ser aumentada principalmente por razões éticas, como reforço da dignidade humana. Bastaria este argumento para você lutar por sua ampliação. Mas, a liberdade é também, no plano econômico, o melhor instrumento que se conhece para a conquista da prosperidade.
Em entrevista à Folha em 1986, Merquior definiu-se como liberal em economia, social-democrata em política e anarquista em cultura.
Merquior, o conformista combativo
MARCO RODRIGO ALMEIDA
ilustração ZÉ OTÁVIO
23/08/2015
RESUMO José Guilherme Merquior (1941-91) destacou-se pela erudição, curiosidade intelectual e capacidade de trabalho. A obra do ensaísta e diplomata, que vai da literatura à política, passando pela arte e pela filosofia, está sendo reeditada. Liberal e crítico do marxismo, ele tornou-se exemplo de conservador civilizado.Diplomata, ensaísta, crítico literário, Merquior morreu aos 49 anos em 1991. Deixou uma obra espantosa, tanto pelo volume (19 livros) quanto pela variedade de temas (literatura, filosofia, política, economia, sociologia, história).Uma certeza e uma dúvida pairam sobre José Guilherme Merquior. Não há, mesmo entre seus desafetos, que não eram poucos, quem não reconheça sua inteligência superior e imensa cultura. Por outro lado, até para seus admiradores, também numerosos, por vezes é difícil avaliar o legado de sua produção intelectual.
Defensor do liberalismo, crítico feroz do pensamento de esquerda, Merquior foi uma figura de destaque no debate cultural brasileiro entre os anos 1960 e 1980. À erudição somava-se o gosto irrefreável pela polêmica. Talvez sejam essas duas marcas que ainda hoje embaralhem a avaliação de sua carreira.
O pensamento de Merquior voltou à tona há três anos, quando a editora É Realizações iniciou o projeto de reedição de seus livros, acrescidos de cartas, documentos e análises inéditas sobre sua obra.
O próximo a sair, “Formalismo & Tradição Moderna” (1974), previsto para setembro, dá uma boa medida da ambição que norteou sua carreira. Em 13 longos ensaios, ele comenta o modernismo brasileiro, as artes plásticas, a cultura kitsch, a pintura renascentista, um poema de Camões, a tradição da poesia lírica e muito mais.
João Cezar de Castro Rocha, professor de literatura comparada da Uerj e coordenador das reedições, convida a encarar com olhos livres os textos do ensaísta, para além das dicotomias que o marcaram em vida. “A produção da cultura ocidental foi marcada por uma distinção rígida entre direita e esquerda. Nós precisamos ler o Merquior hoje reconhecendo um fato elementar: a queda do Muro de Berlim. Se o fizermos, vamos descobrir coisas interessantíssimas. Ele foi um dos maiores intelectuais do século 20.”
FORA DO COMUM
Merquior nasceu em abril de 1941, no bairro carioca da Tijuca, em uma família de classe média sem vocação intelectual. Mais velho de quatro irmãos, impressionou desde cedo pela inteligência fora do comum.”Ele carregou um livro até na primeira vez em que fomos ao Maracanã, ainda garotos, ver um jogo do Fluminense. Leu durante o jogo inteiro. Só interrompeu quando saiu um gol. Então ele olhou para o campo e perguntou de que time era o homem de camisa preta. Era o juiz”, se recorda, aos risos, Carlos Augusto, um dos irmãos.Quando se pergunta aos irmãos como era ele, a resposta invariável é: alguém que nasceu para ler, sempre enfronhado em livros.
Da primeira viagem a Paris, aos 15 anos, voltou com a mala cheia de livros e o busto pesado de Voltaire, um de seus ídolos.
Merquior não praticava esportes, saía pouco de casa, nunca teve muita habilidade para atividades práticas. Nem só a literatura, contudo, ocupava a cabeça do garoto prodígio. Aos 16 anos se apaixonou por uma colega de escola um ano mais velha, Hilda. Depois disso nunca mais se separaram – casaram-se em 1963 e tiveram dois filhos, Pedro e Julia.
Hilda, hoje aos 75 anos, sofre de uma doença degenerativa e perdeu a memória. Pedro morreu aos 33, de acidente de moto, em 2004. Julia, 49, é dona de uma loja de produtos sustentáveis no Rio.
CÁUSTICO
Aos 18, Merquior começou a publicar críticas na imprensa. O tom cáustico marcou a coluna “Poesia para Amanhã”, no prestigiado “Suplemento Dominical” do “Jornal do Brasil”.
Sobre o poeta amazonense Thiago de Mello e o seu “Vento Geral” escreveu em junho de 1960: “T.M é mau poeta: e só. Mas tem pelo menos uma vantagem: entre os maus, é o pior. ‘Vento Geral’ representa o apogeu da retórica, a mais preciosa reunião de vácuo verbal que surgiu de 1945 para cá”.
Em 1961, durante um festival de cinema russo e soviético, o filósofo marxista Leandro Konder (1936-2014) aproximou-se de “um jovem de rosto rechonchudo, que falava pelos cotovelos”, conforme declarou ao jornal “O Globo” em 1991.
Na conversa, Konder citou um texto de Merquior. Ao que ouviu: “Mas Merquior sou eu”. Gargalharam e ficaram amigos, apesar das diferenças ideológicas.
Caiu também nas graças de Carlos Drummond de Andrade e Manuel Bandeira. O primeiro ofereceu-lhe, em 1963, um poema como presente de casamento. O segundo, um ano antes, sem conhecê-lo pessoalmente, convidou-o a ajudá-lo na antologia “Poesia do Brasil”.
RAZÃO
Em 1965, Merquior lançou seu primeiro livro, “Razão do Poema”. O título já denotava um elemento que seria central em todos os seus livros posteriores –a crença no racionalismo.
A antologia com ensaios sobre Gonçalves Dias, Drummond, Murilo Mendes, João Cabral e outros foi saudada como um acontecimento.Há certo consenso de que o melhor de sua produção foi a crítica literária, especialmente a de poesia. É a partir de meados dos anos 1970 que política e economia ganham mais terreno em seus livros – em parte reflexo de seu trabalho no Ministério das Relações Exteriores.”Os textos são formidáveis. Apenas Antonio Candido entende e sente a poesia como ele”, diz o poeta Armando Freitas Filho. O próprio Candido, em conferência em homenagem ao autor, em 1991, afirmou que Merquior “foi sem dúvida um dos maiores críticos que o Brasil teve, e isto já se prenunciava nos primeiros escritos”.
Formado em direito e filosofia, prestou concurso para o Itamaraty em 1962. E, sim, foi o primeiro colocado. “Naquele ano houve dois concursos para nossa turma. Ele foi o primeiro colocado em um, eu em outro. Isso criou certa solidariedade entre nós”, conta o embaixador Luiz Felipe Lampreia, ministro das Relações Exteriores no governo Fernando Henrique Cardoso.
“Merquior priorizou a parte intelectual à atuação rotineira de um diplomata. Não tinha vocação para ser negociador comercial, como eu fui. Notabilizou-se pelo brilho intelectual, como João Cabral, Guimarães Rosa e Vinicius de Moraes.”
O embaixador Marcos Azambuja, formado em 1957 no Itamaraty, conta que Merquior chegou ao Instituto Rio Branco com grande reputação. “Sempre que tínhamos alguma dúvida sobre qualquer assunto, íamos falar com ele. Era uma pessoa realmente extraordinária, agradabilíssima.”
Azambuja faz uma descrição curiosa da ambivalência do colega. “Ele tinha uma cara redonda, risonha, ao mesmo tempo angelical e demoníaca. Tinha uma impaciência tremenda com as pessoas que pensavam o lugar-comum.”
Após o golpe militar de 1964, Merquior foi chamado a prestar depoimento, sob suspeita de ligações com grupos de esquerda. Provavelmente caiu no radar dos militares por ter realizado conferências no Instituto Superior de Estudos Brasileiros (Iseb), extinto pelo governo logo após o golpe.
No seu acervo, hoje em posse da É, há uma cópia do processo administrativo aberto contra o jovem diplomata e da resposta dele –que foi absolvido. A editora planeja publicar os documentos.
O processo é datado de 11 de setembro de 1964. Traz nove perguntas sobre formação universitária, filiação partidária e opinião sobre o novo governo, entre outros temas. A oitava indagava acerca dos conflitos ideológicos no mundo moderno. Aos 23, ele defendia pontos-chave de seu pensamento.
“Uma das características do mundo moderno é o pluralismo”, escreveu. “[…] É evidente que a solução dos conflitos ideológicos mais gritantes do nosso tempo deverá ser buscada através da prática de uma atitude em que prevaleça o espírito de franco debate e o ânimo de solidariedade internacional.”
O caso leva a uma questão irônica: um dos futuros expoentes do liberalismo no Brasil, que iria declarar diversas vezes a morte do marxismo, teria sido de esquerda aos 20 e poucos anos?
Os amigos do Itamaraty acham que não. “Não era de esquerda nem de direita, mas de centro”, acredita Lampreia. Mas talvez se possa dizer que o jovem Merquior nutria certa simpatia pela esquerda, alimentada sobretudo pela vasta curiosidade intelectual.
“Merquior nunca chegou a ser marxista, mas na época estava interessado na teoria estética do marxismo, sobretudo em Lukács. Mas ainda antes do golpe de 1964 ele reviu sua posição e me escreveu uma carta, na qual se manifestava insatisfeito até com a teoria estética”, escreveu Konder em 1991.
Lukács é uma das referências do segundo livro de Merquior, “Arte e Sociedade em Marcuse, Adorno e Benjamin” (1969).
O alemão Gunter Karl Pressler, professor de teoria literária na Universidade Federal do Pará, aponta um feito histórico do livro –teria sido o primeiro do mundo a analisar sistematicamente a Escola de Frankfurt: “Este estudo foi publicado antes da referência sempre citada sobre a Escola de Frankfurt: ‘A Imaginação Dialética’, de 1973, do americano Martin Jay”, diz.
PARIS
Em 1966, Merquior partiu para seu primeiro posto internacional, como terceiro-secretário na embaixada em Paris. Em 72, concluiu doutorado na Sorbonne sobre a poesia de Drummond. Depois de passagem por Bonn, na Alemanha, foi levado pelo embaixador Roberto Campos para ser primeiro-secretário em Londres, em 1975.
Os quatro anos na Inglaterra e o convívio com Campos e com intelectuais como Ernst Gellner e Raymond Aron marcaram o início de sua conversão ao liberalismo. Na London School of Economics, obteve seu segundo doutorado.
“Ninguém no Brasil sintetizou melhor a essência do ‘argumento liberal’ nem mostrou mais claramente o antagonismo que existe entre os ideais liberais e as modas intelectuais ‘pós-modernas'”, avalia hoje o filósofo Olavo de Carvalho.
Especialmente a partir dos anos 1980, Merquior, como observou Campos, passou da “convicção liberal” à “pregação liberal”. São dessa fase o citado “O Argumento Liberal” (1983), “Michel Foucault, ou o Niilismo de Cátedra” (1985) e “O Marxismo Ocidental” (1987).
Tomando o partido da modernidade e do racionalismo, iniciou então uma cruzada contra o marxismo, a psicanálise e a arte de vanguarda. Via nos três alvos exemplos de dogmatismo, de pessimismo, de rejeição ao racionalismo iluminista, de condenação da civilização moderna e da ciência.
Mas “seria possível atacar o marxismo, a psicanálise e a arte de vanguarda sem ser reacionário em política, ciências humanas e estética?”, indagou-se Merquior no prefácio de “As Ideias e as Formas” (1981). Essa questão resume as principais críticas a sua obra.
“Embora fosse seu amigo e admirador de sua erudição, não posso negar que fosse política e intelectualmente um conservador”, afirma Luiz Costa Lima, crítico e professor emérito da PUC-RJ. “Há observações pontuais muito boas na obra dele, mas dentro desses limites”, completa. “Os contrapontos que fez às vanguardas artísticas são extremamente superficiais. O elogio do progresso iluminista se tornou equivocado no final do século 19. Por um equívoco de visão, ele não percebeu nada disso.”
Alcir Pécora, professor de teoria literária da Unicamp, acredita que Merquior tendia “a uma visão conformista”. “Há algo de profundamente ‘diplomático’ na sua maneira de pensar: uma esperança de resolução das contradições da cultura e da sociedade depositada na mesa das racionalizações normativas institucionais.”
Outra crítica costumeira é a de que o autor jamais produziu ideia original. Seria, nessa visão, essencialmente um catalogador de conhecimento, não um pensador.
Castro Rocha discorda. “Ele pegou as ideias mais importantes da cultura ocidental e realizou uma síntese de uma clareza que ninguém mais poderia fazer. Para fazer isso é preciso ter ideias.”
BRIGÃO
Nos anos 1980, Merquior participou de polêmicas hoje lendárias no meio intelectual brasileiro. José Mário Pereira, editor da Topbooks e um dos mais próximos amigos do escritor na última década de vida dele, acompanhou todas de perto. “Ele adorava uma polêmica. Parecia um menino brigão, se exacerbava. Às vezes passava um fim de semana inteiro respondendo a alguma crítica.”
Pereira recorda, por exemplo, uma disputa com Ricardo Musse, então doutorando em filosofia, hoje professor do departamento de sociologia da USP. Em texto publicado na Folha em novembro de 1990, Musse escreveu: “No figurino redutor de Merquior, toda e qualquer crítica à modernidade nada mais é do que um ressaibo de irracionalismo romântico”.
Duas semanas depois, veio a resposta, também publicada na Folha. “Não sei se aos doutorandos em ‘filô’ da USP se exige saber ler antes de pretender julgar. Em caso positivo, temo pelo doutoramento de Musse”, escreveu.
No meio do texto soltou uma de suas tiradas: “O chocolate, quando bom e bem-feito, pode ser muito agradável ao paladar. Mas sua consistência será sempre algo precária. Não assim a de Musse”.
Merquior também atacou (e foi atacado) por psicanalistas, teve entreveros com Paulo Francis, chamou Caetano Veloso de “um pseudointelectual de miolo mole”.
O cantor retrucou na época: “Prefiro o Belchior”. Caetano ainda se lembra bem do episódio. “O fato é que ‘intelectual de miolo mole’ é uma expressão genial para descrever a geração de cançonetistas dos anos 60. Pelo menos é certa em relação a mim”, diz hoje. Ele leu há pouco e achou excelente o livro de Merquior sobre Foucault.
A mais famosa controvérsia de Merquior, porém, foi com Marilena de Souza Chaui, professora do departamento de filosofia da USP.
Em texto publicado em maio de 1981 no “Jornal do Brasil”, ele notou a presença literal –dispensada de aspas– de parágrafos do filósofo francês Claude Lefort no livro “Cultura e Democracia”, de Chaui.
Dois meses depois, a professora publicou sua resposta no “JB”. “Merquior sugere que houve apropriação indébita. Equivocou-se.”
“Esclareço ainda que devo a Claude Lefort muito mais do que o leitor sequer poderia imaginar e que muitas das suas ideias e minhas nasceram juntas, o que me deixa sempre muito à vontade para transitar entre elas.”
O caso ganhou fumaças de guerra entre esquerda e direita e repercutiu por meses. Dois anos depois, Lefort veio ao Brasil e disse ter sido reconhecido por várias pessoas nas ruas.
Na mesma época, Merquior foi eleito para a Academia Brasileira de Letras e nomeado assessor do então ministro da Casa Civil, Leitão de Abreu, durante o governo de João Figueiredo –oferecendo munição pesada a seus desafetos, que passaram a tachá-lo de reacionário e “intelectual da ditadura”.
“Foi uma injustiça que fizeram com ele”, considera Armando Freitas Filho. “Nunca foi reacionário. Era um liberal no sentido inglês.”
Rubens Ricupero, diplomata e ex-ministro da Fazenda (governo Itamar Franco), considera um absurdo dizer que Merquior fosse um homem de direita. “Nada tinha do liberal favorável à redução ou limitação do papel do Estado na luta contra a desigualdade e a miséria.”
Em entrevista à Folha em 1986, Merquior definiu-se como liberal em economia, social-democrata em política e anarquista em cultura.
“Nenhum liberal que eu conheça disse que o mercado resolve todos os problemas sociais. Daí a necessidade de um Estado protetor. Também não resolve todos os problemas econômicos, daí a necessidade, menor, mas também importante, de um Estado promotor”, declarou ao “JB” em 1990.
João Cezar de Castro Rocha define assim o credo liberal de Merquior: democracia como valor universal; racionalismo como estrutura de pensamento; pluralismo como método intelectual; economia de mercado, porém com a presença do Estado como força de equilíbrio das desigualdades.
Castro Rocha vê três fases na carreira de Merquior. Na primeira, nos anos 1960, as preocupações eram puramente estéticas. Na segunda, a partir dos 1970, a análise é menos detalhada e mais panorâmica. O liberalismo torna-se o eixo de reflexão. A arte deixa de ser vista em seus próprios termos e passa a simbolizar a crise da cultura.
A terceira fase, a partir dos anos 1980, não chegou a se concluir, mas Castro Rocha levanta a hipótese de que Merquior já não se contentava em ser apenas um pensador e considerava a ideia de colocar em prática um projeto de país.
Já definiram Merquior como um intelectual em busca de um príncipe, alguém de quem pudesse ser o mentor. Por um momento Fernando Collor de Mello ocupou esse papel. Roberto Campos conta em suas memórias que, antes e depois de eleito presidente da República, Collor procurou Merquior em Paris, onde ele era embaixador do Brasil na Unesco. Queria “colher ideias sobre a modernidade” e pediu-lhe um programa partidário.
O diplomata elaborou um documento de 33 páginas, espécie de “agenda social-liberal” para o Brasil. Também escreveu grande parte do discurso de posse.
“Ele ficou muito impressionado com o Collor. Achava que ele tinha vontade, visão, empenho em construir um novo Brasil. Certamente ele lamentaria tudo o que ocorreu depois”, afirma José Mário Pereira.
“Ele fez uma avaliação errada daquele momento”, diz Marcos Azambuja. “Acreditava que o Brasil tinha maturidade para encontrar o caminho racional. Ele achava que o Collor era o que parecia ser, o jovem político idealista, e não viu o que era na realidade, o velho político de Alagoas.”
Merquior escreveu a plataforma partidária já tomado pelo câncer de intestino que o mataria.
Em dezembro de 1990, fez sua última palestra, em Paris. Mesmo bastante debilitado fisicamente, falou por quase uma hora, em francês, sem texto escrito, sobre os últimos cem anos da história do Brasil.
O último projeto foi “O Liberalismo – Antigo e Moderno”, que concluiu pouco antes de morrer. O livro póstumo foi o fecho perfeito de uma trajetória que impressiona e instiga –e permanece longe de ser um consenso.
Títulos relançados pela É Realizações
“Razão do Poema” (1965)
R$ 63; 336 págs.
“Formalismo & Tradição Moderna” (1974)
R$ 64,90; 512 págs.
“A Estética de Lévi-Strauss” (1975)
R$ 39; 168 págs.
“Verso Universo em Drummond” (1976)
R$ 59; 416 págs.
“De Anchieta a Euclides” (1977)
R$ 49,90; 400 págs.
“O Liberalismo” (1991)
R$ 39,90; 384 págs.
MARCO RODRIGO ALMEIDA, 31, é jornalista da Folha.
ZÉ OTÁVIO, 31, é ilustrador e expõe na Plus Galeria, em Goiânia, até 8/10.