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O ATIVISMO JUDICIAL EM RUI BARBOSA – Por Margarida Maria Lacombe Camargo

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Na advocacia, Rui destacou-se pela coragem e competência na formulação de novas teses que, não raramente, contribuíram para o que podemos chamar de “ativismo judicial”. Por “ativismo judicial” entendemos o papel criativo dos tribunais ao trazerem uma contribuição nova para o direito, decidindo sobre a singularidade do caso concreto, formando o precedente jurisprudencial, antecipando-se, muitas vezes, à formulação da própria lei…

 

Margarida Maria Lacombe Camargo

Professora da Faculdade de Direito da Universidade Católica de Petrópolis;

 Chefe do Setor de Direito do Centro de Pesquisas da Casa de Rui Barbosa.

 

  1. Introdução

Atualmente, quando verificamos uma retomada da discussão sobre direitos fundamentais, com ênfase nas liberdades individuais, em que o indivíduo-cidadão torna-se o centro dos acontecimentos políticos, cabe lembrar a figura de Rui Barbosa. Homem público e de muitas letras, Rui formava opinião entre os intelectuais e a elite política de sua época, a ponto de ter redigido o projeto da primeira Constituição republicana brasileira, submetida à Assembléia Nacional Constituinte reunida em 15 de novembro de 1890, incorporando uma série de novidades institucionais como o presidencialismo, a federação e uma Corte Suprema com jurisdição constitucional. Mas gostaríamos de destacar Rui como advogado, atuando junto à Suprema Corte na defesa das vítimas do arbítrio do Poder Executivo. Nesse mister, Rui lançou todos os seus esforços sobre o instrumento do Habeas Corpus, “a garantia das garantias” da liberdade do cidadão.

 

  1. Rui e a liberdade

O liberalismo de Rui Barbosa destacava a liberdade individual como conseqüência do respeito pela pessoa, antes mesmo de qualquer consideração de caráter público. Pessoa, que necessita da liberdade para o desenvolvimento de toda a sua potencialidade.  A tal respeito, vale extrair uma passagem da obra de Rui Barbosa, sugestivamente em tom poético:

“A chave do futuro é, pois, a liberdade, princípio maravilhoso que senhoreia as tendências do nosso espírito, que esclarece os instintos do nosso coração, fecunda o nosso trabalho, depura as nossas paixões, ilustra as nossas crenças, alimenta os nossos esforços, que confraterniza todos os homens pelo amor, pela dedicação, pelo sacrifício, que engrandece as nações, pela atividade, pela paz, pela justiça e pela instrução.” 

Tom poético este que lhe valeu a homenagem de Oswald de Andrade, por ocasião do seu centenário natalício:

“Rui evidentemente faz falta. Pela constância na defesa de nossos superiores ideais políticos. Quando ainda não existiam condições subjetivas para que se levantasse a questão social, ele foi um índice da nossa consciência da liberdade. Se a história do Brasil é uma história de opressões, temos forçosamente de exaltar as figuras que, como a de Rui, assumiram a responsabilidade da luta contra o reacionarismo conservador que ainda tenta fazer do brasileiro um escravo dos governos de força e um súdito inerme de interesses imperialistas.” 

A questão da liberdade é revigorada atualmente pela Ciência Política mais preocupada com o pluralismo. Individualidade, no entanto, não se confunde com individualismo, ou “individualismo possessivo.”  Individualidade sugere, antes, o respeito pelo que é único e insubstituível como valor máximo, que é a pessoa. Daí o desenvolvimento atual de uma série de estudos a respeito do tema da “dignidade da pessoa humana” que, segundo Carlos Roberto de Siqueira Castro, constitui-se em “locução supralegal e aglutinadora de toda sorte de valores e demandas das sociedades pós-modernas deste fim de século, assumindo o papel de eixo central do Estado Democrático de Direito”  Nesse sentido, percebemos que a chamada “democracia do povo”, de inspiração russoniana, cede lugar à “democracia do cidadão”, considerada na sua individualidade ou diferença. Segundo o filósofo constitucionalista alemão, Peter Häberle:

“A democracia do cidadão está muito mais próxima da idéia que concebe a democracia a partir dos direitos fundamentais e não a partir da concepção segundo a qual o Povo soberano limita-se apenas a assumir o lugar do monarca. […] Liberdade -fundamental (pluralismo) e não “o Povo” converte-se em ponto de referência para a Constituição democrática.” 

Liberdade e justiça eram os valores básicos do ideário de Rui Barbosa.  Independentemente das instituições ou formas de governo que lhe dessem guarida,  é na liberdade, por exemplo, que a pátria se assenta. E escreve:

“Mas acima da pátria ainda há alguma coisa: a liberdade; porque a liberdade é a condição da vida da pátria, é a consciência, é o homem, é o princípio divino do nosso existir, é o único bem , cujo sacrifício a Pátria não nos pode reclamar, senão deliberada ao suicídio, com que o amor da Pátria não nos permitiria condescender.” 

A partir da noção de liberdade ou de individualidade é que hoje se procura conceber as democracias pluralistas, seja sob a ótica liberal seja sob a ótica comunitária, em lugar de se trabalhar com conceitos de maioria e minoria, como blocos dicotômicos e de fácil identificação. 

Em função destas breves considerações, vale ressaltar a valiosa contribuição de Rui Barbosa para o direito brasileiro, recuperando-se um pouco da história do habeas corpus, que serviu de instrumento para a proteção da liberdade do indivíduo contra o arbítrio do poder estatal, durante praticamente toda a Primeira República.

Rui, com toda a habilidade retórica que lhe era peculiar, e sob argumentos imbatíveis, acaba por levar a Suprema Corte a encampar uma interpretação extensiva do instituto do habeas corpus, ensejando a criação da chamada “doutrina brasileira do habeas corpus”. Entendia que, através do habeas corpus, não se encontrava protegida apenas a liberdade física, mas toda a liberdade obstruída por excesso ou abuso de poder decorrente de coação ou violência. Daí, o ativismo judicial que se verifica a partir da jurisprudência firmada pela Suprema Corte, muito semelhante ao que atualmente ocorre com a utilização da cláusula do devido processo legal, prevista no inciso LIV, do art. 5°, da nossa Constituição Federal, que estabelece: “Ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”, ao contemplar-se sob seu texto toda sorte de liberdade, além da ampla defesa e do contraditório, que lhe serviram de corolário durante muito tempo.

Rui abrigava também todas as liberdades, que não apenas a de ir e vir, com o pálio do habeas corpus, sob pena de ver-se ruir o próprio Estado de Direito. Afinal, não faz qualquer sentido o Estado Liberal de Direito sem a proteção das liberdades fundamentais. Paradoxalmente, argüía a interpretação literal da lei, uma vez que a Constituição de 1891, ao instituir o habeas corpus, não fazia referência expressa  à liberdade física do cidadão.  Senão vejamos o que estabelecia o § 22 do seu artigo 72:

“Dar-se-á o habeas corpus sempre que o indivíduo sofrer ou se achar em iminente perigo de sofrer violência, ou coação, por ilegalidade, ou abuso de poder.”

Ao escrever sobre a feição jurídica e a evolução do habeas-corpus no direito brasileiro, em 1915, de modo a conferir-lhe maior alcance do que outros pretendiam, Rui afirmava:

“A questão resolve-se pela evidência literal dos textos. A questão está resolvida pelo confronto da letra das instituições republicanas com a letra das instituições imperiais. […] Não se fala em prisão, não se fala em constrangimentos corporais. Fala-se amplamente, indeterminadamente, absolutamente, em coação e violência; de modo que, onde quer que surja, onde quer que se manifeste a violência ou a coação, por um desses meios, aí está estabelecido o caso constitucional do habeas-corpus.” 

Com base na interpretação do texto constitucional, a concepção de liberdade, para efeito de habeas-corpus, não se circunscrevia à liberdade de locomoção, mas a qualquer forma de manifestação da liberdade. Liberdade em sentido amplo, sempre, e nunca em sentido estrito, pois não há que se pensar em liberdade sem levar em consideração todas as suas possibilidades de manifestação, como é o caso da liberdade de crença, da liberdade de reunião, da livre manifestação do pensamento, etc. Enfim, tudo aquilo que contribua para a expansão da personalidade.

Para Rui Barbosa as “garantias individuais”, enquanto sustentáculos do Estado de Direito, ultrapassam os limites do texto constitucional, guardando similitude, inclusive, com o previsto no art. 5°, § 2° da Constituição de 1988, que procura deixar aberta a porta para toda sorte de direito necessário à defesa da liberdade e da legalidade. Confrontemos sua versão:

“Garantias constitucionais se chamam, primeiramente, as defesas postas pela  Constituição aos direitos especiais do indivíduo. Consistiam elas no sistema de proteção organizado pelos autores da nossa lei fundamental em segurança da pessoa humana, da vida humana, da liberdade humana. Nele se contempla a igualdade legal, a consciência, a palavra, o ensino, a associação, o domicílio, a propriedade. Tudo o que a essa região toca, se inscreve sob o domínio das garantias constitucionais, no sentido mais ordinário desta locução.”  (Grifos nossos)

Dessa forma, e como resultado de uma verdadeira interpretação extensiva dada ao instrumento do habeas corpus, Rui, em certa ocasião, é chamado a defender a liberdade de manifestação de pensamento através da imprensa:

“Para assegurar a liberdade pessoal, não basta proteger a de locomoção. O indivíduo não é livre porque pode mudar de situação na superfície da terra, como o animal e como os corpos inanimados. Há liberdades que interessam à personalidade ainda mais diretamente, e que são a égide dela. Tal, acima de todas, a liberdade de exprimir e comunicar o pensamento, sob as formas imprescindíveis à vida intelectual, moral e social do homem. Dar-lhe a faculdade mais extensa de deslocar-se, retirando-lhe a de por em comunhão as suas idéias com as de seus semelhantes, é infringir-lhe a violência mais degradante, a coação mais dolorosa, a ilegalidade mais provocadora, o mais insolente dos abusos de poder. Como denegar o habeas-corpus aos que padecem assim na liberdade suprema?” 

Verificamos, assim, que Rui Barbosa defende a liberdade do homem em sociedade, ou seja, em função da sua efetiva realização. É, por exemplo, o que assevera ao sustentar a causa abolicionista:

“A presunção de liberdade, com efeito, não é apenas um direito natural na acepção mais ou menos arbitrária ligada a esse vocábulo pela escola metafísica que procura o ideal do direito numa concepção abstrata da natureza humana, mas no sentido histórico, real, estritamente científico da palavra. Ela é expressão de uma necessidade orgânica das relações do homem com o homem entre as sociedades iniciadas na civilização.” 

No mesmo sentido, quando, em 1892, voluntariamente requer do Supremo Tribunal Federal a expedição de um mandado de habeas corpus em favor dos perseguidos políticos do governo Floriano Peixoto, sem qualquer solicitação específica para que o fizesse, Rui Barbosa declara apoiar-se numa concepção de liberdade transcendente à própria esfera individual. Ainda que desprendido de uma idéia puramente metafísica, Rui entende a liberdade como valor único e absoluto, na medida em que a liberdade do outro é a nossa mesma e, assim, anota:

“Para valer, porém, à liberdade seqüestrada, não há instrumento de poderes que exibir: o mandato é universal; […]. A liberdade não entra no patrimônio particular, como as coisas que estão no comércio, que se dão, trocam, prendem ou compram: é um verdadeiro condomínio social; todos o desfrutam, sem que ninguém o possa alienar; e, se o indivíduo, degenerado, a repudia, a comunhão, vigilante, a reivindica. Solicitando, pois, este habeas corpus, eu propugno, na liberdade dos ofendidos, a minha própria liberdade; não patrocino um interesse privado, a sorte de um cliente: advogo a minha própria causa, a causa da sociedade, lesada no seu tesouro coletivo, a causa impessoal do direito supremo, representada na impessoalidade deste remédio judicial.” 

Obviamente que o Brasil do início do século não é o mesmo de agora. Sabemos todos que o início da República foi marcado por muitos atos autoritários do Poder Executivo que, para isso, se utilizava, indiscriminadamente, dos mecanismos do Estado de Sítio e da Intervenção Federal. Num período de instabilidade política, com a Federação recém instaurada, em que as oligarquias locais ainda procuravam se adaptar ao novo modelo institucional, era notadamente nas eleições populares que as principais manobras políticas se davam. A votação “a bico de pena”, o “voto a descoberto”, a dependência econômica dos colonos aos senhores latifundiários, também chamados de “coronéis”, levavam à ocorrência de sucessivas fraudes eleitorais, e contra todo esse tipo de manobra e arbitrariedade, Rui lutava.  Mas lutava sob a guarda da lei, pois acreditava nas virtudes do Estado de Direito, em que a proteção da liberdade estava na lei, garantida pelos tribunais. Neste sentido, ao rebelar-se contra o autoritarismo militar de Floriano Peixoto, chega a afirmar que “a diferença entre o homem livre e o escravo está simplesmente na diferença entre a sujeição à lei e a sujeição ao arbítrio, e a submissão da sociedade civil à prepotência militar não distingue senão acidentalmente da submissão do negro à vontade do branco”. 

Os constantes entraves decorrentes dos desmandos do governo militar, que não poupava esforços para suspender a ordem legal mediante decretação do Estado de Sítio, leva o Supremo Tribunal Federal a abster-se de julgar determinadas questões reconhecidas pela sua natureza política. Entendia-se por “questão política”, aquela referente aos atos discricionários do Poder Público quando, no âmbito de sua atuação, tomava decisões cuja a oportunidade e a conveniência demandassem, de acordo com determinada orientação de governo. Foi o que ocorreu, por exemplo, com o Estado de Sítio que, como medida de exceção quando a ordem interna estivesse ameaçada, estaria necessariamente circunscrita ao juízo discricionário do Governo, responsável último pela segurança pública. Entretanto, Rui não aceitava essa distinção com tanta facilidade, uma vez que da ação discricionária do Poder Público pode resultar atos ilegais ameaçadores da liberdade, tendo em vista que discricionariedade não se confunde com arbitrariedade. Assim, segundo ele, onde quer que se encontrem ameaçados os direitos fundamentais protegidos em lei, caberá a intervenção dos tribunais.  No entanto, não era essa a orientação do Supremo Tribunal Federal. Apenas em 1893, Rui Barbosa conseguira obter ordem de habeas corpus em benefício dos presos do navio Júpiter, pelo simples motivo de que tal medida havia sido tomada sem o respaldo do Decreto de Estado de Sítio, e sem a decretação do mesmo, a ação não poderia ser considerada política, mas arbitrária. 

Atualmente, seguindo então uma franca tendência de revalorização do Estado de Direito sob o prisma dos direitos fundamentais, ganha relevo a cláusula do devido processo legal. Berço do “princípio da razoabilidade”, é na cláusula do devido processo legal que a supremacia da Constituição tem procurado se ancorar. Da mesma forma, o juízo da proporcionalidade, que rege toda hermenêutica constitucional contemporânea, preocupada com a colisão de princípios de direito fundamental provocada pelo conflito entre as partes, encontra assento na cláusula do devido processo legal, considerada agora a “garantia das garantias” do Estado de Direito.

  1. O ativismo judicial de Rui Barbosa

Na advocacia, Rui destacou-se pela coragem e competência na formulação de novas teses que, não raramente, contribuíram para o que podemos chamar de “ativismo judicial”. Por “ativismo judicial” entendemos o papel criativo dos tribunais ao trazerem uma contribuição nova para o direito, decidindo sobre a singularidade do caso concreto, formando o precedente jurisprudencial, antecipando-se, muitas vezes, à formulação da própria lei. Diante de necessidades novas em que a lei não se mostra suficiente ou diante de necessidades que forjam uma determinada interpretação do texto de lei, é o  momento em que o esforço do intérprete faz-se sentir. Temos como ativismo judicial, portanto, a energia emanada dos tribunais no processo da criação do direito.

A importância da práxis jurídica, francamente desenvolvida pelos romanos, na realidade tem suas origens em Aristóteles, pois é nos fundamentos da ação moral, aquela tida como correta, que encontramos a base do direito. Logo, é nas razões que sustentam a decisão judiciária que está a sua legitimidade. Razões que, obviamente, são dirigidas a outrem, e mais, que dependem da aceitação de outrem. É, portanto, no campo da dialética e do direito concreto que a hermenêutica jurídica se instaura. 

Neste sentido, não podemos nos descurar do papel exercido pelo advogado, cuja função é reconhecida constitucionalmente como indispensável à realização da Justiça.  De fato, o advogado é aquele que representa a parte em juízo, defendendo-lhe os interesses. E, como todos têm direito a defender-se em juízo, pois só a lei pode punir, o advogado buscará a interpretação legal que melhor atenda às razões de seu cliente.  Logo, ao contrário da interpretação dada pelo juiz, que se pretende neutra, a defesa do advogado é, por natureza, apaixonada.  Com isso pretendemos chamar a atenção para a força intrínseca à tese do advogado, que procurará utilizar-se de todos os argumentos possíveis para convencer o juiz da correção do significado e do alcance que conferem ao texto legal. Ele irá defender, na realidade, uma determinada interpretação, pois a parte contrária apresentará uma tese diferente para a mesma situação fática. Não há como ignorar, portanto, o seu preponderante poder de persuasão que contribui efetivamente para a criação jurisprudencial.  Nesse sentido, ninguém melhor do que Rui Barbosa para caracterizar a figura do advogado, o que lhe fez render o título de “patrono dos advogados”. De fato, ao relermos sua obra, deparamo-nos a todo momento com teses apaixonadas, em que muitas vezes a  insistência faz-se presente. 

O vigor com que Rui Barbosa aborda o problema jurídico, que requer solução, leva-o a explorar todo o tipo de opinião presente na sociedade e toda a figura de retórica, cujo apelo só faz fortalecer sua posição. Como exemplo, podemos citar o caso ocorrido em 1874, quando, aos vinte e cinco anos de idade, defendeu, no Diário da Bahia, do qual era redator, a marca do rapé “Arêa Prêta”, contra a concorrência desleal dos fabricantes do rapé “Arêa Fina”. Na ocasião, Rui explora ao máximo o significado dos termos da lei penal, que considerava crime fabricar qualquer escritura, papel ou assinatura falsa, em que não tivesse convindo a pessoa a quem se atribuiu, bem como usar de escritura ou papel falso ou falsificado, como se fosse verdadeiro, sabendo que não o é.  Apela pela literalidade do termo “papel falso ou falsificado” para qualificar o uso criminoso de rótulo falsificado de produto industrial. 

A outra parte, a seu turno, argüía lacuna de lei, vez que nenhum dispositivo legal referia-se diretamente à hipótese, configurando-a como crime. Assim, utilizando-se da tópica aristotélica, em que opiniões amplamente aceitas numa comunidade podem apresentar-se como verossímeis e embasar uma cadeia de raciocínio, Rui apela para a moral e os costumes como base da hermenêutica jurídica.

“O que fizemos, em nossa antepenúltima publicação, foi, antes de entrarmos especialmente na questão da legalidade, provar que a falsificação cometida por Moreira & Cia. é criminosa, gravemente criminosa, ante a moral, que é a suprema condição de toda sociedade civilizada, e ante o direito natural, que é a fonte de toda legislação digna de subsistir. […] Porque a presunção racional é que a lei conforma com a opinião, com a moral e com o direito. 

Sabidamente, Rui Barbosa era mais pragmático do que teórico. Talvez pela própria natureza do exercício da advocacia, ou ainda pela forte influência e admiração que nutria pelo direito anglo-saxônico, Rui tenha construído uma produção intelectual mais sobre a prática do que sobre hipóteses abstratas. Fato é, que não encontramos em sua obra nenhum livro perfeito e acabado, com introdução, conteúdo dividido em capítulos, e conclusão, como fazem os doutrinadores. Em lugar de fechar-se em seu gabinete e elaborar um tratado, Rui preocupava-se antes com a solução do caso concreto. Mas, ao assim proceder, construiu teoria, apesar de seu esforço intelectual não ser fruto da análise evolutiva dos institutos jurídicos desde as origens, até alcançar-se a “última jurisprudência”, como normalmente são construídos os livros doutrinários, ainda que neles encontremos valiosas interpretações. Ao contrário, as teses de Rui podem ser extraídas de suas lutas forenses e de suas lutas políticas, que não raramente servem de subsídio para outros casos e outras ocasiões. Do caso do rapé “Arêa Prêta”, atrás apontado, percebemos, claramente que as idéias de Rui, ainda que pragmáticas, transcendiam à ocorrência do caso concreto e alcançavam outras esferas como, no caso, a legislativa, pois no ano seguinte é criada a primeira lei brasileira protetora das marcas de fábrica, Lei n° 2.682, de 1875, cuja matéria é hoje encampada pela propriedade industrial.

Incorporado à tradição, é natural que o direito mantenha considerável apego ao passado pois, afinal, as instituições sociais, dentre as quais destacam-se as jurídicas, não surgem espontaneamente do nada. Porém, inobstante esse rol de considerações, temos em Rui um dos grandes teóricos do direito, ainda que apresente uma teoria tirada do caso concreto.  Donde, a mesma criatividade decorrente do direito jurisprudencial anglo-saxônico, cujas bases e semelhanças podemos buscar na atividade dos pretores que deram origem ao Direito Romano Clássico,  Rui acreditava pertencer ao Judiciário brasileiro, cuja expressão maior estaria na Suprema Corte. Segundo ele, “a força dos grandes arestos valem mais para a liberdade dos povos do que as constituições escritas”.  E, daí, a razão do título deste artigo “o ativismo judicial de Rui Barbosa”, ao ressaltar a participação do advogado para a criação do direito levada a cabo pela jurisprudência dos tribunais.

Na realidade, Rui foi um lutador. Tanto no Judiciário quanto na Imprensa e na Tribuna, com o pensamento jurídico sempre absorvido pelo ideário político, a fala de Rui sustenta-se numa situação de fato, vivida. Além do combate ao autoritarismo dos governos da Primeira República, através do uso constante do instrumento do habeas corpus, conforme expusemos acima, era também pelo abolicionismo, pela melhoria da instrução pública, pelo voto direto, pela legalidade e pelo respeito à liberdade, que Rui escrevia. Na sua primeira campanha para a presidência da República, que se identificava com a campanha civilista de 1909 e 1910, por exemplo, Rui Barbosa defendeu a ordem democrática e o Estado de Direito. 41 Seus discursos transformavam-se em verdadeiras lições de ciência política, conforme podemos extrair das conferências proferidas ao Partido Republicano Conservador, no Polietama Baiano, em 1897:

“A República é a democracia e a liberdade na lei.” 

“A defesa da República está nas suas leis, que é indispensavelmente preciso observar, ainda quando forem o abrigo dos inimigos. Quando as leis cessam de proteger os nossos adversários, virtualmente cessam de proteger-nos. Porque a característica da lei está no amparar a fraqueza contra a força, a minoria contra a  maioria, o direito contra o interesse, o princípio contra a ocasião. […] A República é a lei em ação. Fora da lei, pois, a República está morta.” 

  1. O juízo da proporcionalidade no constitucionalismo brasileiro: assentos conclusivos

Nos dias atuais, com todo o esforço da doutrina, mormente a constitucional, em garantir efetividade aos princípios jurídicos que informam a nossa ordem jurídica, direta ou indiretamente – explícita ou implicitamente, e como forma, inclusive, de garantir a sobrevivência da ordem jurídica diante das constantes transformações sociais, podemos verificar um retorno ao ativismo judicial das cortes constitucionais. Valoriza-se cada vez mais o papel dos tribunais constitucionais, notadamente no que diz respeito aos conflitos entre direitos fundamentais, mediante o “juízo da proporcionalidade”. Toda a teoria constitucional alemã, por exemplo, tem sido construída sobre os fundamentos das decisões do Tribunal Constitucional, para não deixar de mencionar o direito constitucional, eminentemente jurisprudencial, dos Estados Unidos. Os livros nacionais também têm apontado para este fenômeno como forma, também, de inspirar o Supremo Tribunal. 

A concepção de ordem jurídica como um sistema de regras, relegados os princípios a uma mera posição integradora de lacunas, conforme prega a doutrina tradicional ao interpretar restritivamente o art. 4° da Lei de Introdução ao Código Civil, cede lugar agora para uma nova perspectiva de norma jurídica, que põe os princípios em posição de destaque.  Na qualidade de normas de conteúdo mais abrangente e geral, e de consistência fundamentante, capazes de conceder força normativa aos valores básicos da nossa ordem jurídica, são os princípios os responsáveis últimos pela boa hermenêutica. 

Nesse sentido, destacam-se não apenas as normas-princípios que estruturam a ordem jurídica, como valores basilares,  mas também aqueles que podemos nomear de “meta-princípios”, pois que ultrapassam a positivação dos mesmos, orientando a sua aplicação: é o caso do princípio, talvez melhor denominado de juízo, da proporcionalidade ou razoabilidade, que procura estabelecer critérios de interpretação e aplicação da norma constitucional. 

Fato é que o modelo formal-positivista impermeável a valores, cujo grau de objetividade abraçou as ciências modernas, não se sustenta mais em sua plenitude diante de uma sociedade cada vez mais complexa e plural. Verificamos que uma nova orientação conduz o intérprete à solução judicial, que se pretende cada vez mais democrática, e agora mais sensível aos valores, sobretudo os da liberdade e da dignidade da pessoa. Uma nova razão desponta no cenário jurídico, que não o da lógica formal, próprio das ciências matemáticas, mas uma lógica do razoável capaz de ajustar as situações à realidade social referenciada a valores. A concepção de um código virtual, que guarde consigo uma verdade intrínseca, passível de ser desvelada pelo intérprete, cede espaço ao substrato axiológico do direito revestido de normatividade, sob o nome de princípios jurídicos, a ganharem concretude prática.

Assim é que o ativismo judicial de nossos tribunais, com o auxílio do advogado que ajuda a trazer para esse âmbito de decisão a sensibilidade popular, admitida a diferença, manifesta-se, criando um novo viés metodológico. Percebe-se, cada vez mais, o peso da retórica e da argumentação nas decisões judiciais, quando a força da opinião pública  aparece muitas vezes como superior à literalidade do texto legal. 50 Retoma-se, com isso, a instância dialógica instaurada pelo conflito, em que partes antagônicas apresentam versões distintas para uma mesma situação, considerada à luz de um mesmo ordenamento jurídico. Com isso, o discurso assume o grau de instância de controle da verdade jurídica, buscada no consenso – seja o consenso visado entre as partes, o consenso buscado na opinião pública ou mesmo a aceitação da decisão pelos próprios tribunais enquanto instâncias revisoras.

Da mesma forma, a obrigatoriedade da fundamentação das sentenças judiciais, sob pena de nulidade 51, denota claramente a proposta democratizante do Texto Constitucional de 1988, que obriga o magistrado a buscar, através das razões de julgar, legitimidade para suas decisões. Como poder da República, o Judiciário também atende à “coisa pública”, cujo patrimônio, moral ou material, cabe zelar.

No momento, portanto, em que o Estado de Direito se concentra sob os valores que dignificam a pessoa, tomadas as suas dimensões privada e social, desponta a clásula do devido processo legal como canal próprio à institucionalização do “princípio da proporcionalidade”. Na qualidade de “garantia das garantias” do cidadão, frente aos abusos do poder estatal na adoção de leis restritivas de direitos, é o “princípio da proporcionalidade” que nos propiciará a busca de critérios limitadores do poder do Estado. Da mesma forma, como guardião do Estado de Direito, com que o habeas corpus serviu ao passado, a cláusula do devido processo legal serve ao presente, enfrentando a colisão dos princípios e a aplicação prática dos valores. Sim, porque quando a interpretação tem como baliza princípios, e não regras, há colisão normativa. A regra ou se aplica ou não se aplica; serve ou não serve ao caso concreto, enquanto diversos princípios informam a mesma questão, concomitantemente, ainda que com intensidade distinta. 

Na realidade, o juízo da proporcionalidade tem se mostrado próprio a todo tipo de ação que demande um ajuste entre as partes: uma relação eqüitativa. Por outro lado, busca-se o razoável como medida para o embasamento da decisão que se pretende mostrar convincente, de forma a garantir alguma paz social. Assim, por exemplo, as ações da Administração Pública no exercício do seu poder de polícia, que não se pretende abusiva.  O juízo da proporcionalidade se aplica a toda e qualquer situação que implique na limitação da liberdade do sujeito, seja por ação do Poder Público, seja por ação do particular. O que importa é que o direito constitucional tem-se mostrado cada vez mais sensível e apto a enfrentar questões em que a liberdade esteja ameaçada e, nesse sentido, ganha relevo o devido processo legal, como garantia da aplicação devida da lei, por si só, restritiva de direitos. Lembremo-nos, mais uma vez, que a cláusula do devido processo legal, conforme configurada em suas origens, vincula-se à lei da terra, ou ao direito comum, como inegáveis fontes de legitimação para a garantia das liberdades fundamentais. Afinal, como já dizia Rui Barbosa, a liberdade, além de consistir num dos pilares do Estado de Direito, é a grande condição humana.

1 – Margarida Maria Lacombe Camargo (Publicada na Revista da Faculdade de Direito da UCP Vol. 1 – 1999, pág. 59)

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