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Centro de Estudos Constitucionais e de Gestão Pública

“Matem todos os advogados”, disse Dick!…

 Você pode, se quiser, defender a decisão do juiz e o pedido do MPF; mas, ao fazê-lo, você assume também o ônus de defender uma decisão que desrespeita condições mínimas de existência da democracia, qualquer que seja a concepção de democracia adotada. Esse é o ponto.

Por Lenio Luiz Streck

“Como morrem as democracias”. “O fim da democracia”. “Como termina a democracia”. “O risco da democracia”. Há um sem-número de livros cujo fio condutor é precisamente esse que os títulos do gênero apresentam: a democracia está encarando seu abismo?

As razões que sustentam o (mais que legítimo) questionamento são muitas: a ascensão de movimentos populistas e/ou autoritários ao redor do globo; a crescente insatisfação popular com a classe política em sentido lato; ceticismo generalizado quanto à representação democrática; promessas não cumpridas da globalização; pós-modernidade, era da técnica, redes sociais. A lista, por óbvio, segue.

Cada uma dessas razões, que não (necessariamente) excluem uma a outra, tem sua razão de ser. Cada uma delas também carrega toda uma ordem de complexidades e nuances próprias, de modo que é difícil elaborar o que define exatamente cada uma delas.

A democracia pode morrer? Ora, é claro que pode. Os antigos já sabiam disso (ainda não sei o que é que eles não sabiam): nenhum regime é eterno.

A democracia vai morrer? Não sei. Espero que não. Mas, uma vez que os antigos tinham razão, é possível especular o que é preciso para que ela morra.

O que é preciso para que a democracia morra? Shakespeare já deu uma possível resposta (ainda não sei que resposta ele não adiantou): “A primeira coisa a fazer”, diz Dick the Butcher (açougueiro), em Henry VI, “é matar todos os advogados” (Kill all the lawyers)!

Pois é isso que me vem à mente quando, no auge dos tempos em que se fala sobre a possível morte da democracia, leio que um juiz federal de Brasília autorizou a quebra do sigilo bancário do escritório do advogado Antonio Claudio Mariz de Oliveira.

Eis o ovo da serpente sendo descascado (a figura do ovo da serpente, aliás, já estava também em Shakespeare, no solilóquio de Brutus em Júlio César. De novo: há algo que o Bardo não tenha adiantado?).

É isso mesmo? Quebra de sigilo de advogado? Do escritório de advocacia? É até difícil organizar o pensamento e articular a crítica. Ora, quebrar qualquer sigilo já é algo que, em uma democracia, exige um mínimo de critério e fundamentação. O que dizer da quebra de sigilo de um advogado? O que dizer da quebra de sigilo de um advogado que de nada é investigado?Logo, logo, vão quebrar sigilo dos psicanalistas e dos padres. Ninguém está a salvo. Nem ministros do STF, como já vimos.

Vejam, eu sei bem que “democracia” é um conceito interpretativo. Sou um hermeneuta. Seja como for, qualquer acordo pré-interpretativo exige (e permite) que, por mais diferentes que sejam nossas concepções, estejamos falando sobre a mesma coisa. De modo que me parece impossível que, qualquer que seja a concepção adotada, alguém negue que a democracia é também uma questão de respeito ao império da lei; parece-me igualmente impossível que alguém não concorde que a democracia exige um mínimo grau de accountability das autoridades.

Se a democracia em questão for uma democracia constitucional, então, não apenas isso torna-se ainda mais forte como possibilita ainda outros elementos: ou se respeita a Constituição… ou não se está mais a falar em uma democracia constitucional. Questão lógica. Não-contradição. (Já falei hoje que os antigos já sabiam tudo?)

Tudo isso para dizer que a quebra de sigilo de Mariz é, simplesmente, antidemocrática. Mais do que inconstitucional, é antidemocrática. Passou a linha. Ultrapassou o limite! Ponto.

Você pode, se quiser, defender a decisão do juiz e o pedido do MPF; mas, ao fazê-lo, você assume também o ônus de defender uma decisão que desrespeita condições mínimas de existência da democracia, qualquer que seja a concepção de democracia adotada. Esse é o ponto.

Em meio a isso tudo, há um elemento que me preocupa ainda mais: a possibilidade de que a democracia seja morta com as armas que ela própria oferece com a melhor das intenções.

Explico: uma das, talvez a maior conquista da democracia é o império da lei. O Direito. Rule of law, e não rule of men.

Pois bem. A quebra de sigilo, gravíssima por si só, não foi levada a cabo pela decisão pessoal de um tirano, um ditador que ascendeu ao poder por meio da força e, com as próprias mãos, rasgou a Constituição. Não. Ela foi determinada pela decisão de um juiz. E requerida por um advogado…da sociedade. Sim, o fiscal…da Lei Maior. Eis aí a gravidade-mor.

É o Direito sendo usado para acabar com o Direito. Autofagia. É o que sempre falo: o Direito tem seus predadores. Os mais facilmente detectáveis, é verdade, são externos: a moral, a política, a economia. Mas o que dizer dos predadores internos? E quando o Direito é usado como instrumento contra o próprio Direito?

Harakiri institucional. Porque, afinal, nada é por acaso; as coisas estão todas interligadas. A raposa sabe muitas coisas, o ouriço sabe uma grande coisa. Sou um ouriço, e sei ver que há uma unidade em tudo que temos visto.

Isto porque nada vem do acaso. A receita? É simples: Uma doutrina complacente, caudatária dos tribunais, que aceita um (neo)realismo jurídico à brasileira, sem propósito e sem epistemologia própria, mais um ensino jurídico que não sabe pra onde vai, perdido na própria tecnicização, preocupado em ser engraçado, divertido, simplificado, que tem sido refém ora dos concursos, ora de uma teoria política (ruim) do poder, ora de uma péssima metafísica.

Some-se a isso análises econômicas que mais parecem um direito tributário para ricos. E acrescente outro elemento nesse caldo: um país que se especializa em imitar (mal) o que já vem atrasado de fora: no Direito, importando institutos jurídicos ultrapassados pela metade; na política, um macarthismo que já não existe mais. Uma filosofia moral que se rendeu ao emotivismo (alô, alô, MacIntyre!), abrindo mão de critérios, abrindo mão de uma ideia positiva de verdade (e, com isso, abrindo a porta para todo tipo de subjetivismo ad hoc).

E agora, na última semana, um advogado tendo seu sigilo bancário quebrado. Cuidado: Há muitas maneiras por meio das quais a democracia pode morrer. Como democrata, espero que não seja ela sua própria nêmesis.

Porque, afinal, a democracia só morre mesmo, de verdade, se não mais houver democratas. É por isso que afirmo: todo aquele que valoriza nossas conquistas democráticas tem um dever, uma responsabilidade política e até moral de colocar-se contra esse absurdo. Contra esse absurdo e contra todos aqueles absurdos que, unidos, têm no episódio da quebra do sigilo de banca de advogado apenas mais uma das várias materializações daquilo que (não) temos feito em nossa (ausência de uma) Teoria do Direito.

OAB, juristas, estudantes, cidadãos democratas: o silêncio eloquente combina com funerais. Estamos sepultando a democracia? Cartas para Senso Incomum.

Lenio Luiz Streck é jurista, professor de Direito Constitucional e pós-doutor em Direito. Sócio do escritório Streck e Trindade Advogados Associados: www.streckadvo