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Centro de Estudos Constitucionais e de Gestão Pública

Macron e a “vontade geral” …por Sergio Tamer

“É certo que o iluminista de Genebra distinguia a “vontade de todos” da “vontade geral” ao afirmar que esta se prende somente ao interesse comum; a outra, ao interesse privado e não passa de uma soma das vontades particulares”…

Por Sergio Tamer*

          O governo francês fez as contas, constatou o déficit na previdência social daquele país e a sua iminente insolvência e decidiu que a idade para a aposentadoria deverá subir de 62 para 64 anos. Além de antecipar para 2027 a exigência de contribuir por 43 anos, em vez dos 42 atualmente, para receber uma aposentadoria completa. O parlamento não aprovou a proposta, o povo rebelou-se e mesmo assim o presidente Macron decidiu implementar essa alteração utilizando-se de um dispositivo constitucional que o permite dar essa canetada no Congresso. E justificou sua postura sob o argumento de que a medida atende ao “interesse geral”.

          Para a Ciência Política, interessa estudar esse fato: a reforma da previdência francesa é rejeitada por dois terços da população, não tem o aval dos deputados e vem sendo alvo dos maiores protestos contra uma reforma social nos últimos trinta anos. Mesmo assim, Emmanuel Macron foi à televisão afirmar que “a reforma está no interesse superior da nação”, isto é, ela é legítima ainda que contrariando os interesses da maioria. Observa-se aqui, nesse aparente paradoxo, o conceito rousseauniano exprimido pelo dirigente francês, formulação essa que vem a ser muito adequada, aliás, para esse momento político vivido na França.

          Esse episódio me levou a sublinhar alguns dos elementos mais significativos que dão sustentação à teoria da “vontade geral” conforme se depreende da obra de Rousseau. É certo que o iluminista de Genebra distinguia a “vontade de todos” da “vontade geral” ao afirmar que esta se prende somente ao interesse comum; a outra, ao interesse privado e não passa de uma soma das vontades particulares. Com essa concepção, que tem influência no pensamento ocidental até os dias de hoje, a legitimação do poder e da autoridade civil são deduzidas em “O Contrato Social”. 

          Pode ser intrigante afirmar que as “vontades particulares”, cuja soma resulta na vontade de todos, jamais podem ser confundidas com a “vontade geral”.  Mas esse é o ponto central da doutrina e base da moderna teoria da soberania popular. Ao discorrer sobre os limites do poder soberano, Rousseau expõe a ideia de como a “vontade geral” se relaciona com a vontade de todos os membros do corpo soberano, dela emergindo: “…a vontade geral, para ser verdadeiramente geral, deve sê-lo tanto no objeto quanto na essência…deve partir de todos para aplicar-se a todos.”  Em seguida, o filósofo genebrino acrescenta que “menos do que o número de votos, aquilo que generaliza a vontade é o interesse comum que os une, pois nessa instituição cada um necessariamente se submete às condições que impõe aos outros…por qualquer via que se remonte ao princípio, chega-se sempre à mesma conclusão, a saber: o pacto social estabelece entre os cidadãos uma tal igualdade, que eles se comprometem todos nas mesmas condições e devem todos gozar dos mesmos direitos.”

           Na interpretação de Testoni Saffo, “a vontade geral distingue-se especialmente pela qualidade, pelo seu caráter ético, ou seja, pelo interesse comum a que esta aspira e não pelo número de votos, portanto, teoricamente ela pode ser expressa também por uma única pessoa.”  Mas Rousseau  introduziu no Contrato o critério da maioria como método empírico para reconhecê-la. Essa a razão pela qual a vontade geral, mesmo sem ser a rigor a vontade de todos, declara-se, na prática, através da vontade de muitos, portanto, com a participação dos cidadãos no direito do voto. Pode-se, também, entendê-la, como a vontade racional do Estado, juntamente com a vontade racional do povo e do indivíduo.

          Com a teoria da “vontade geral” Rousseau acreditou ter superado a antítese entre indivíduo e Estado, entre liberdade e autoridade, fundamentando, em tese, a moderna teoria da soberania popular. Dessa forma, ele rejeita a ideia de que o estado civil é incompatível com a liberdade, dedicando-se a demonstrar ser possível conciliar o Estado com a liberdade. Mas os liberais do século 19 viam na teoria da “vontade geral” uma ameaça para a liberdade individual: é que aqueles se preocupavam em evitar a extensão dos poderes do Estado para poder conservar a liberdade, enquanto Rousseau propunha que a liberdade das pessoas só se efetivaria por meio da ação do Estado. O tema da “vontade geral” também não é estranho às teorias mais recentes do liberalismo, ainda que constantemente transformado. Todavia, o pensamento social e político do consagrado filósofo tem na noção de liberdade o seu eixo mais evidente.

          Por estarem as lições deixadas por Rosseau introjetadas de forma indelével no pensamento médio francês foi que Macron não hesitou em usá-las em sua entrevista à imprensa, ocasião em que, ao falar em “interesse superior da Nação”, contrapôs a sua decisão à “vontade de todos” isto é, à soma das vontades particulares. Estabeleceu, assim, claramente, no campo da retórica política, o confronto entre a “vontade geral”, fincada nos altos interesses da Nação, e a vontade da maioria ocasional, assentada na soma das vontades particulares. Uma, inserida no interesse comum; a outra, fixada no interesse privado…Vamos ver como termina esse duelo em Paris!

__________________________Sergio Tamer é presidente do Centro de Estudos Constitucionais e de Gestão Pública-CECGP; membro da Academia Maranhense de Letras Jurídicas e presidente da Academia Maranhense de Cultura Jurídica, Social e Política; é doutor em Direito Constitucional pela Universidade de Salamanca e autor de diversas obras jurídicas.