Na época já se conheciam as práticas antijurídicas do tribunal de Curitiba, mas o STF, acuado pela mídia nacional que ecoava a grande indignação da sociedade a cada grave revelação de corrupção que se anunciava, quedou-se silente e, em grande medida, conivente…
Por Sergio Tamer
O movimento político-jurídico que se formou em Curitiba, em torno da operação Lava Jato, levando figuras proeminentes da política e da alta esfera empresarial à prisão – ainda hoje amarga o preço dos seus atropelos institucionais e legais. Incensados pela avassaladora opinião pública, promotores e juiz passaram a agir freneticamente e, conforme foi visto e muitas vezes alertado por eminentes juristas, fizeram do princípio do devido processo legal um mero ornamento constitucional. Agora, o então juiz-agressor Sergio Moro colhe mais um revés ao ter a decisão que condenou o notório José Dirceu anulada no âmbito do STF.
A determinação, que partiu do ministro Gilmar Mendes em duas ações penais contra o ex-ministro da Casa Civil, foi tornada pública no dia 29 de outubro, por meio da qual foi estendido a Dirceu os efeitos do entendimento da Segunda Turma que, em março de 2021, declarou a parcialidade de Moro nas ações penais contra Lula. Em sua argumentação, o relator afirma que “os diálogos revelados pela Vaza Jato e outros elementos trazidos nos autos indicam ação coordenada entre Moro e a força-tarefa da Lava Jato para acusar e denunciar José Dirceu.” O ministro Gilmar aponta que tais fatores “demonstram a ausência de imparcialidade na condução dos processos contra Dirceu, impedindo o ex-ministro do direito a um julgamento justo.” Como a parcialidade do juiz significa dizer que ele deseja a todo custo a condenação do réu, esse procedimento equivale a uma conduta desonesta, especialmente se em conluio com o órgão acusador, como demonstrado contra o tribunal curitibano.
De fato, é princípio assente nas democracias que o devido processo legal, na condição de garantidor dos princípios constitucionais e processuais, é que torna justa e legítima a aplicação da pena ou a absolvição do réu, restando os demais procedimentos como típicos dos tribunais de exceção. Hoje na posição de senador da República, o ex-juiz Sergio Moro procurou defender-se da grave pecha de “juiz parcial”, isto é, de juiz desonesto, ao afirmar que em nenhuma das anulações de suas decisões foi dito que o réu – ou os réus – eram inocentes, como que admitindo que os fins justificavam os meios de sua conduta…
Na época já se conheciam as práticas antijurídicas do tribunal de Curitiba, mas o STF, acuado pela mídia nacional que ecoava a grande indignação da sociedade a cada grave revelação de corrupção que se anunciava, quedou-se silente e, em grande medida, conivente. Com a mudança dos ventos da política, mudou o tribunal a sua postura e agora está em busca do tempo perdido…
Teórico do modelo garantista, Luigi Ferrajoli chegou a criticar a operação Lava Jato, mesmo antes da revelação do “combinado” entre juiz e promotor. Descreveu, em entrevista que poucos deram a atenção devida naqueles tempos, todos os defeitos da atuação do juiz Moro, o que viria a ser melhor conhecido anos depois. O devido processo legal preconiza que as ações do Estado devem ser justas e uniformes, protegendo os direitos individuais. Ele estabelece que qualquer ação tomada contra uma pessoa deve seguir um procedimento legal, garantindo o direito de defesa e contraditório, estando presente, como norma fundamental do Direito, no inciso LIV do artigo 5º da Constituição Federal. Por esse princípio basilar, ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal o qual tem como pilares a ampla defesa e o contraditório.
O devido processo legal teve origem na Magna Carta inglesa de 1215, precursora das constituições democráticas do Ocidente. Assim, as garantias incorporadas nas constituições são como fontes de legitimação jurídica e política das concretas decisões no âmbito penal. Os direitos fundamentais e suas garantias são direitos e garantias frente à maioria, e nesse sentido, também o poder judicial, a quem se encomenda sua tutela, deve ser um poder virtualmente “frente à maioria”. Tecnicamente correta, a decisão de Gilmar Mendes peca pela sua tardia intervenção, o que ocasionou a prescrição das ações. E Sergio Moro, que se deixou queimar na fogueira das vaidades ficou devedor, à sociedade brasileira, pelas estrepolias jurídicas que ensejou a anulação dos seus atos…E assim caminha a democracia brasileira!
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SERGIO VICTOR TAMER é professor e advogado, mestre em Direito Público pela UFPe, doutor em Direito Constitucional pela USAL-ES, e pós-doutor pela Universidade Portucalense-PT. É presidente do Centro de Estudos Constitucionais e de Gestão Pública – CECGP