“É nesses momentos de pulsões autoritárias e instintos punitivistas que a legalidade deve entrar em cena e se apresentar como a protagonista da democracia. O cumprimento fiel da lei, a obediência estrita da norma possibilita o pavimento de caminhos mais democráticos e afasta de maneira contundente o surgimento de bandidos de distintivo…”
Na série House of Cards há uma cena em que o policial pede para um congressista descer do carro para lhe apresentar os documentos. O homem fala que é um político e o agente imediatamente responde “não me interessa, desça do carro”. Após essa frase é possível perceber de imediato que as regras, quando aplicadas e cumpridas fortalecem as bases da igualdade social. Eis o que chamo de países de radicalismo democrático.
A teoria do contrato social significa dizer que a condição de membro do corpo social implica a aceitação das normas sociais, e a violação dessas normas a aceitação da punição.[1] Em outros termos, ser cidadão é uma condição que deve ser respeitada, caso este se comporte baseado nas regras do jogo, pois só dessa maneira será possível se falar em respeito aos seus direitos.
O cenário que se vive no Brasil e no mundo é pautado na criação de demônios populares e na exclusão do outro enquanto sujeito de direitos. O Direito Penal que deveria operar na lógica da proteção dos bens juridicamente mais relevantes da comunidade tem seu sentido invertido e trabalha no sentido de aniquilar os indesejáveis, os excluídos e os mais fracos.
Há uma corrente do direito penal chamada de funcionalismo, a qual defende que tal setor do ordenamento jurídico possui uma função. Para Claus Roxin, a missão do Direito Penal é assegurar bens jurídicos, assim considerados aqueles valores indispensáveis à convivência harmônica em sociedade, valendo-se de medidas de política criminal.[2]
Vive-se o tempo do desejo coletivo pelo uso da narrativa do crime e da imposição do castigo. É como se o pensamento fosse resumido na seguinte frase: os adversários não devem ser derrotados, mas sim eliminados. Nesta toada, inimigos são criados para se dar ares de legitimidade a atuação do direito penal, como por exemplo: o traficante, o favelado, o usuário, o desempregado, o detentor de mandato eletivo etc.[3]
É nesses momentos de pulsões autoritárias e instintos punitivistas que a legalidade deve entrar em cena e se apresentar como a protagonista da democracia. O cumprimento fiel da lei, a obediência estrita da norma possibilita o pavimento de caminhos mais democráticos e afasta de maneira contundente o surgimento de bandidos de distintivo.
O mundo contemporâneo, especialmente os países da América Latina tem experimentado transformações significativas no campo da política. É sim possível afirmar com todas as letras que a democracia deu certo e prosperou. Apesar da crise existente nas terras de Pelé e Maradona, o sistema político conseguiu alcançar voos históricos mais elevados.
Não se pode esquecer também que a aplicação do Direito Penal deve passar pelo filtro da proporcionalidade, ou seja, deve seguir juízos de equilíbrio para que tal instrumento possa ser empregado para o bem da sociedade e não para ser utilizado como máquina de vingança a serviço dos donos do poder ou das maiorias de ocasião.
É válido registrar que o diálogo necessário entre democracia e direito penal não passa pela compreensão de que um poder eleito democraticamente pode criar os crimes que quiser, modificar as penas como desejar e fazer o uso do direito penal em processos políticos como lhe parecer útil.[4]
Por último, cabe ressaltar que a interface entre direito penal e democracia atravessa uma relação conturbada, pois ao mesmo tempo em que se defende uma maior demanda punitiva, a oferta por mais direitos não se tem feito sentir na mesma proporção. Por isso, é preciso ter o foco que as bases do radicalismo democrático devem ser enrijecidas para que o direito penal tenha uma aplicação mais humanizada.
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Alexandre José Trovão Brito é advogado. Especialista em Direito Penal e Processo Penal pelo Complexo Educacional Damásio de Jesus. Membro da Comissão de Direitos Humanos da OAB Seccional Maranhão.
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[1] DOS SANTOS, Juarez Cirino. A criminologia radical. 4 ed. Florianópolis [SC]: Tirant Lo Blanch, 2018, p. 75.
[2] CUNHA, Rogério Sanches. Manual de Direito Penal – Parte Geral. 6. Ed. Salvador: JusPodivm, 2018, p. 11.
[3] BELLO, Ney. Democracia e direito penal: articulações necessárias. Disponível em <https://www.conjur.com.br/2019-mai-26/crime-castigo-democracia-direito-penal-articulacoes-necessarias>. Acesso em 26/05/2019.
[4] BELLO, Ney. Democracia e direito penal: articulações necessárias. Disponível em <https://www.conjur.com.br/2019-mai-26/crime-castigo-democracia-direito-penal-articulacoes-necessarias>. Acesso em 26/05/2019.