CECGP

CENTRO DE ESTUDOS CONSTITUCIONAIS E DE GESTÃO PÚBLICA

CECGP articula suas tarefas de pesquisa em torno de Programas de Pesquisa em que se integram pesquisadores, pós-doutores provenientes de diferentes países.

O ensino superior pós pandemia, por José Manuel Silva

UNIVERSIDADE

É bom revisitar a frase de Peter Drucker,

“A melhor maneira de prever o futuro é criá-lo.”

A pandemia desencadeou a maior mudança do sistema de ensino dos últimos dois séculos, foi algo providencial, sem ela teríamos continuado entregues às velhas rotinas, agora há que potenciar o processo…

José Manuel Silva, Presidente da Escola Superior Saúde Santa Maria (Porto), coordenador do projeto GivingCare – Empowering Personal Caregivers – Membro da direção da Associação Portuguesa do Ensino Superior Privado (APESP).

Soluções do passado não resolvem problemas do futuro, mas parece ser a aposta de alguns, convictos de que o modelo maioritário de organização e funcionamento do ensino superior em Portugal pode regressar aos tempos anteriores à pandemia como se fosse possível passar a esponja do esquecimento sobre a verdadeira revolução que ocorreu com a transformação, em meia dúzia de dias, de um modelo exclusivamente presencial para uma experiência de recurso totalmente a distância.

Aliás, é curioso verificar que existem bolsas de debate sobre o conceito de ensino a distância, ou à distância, procurando-se centrar a discussão sobre os conceitos e não sobre a realidade. Os conceitos são elementos facilitadores da organização do pensamento, não devem servir para o entorpecer, pelo que o importante é constatar que as escolas de todos os ciclos, não apenas as superiores, recorreram a uma diversificada panóplia de soluções tecnológicas que permitiram substituir o ensino presencial por modalidades de acompanhamento de aulas e outras atividades acessíveis aos estudantes onde quer que estivessem.

É facto que se nos ativermos ao conceito de banda estreita do ensino a distância tradicional, encontraremos muitas soluções heterodoxas, mas os tempos mudaram e a realidade sobrepôs-se aos debates conceptuais intermináveis tão ao gosto de alguns teóricos da educação.

Durante aproximadamente três meses, as instituições trabalharam o melhor que puderam e foram capazes na manutenção das atividades a distância, o que permitiu aprendizagens interessantíssimas, quer para professores, quer para estudantes, uns e outros quase sem experiências anteriores neste tipo de ensino-aprendizagem.

De um momento para o outro, as barreiras físicas das escolas desapareceram e professores e estudantes, cada um nas suas casas, trabalharam colaborativamente para assegurar a continuidade das aulas e outras atividades, com a desvantagem de não estarem juntos, mas com o benefício de experimentarem ferramentas onde todos já viviam imersos, mas que não faziam parte das soluções pedagógicas.

Do ponto de vista formal todos os cursos passaram a funcionar fora do quadro legal em que tinham sido acreditados pela A3ES e não deixa de ser curioso que a esmagadora maioria das instituições o fez de motu próprio, precedendo a declaração do estado de calamidade que veio dar cobertura institucional ao que as instituições já estavam a fazer, obrigadas pelas contingências decorrentes do alarme social originado pela expansão da pandemia.

Cada uma, como pôde, foi dando continuidade aos cursos e tentando não prejudicar a conclusão dos mesmos pelos estudantes finalistas, com assinaláveis dificuldades para a área da Saúde que viu os estágios todos cancelados, tendo-se encontrado uma solução de recurso para a enfermagem, mas que não abarcou outras especialidades, o que deixou claro que o processo de discussão tendente a encontrar uma solução para ultrapassar aquele constrangimento foi mal conduzido e, inclusive, sem diálogo com as instituições do Ensino Superior Privado.

A este propósito convém sublinhar que os estudantes finalistas dos cursos de saúde se estão a preparar para entrar no sistema e vão trabalhar em meios onde se combate a COVID-19, pelo que teria sido uma excelente oportunidade de treino a não interrupção dos estágios, com a agravante de que não podiam estagiar, mas depois os pretendiam como voluntários nas equipas anti-Covid, neste caso sem nenhuma supervisão das escolas.

Passado o período crítico e iniciado o processo de planeamento do próximo ano letivo, o discurso oficial tem-se centrado na necessidade de cumprir a matriz presencial de acreditação dos cursos e a obrigação de todas as atividades decorrerem a partir das instalações escolares. A par tem-se dito que é necessário defender a qualidade do ensino promovido no superior pelo que soluções heterodoxas experimentadas nestes meses, devem ser abandonadas.

Olhar para o futuro próximo do ensino superior implica pensar na eficácia do modelo tradicional, profundamente abalado pelas soluções experimentais a distância destes meses, no que de novo e positivo se pode contabilizar, e como a partir deste caldo de cultura pedagógica em que se misturam os contributos do lastro de um passado centenário e de um presente prenhe de novas soluções, se pode construir um caminho tentativo alinhado com o futuro e sem a tentação de regressar à aurea mediocritas em que há sempre quem aposte, quais velhos do Restelo agarrados ao passado e medrosos do futuro.

Nem tudo foi positivo, nem podia ser, basta pensar que a esmagadora maioria de professores e estudantes não tinham qualquer experiência no uso daquelas tecnologias nem na forma de as explorar pedagogicamente e o afastamento físico e a reclusão domiciliária tiveram impactos ainda difíceis de avaliar. Também é sabido que os estudantes mais débeis socialmente e menos apetrechados tecnologicamente experimentaram muito mais dificuldades do que os outros, mas esta é uma realidade persistente com presencial ou a distância, pelo que só o aprofundamento de medidas sociais poderá atenuar.

Mas o balanço é francamente positivo, as instituições reinventaram-se, as tecnologias surgiram de um dia para o outro, a FCCN deu provas de um enorme dinamismo e capacidade para reagir e responder à altura disponibilizando a infraestrutura, os professores deram mostras de enorme capacidade e resiliência e os estudantes aguentaram estoicamente o desafio.

De súbito, as barreiras físicas dissiparam-se e o mundo ficou à distância de um clique para todos, e comprovou-se que as instituições estavam maduras para mudar de paradigma, apenas ainda não tinham descoberto que eram capazes de o fazer. As ideias feitas sobre a organização do superior, o conservadorismo pedagógico, a aversão à experimentação e mudança foram estilhaçados pela realidade como se um tsunami tivesse varrido a poeira secular do ensino superior para dar lugar a uma Nova Escola.

Nada disto são experiências novas ou soluções desconhecidas, apenas permaneciam como nichos quase ignorados ou mal visto pelos próceres do sistema. Desde meados do século passado que o pensamento pedagógico tem promovido reflexões e apresentado propostas que agora encontraram campo fértil para germinar com a existência de tecnologias maduras e acessíveis aos fins de uma educação assente no desenvolvimento da autonomia dos estudantes, no estímulo do pensamento crítico, da criatividade e da inovação, sem barreiras físicas, usando o conhecimento acessível através de vários canais, reclamando dos professores novos papéis, sobretudo como orientadores do pensamento, da busca de informação, da crítica das fontes e da sua hermenêutica, gerando um  ambiente estimulante de ensino e aprendizagem que pode ser identificado como um verdadeiro companheirismo pedagógico.

Programar o próximo ano letivo pressupõe garantir regras de distanciamento social incompatíveis com a manutenção da organização tradicional das atividades nos anos letivos anteriores. Sejamos realistas, ou se aumentam as instalações e se contratam mais docentes, o que não vai acontecer por incapacidade financeira para tal, ou vamos ter de continuar a recorrer ao ensino a distância. É útil e necessário que ninguém ignore isto, o que não é um mal, pelo contrário, é o corolário do processo de mudança pressionado pela pandemia, mas que já devia ter sido adotado há muitos anos, face ao atraso do sistema de ensino relativamente à evolução da sociedade. E não vale apena querer travar o riacho, ele vai engrossar e levará pela frente os que se lhe quiserem opor.

Veja-se o que se passa com as reuniões que pareciam ser o Santo Graal presencial intocável. Hoje, mesmo podendo reunir-se presencialmente, começa-se a fazê-lo como exceção, sendo a regra o videopresencial. Até em provas da mais diversa natureza. Não se trata de banir o presencial, apenas de utilizar o meio mais prático, eficiente e barato, recorrendo apenas à presença quando se trata de situações especiais.

O mesmo se pode e deve fazer com as atividades letivas, o modelo tradicional permite o contacto direto, a socialização, o toque humano, olhar nos olhos, e isto é insubstituível, mas não se deve impedir que se utilizem as soluções videopresenciais ou outras sempre que necessário ou desejável, devendo a decisão ficar a cargo dos órgãos próprios das instituições.

Os tempos são de mudança profunda pelo que temos de ter a sageza suficiente para perceber que o modelo de escola está em mudança acelerada, o passado não vai regressar e o futuro não espera por nós. E na área da investigação é igualmente óbvia a mais valia da utilização privilegiada da comunicação a distância, naturalmente nada substitui os laboratórios e o trabalho presencial, mas a facilidade de contacto entre redes de investigadores a viverem e trabalharem nas mais diversas latitudes, como já hoje existe, é a prova mais evidente de que há que pensar com arrojo e sem medo de inovar, deixando os céticos a olhar para o passado. Até a medicina já não dispensa consultas a distância e a análise de exames por especialistas, que assim complementam o trabalho dos clínicos gerais; mesmo cirurgias já se fazem a distância com controlo remoto de robôs.

Se há setor em Portugal que tem todas as condições para se transformar num exemplo é a educação, em geral, e o sistema de ensino superior, em particular, pelo que seria indispensável colocar no topo das prioridades nacionais uma estratégia de transformação do sistema de ensino, no seu todo, que nos projete para um futuro, que sendo incerto, vai ocorrer e que sorrirá mais aos mais preparados para o enfrentar. É bom revisitar a frase de Peter Drucker, “A melhor maneira de prever o futuro é criá-lo.”

A pandemia desencadeou a maior mudança do sistema de ensino do país dos últimos dois séculos, foi algo providencial, sem pandemia teríamos continuado entregues às velhas rotinas, agora há que potenciar o processo, expurgá-lo do menos positivo e apostar forte na dinâmica transformadora. É do nosso futuro que estamos a tratar, não de interesses instalados, nem de pressões para manter tudo como se o mundo tivesse parado.

Publicado no periódico O Observador, de Portugal, em 27 julho de 2020

 

Compartilhe!