CECGP

CENTRO DE ESTUDOS CONSTITUCIONAIS E DE GESTÃO PÚBLICA

CECGP articula suas tarefas de pesquisa em torno de Programas de Pesquisa em que se integram pesquisadores, pós-doutores provenientes de diferentes países.

O Instituto da Alienação Fiduciária nos Ordenamentos Jurídicos Brasileiro e Português

NÁDIA MARIA FRANÇA QUINZEIRO

Graduada em Direito pela Universidade Federal do Maranhão – UFMA em 2009; Advogada e Servidora Pública Federal do Instituto Nacional de Seguridade Social – INSS e Presidente do Instituto de Previdência de São José de Ribamar, Maranhão – IPSJR. Mestranda em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade Portucalense.

VIRGÍNIA MARIA ROSA PRASERES DE MIRANDA

Graduada em Direito pela Faculdade Santa Terezinha – CEST em 2012; Advogada; Especialista em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho pela Faculdade de Direito Professor Damásio de Jesus em 2015. Mestranda em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade Portucalense.

Resumo: A alienação fiduciária pode ser definida como a transferência de uma propriedade resolúvel e da posse indireta de um bem móvel ou imóvel como garantia de um débito, feita pelo devedor ao credor. No ordenamento jurídico brasileiro este instituto atingiu uma importância tão notória, que praticamente extinguiu a hipoteca, com a edição da Súmula 308 do Superior Tribunal de Justiça Brasileiro. Por sua vez, no direito português, a alienação fiduciária ainda tem uma literatura desconhecida, não possuindo a amplitude contida no Brasil. A Alienação Fiduciária apresenta-se como uma resposta rápida e eficaz ao Credor, de forma a proporcionar segurança jurídicas à relações. Portanto, a alienação fiduciária, confere poder de compra a praticamente todos os seguimentos sociais existentes no Brasil, e da mesma pode trazer grandes contribuições à realidade portuguesa, facilitando o adimplemento de créditos na relação credor/devedor. Palavras-chaves: Direitos Reais. Alienação Fiduciária. Direito Comparado. Brasil. Portugal

Abstract : Fiduciary alienation can be defined as the transfer of a resoluble property and the indirect possession of a movable or immovable property as guarantee of a debt made by the debtor to the creditor. In the Brazilian legal system this institute reached such a prominent importance that it practically extinguished the mortgage, with the issuance of Precedent 308 of the Brazilian Superior Court of Justice. On the other hand, in Portuguese law, the fiduciary alienation still has an unknown literature, not having the amplitude contained in Brazil. The Fiduciary Alienation presents itself as a quick and effective response to the Lender, in order to provide juridical security to the relationships. Therefore, the fiduciary alienation confers purchasing power to practically all social segments existing in Brazil, and it can bring great contributions to the Portuguese reality, facilitating the payment of credits in the creditor / debtor relation. Keywords: Real Rights. Fiduciary Alienation. Right Comparado.Brasil.Portugal

I. Introdução

O homem, por tratar-se de um ser essencialmente social, desde os primórdios da humanidade teve que buscar meios que possibilitassem o seu convívio em comunidade. Dentre estes, pode-se destacar os contratos, que podem ser definidos como um acordo de vontades criador de direitos e obrigações. Neste sentido, tem-se a definição de Ulpiano e Clóvis Bevilácqua. Para o primeiro, o contrato é “est pactio duorum pluriumve in idem placitum consensus”, que significa: “o mútuo consenso de duas ou mais pessoas sobre o mesmo objeto”. Para o segundo, o contrato pode ser definido como “o acordo de vontade de duas ou mais pessoas com a finalidade de adquirir, resguardar, modificar ou extinguir direito”. Neste trabalho, ater-se-á especificamente a um tipo de contrato baseado na fidúcia, qual seja, o contrato de alienação fiduciária, cuja origem remonta ao direito romano. A alienação fiduciária pode ser definida como a transferência de uma propriedade resolúvel e da posse indireta de um bem móvel ou imóvel como garantia de um débito, feita pelo devedor ao credor. Dessa forma consiste em um negócio jurídico que serve de título para a criação de um direito real de garantia, qual seja, a propriedade fiduciária.

Faz-se relevante o estudo deste instituto porque o sistema de garantias reais sobre coisas alheias de origem romana (hipoteca, penhor e anticrese) passaram a ser insuficientes para suportar as demandas atuais da sociedade. É exatamente nesse contexto de responder às exigências da atualidade que surge a alienação fiduciária em garantia no Brasil, objetivando ser uma resposta célere e eficaz à garantia de crédito do credor, trazendo uma maior segurança jurídica ao sistema financeiro. No ordenamento jurídico brasileiro este instituto atingiu uma importância tão notória, que praticamente extinguiu a hipoteca, com a edição da Súmula 308 do Superior Tribunal de Justiça Brasileiro. Por sua vez, no direito português, a alienação fiduciária ainda tem uma literatura desconhecida, não possuindo a amplitude contida no Brasil. Assim, como objeto tema deste artigo ter-se-á o estudo da alienação fiduciária nos ordenamentos jurídicos brasileiro e português. Nessa linha, para que a matéria escolhida seja devidamente compreendida faz-se, primeiramente, um breve estudo acerca da evolução histórica desta matéria. Posteriormente, busca-se entender o seu conceito e sua natureza jurídica, detalhando, ainda, os requisitos necessários para a sua realização como negócio jurídico.

Após o entendimento deste assunto, analisa-se brevemente a Súmula 308 do Superior Tribunal de Justiça Brasileiro e, por fim, discorre-se sobre sua incidência no direito luso, fazendo um breve comparativo com a sua aplicação no Brasil. Em relação ao material levantado para a elaboração o presente trabalho, optou-se pela escolha de várias fontes de consulta, destacando-se os exames da legislação pertinente, da doutrina de direito civil e de títulos de crédito, bem como das matérias jornalísticas e da jurisprudência.

II. Noções Preliminares e Evolução Histórica

Para a compreensão do instituto da propriedade fiduciária de bens imóveis em contratos, sua natureza jurídica e implicações, faz-se necessário um estudo preliminar quanto a sua evolução histórica. Entende-se por fidúcia o gesto confiante, nessa perspectiva, ao abordar a temática da propriedade fiduciária em contratos, infere-se necessariamente tratar-se de um negócio jurídico fundado em relação de confiança entre as partes. Institutos relativos a contratos são oriundos do Direito Civil. Desta forma, busca-se a primeira noção histórica com nascedouro no Direito Romano, quando se percebe a mudança no conceito da obrigação, a qual perpassa a pessoa do devedor, para ir a busca dos bens do devedor com o fito no saneamento de obrigações assumidas. Extrai-se do direito romano que a fidúcia possuía duas vertentes, a fidúcia cum amico e a fidúcia cum creditore. A fidúcia cum amico não se tratava de em uma garantia real propriamente dita, mas sim de um contrato de confiança, no qual o fiduciante alienava seus bens a um conhecido em uma relação de confiança, durante determinado período em decorrência de alguma circunstância externa, tal como o risco de falecimento em guerra, viagem, fato político etc.

Quanto à fidúcia com creditore, entendida então como uma garantia real e a mais antiga, trata-se do instituto por meio do qual a propriedade era dada em garantia, neste ponto já possuía caráter assecuratório, uma vez que o fiduciante vendia seus bens sob a garantia de reavê-los em caso de não pagamento. Assim, passava o fiduciante a ter garantia de propriedade. Nessa esteira, pelo Direito Romano a transferência do bem era realizada de forma incondicionada, no entanto, a posse poderia ser mitigada. O Instituto da fidúcia também esteve marcadamente presente do direito Germânico e no Inglês. No direito alemão, a fidúcia tratava-se de um penhor da propriedade (Treuhand), aqui o devedor (fiduciário) transferia a propriedade ao credor, tomando-a de volta assim a divida fosse liquidada. Percebe-se que enquanto no Direito Romano, o direito do fiduciário era mitigado, que somente transferia a posse quando do adimplemento da obrigação do devedor, no Direito Alemão, o bem dado em garantia, sob condição resolutiva, permanecia com o fiduciário até cumprida a obrigação do fiduciante, quando então retornava a propriedade para si.

No Direito Inglês o instituto da Fidúcia sofre um desdobramento em relação aos moldes dados pelo Direito Romano, ganha a denominação de Trust. O instituto na Inglaterra permitia que o devedor vendesse mercadorias não pagas, mas entregues em confiança, para quando da conclusão das vendas o credor viesse a ser pago. Como fundamento básico, o trust na Inglaterra permitia a dupla propriedade sobre um determinado bem, o que quanto ao Direito Comparado, de países com origem no Direito Romano, como no caso do Brasil, não se encaixa com facilidade em decorrência do princípio norteador de unicidade de domínio. Assim, percebe-se que quanto a alienação fiduciária, a evolução histórica perpassou o direito romano, alemão e o inglês, o instituto da fidúcia fora incorporado por diferentes legislações, em distintas formas de aplicação, todavia tendo como característica comum um contrato bilateral, celebrado de boa fé, fundado na confiança, no qual o credor recebe um bem como garantia por parte do devedor.

III. Conceito de Alienação Fiduciária e Natureza Jurídica

O instituto da alienação fiduciária consiste na transferência da propriedade resolúvel e da posse indireta de um bem infungível ou de um bem imóvel que o devedor com escopo de garantia faz ao credor. Trata-se de um direito real de garantia sobre coisa própria sendo disciplinado no Código Civil de 2002 Brasileiro (arts. 1.361 a 1.368-B), no Decreto-lei 911/1969 (que versa sobre a alienação fiduciária em garantia sobre bens móveis) e na Lei 9.514/1997 (que trata do instituto referente aos bens imóveis). Segundo o art. 22 da Lei 9.514/1997, a alienação fiduciária em garantia é “o negócio jurídico pelo qual o devedor, ou fiduciante, com o escopo de garantia, contrata a transferência ao credor, ou fiduciário, da propriedade resolúvel de coisa imóvel”. Em sentido semelhante, dispõe o Decreto-lei 911/1969 que alterou o art. 66 da Lei 4.728/1965, que conforme já exposto, foi a primeira lei no Brasil a versar sobre tal instituto e, em seu art. 1º aduziu que “a alienação fiduciária em garantia transfere ao credor o domínio resolúvel e a posse indireta da coisa móvel alienada, independentemente da tradição efetiva do bem, tornando-se o alienante ou devedor em possuidor direto e depositário com todas as responsabilidades e encargos que lhe incumbem de acordo com a lei civil e penal”. Ratificando esses conceitos, o art. 1.361 do Código Civil de 2002 estabeleceu que “considera-se fiduciária a propriedade resolúvel de coisa móvel infungível que o devedor, com escopo de garantia, transfere ao credor”.

Logo, é correto afirmar que o conteúdo da alienação em questão é a propriedade fiduciária, havendo uma propriedade resolúvel a favor do credor fiduciário, de um bem que o devedor fiduciante, transmitiu ao credor como garantia. O novel doutrinador Pontes de Miranda a respeito desse instituto afirmou que “sempre que a transmissão de um bem tem um fim que não é a transmissão mesma, de modo que ela serve a negócio jurídico que não é o da alienação a quem se transmite, diz-se que há fidúcia ou negócio jurídico”. Assim, resta evidente que a fidúcia segundo Pontes de Miranda encerra duas ordens, além do fator confiança, quais sejam: relação de direito real (transferência da propriedade ao fiduciário) e relação de direito obrigacional (dever de restituição da coisa). Maria Helena Diniz, no mesmo sentido, porém de forma mais simples e adotando um conceito legalista, entende este instituto como uma “transferência, feita pelo devedor ao credor, da propriedade resolúvel e da posse indireta de um bem como garantia do seu débito, resolvendo-se direito do adquirente com o adimplemento da obrigação”. Elucidando melhor o assunto, o ilustre doutrinador Flávio Tartuce, esclarece em sua obra que o “devedor fiduciante aliena o bem adquirido a um terceiro, o credor fiduciário, que paga o preço ao alienante originário da coisa. O credor fiduciário é o proprietário da coisa, tendo, ainda, um direito real de garantia sobre o bem que lhe é próprio. Com o pagamento de todos os valores devidos, o fiduciante adquire a propriedade, o que traz a conclusão pela qual a propriedade do credor é resolúvel”.

Nota-se, pois, que a posse direta do bem móvel ou imóvel é mantida com o devedor fiduciante.

Portanto, pode-se afirmar que a alienação fiduciária é um instituto jurídico de natureza acessória, de garantia, típico, formal, bilateral (sinalagmático) e comutativo. É acessório e de garantia porque é um contrato dependente da ação principal, visando tão somente assegurar a garantia principal. Típico, uma vez que suas normas e regras estão disciplinadas em lei específica. Formal, em decorrência da exigência de formalidades (deve ser escrito, bem como é necessário o seu registro público para que possa gerar efeitos perante terceiros) e, comutativo, pois as prestações de cada uma das partes são conhecidas de antemão e guardam equivalência de valores entre si.

IV. Requisitos da Alienação Fiduciária em Garantia de Bens Imóveis

A Lei 9.514/1997 estabelece requisitos para o contrato de alienação fiduciária em garantia de bens imóveis. São eles: requisitos subjetivos, requisitos objetivos e requisitos formais.

4.1 Requisitos Subjetivos

A subjetividade do contrato de alienação fiduciária de bens imóveis está ligada aos sujeitos que participam do mesmo, bem como às suas capacidades e legitimidade para participar do ato. São sujeitos da alienação fiduciária o fiduciário e o fiduciante. Fiduciário é o credor, é aquele que adquire a propriedade fiduciária do bem e fiduciante consiste no devedor, ou seja, aquele que alienou o seu bem em garantia com o escopo de adimplir uma obrigação principal. Nesse tipo de alienação, a Lei 9.514/1997 é bem ampla e não faz restrição. O art. 22, §1º da referida lei é claro ao dispor que a alienação fiduciária pode ser contratada tanto por pessoa física, quanto por pessoa jurídica, independente de ter ou não participação no SFI (Sistema de Financiamento Imobiliário).

Deste modo, não há óbice para que qualquer pessoa possa atuar em algum dos pólos da alienação fiduciária, apenas precisando que a pessoa seja dotada de capacidade para os atos da vida civil, bem como tenha capacidade de disposição, uma vez que o alienante deve ter o domínio do bem dado em garantia, bem como deve ter o poder de dispor livremente dele. Aqui cabe fazer uma ressalva: nada impede que o pagamento da alienação fiduciária seja realizado através de outras garantias como a fiança e o aval, desde que não incida sobre os bens alienados. O próprio decreto-lei nº 911/69 estatuiu essa possibilidade em seu art. 6º afirmando que: “o avalista, fiador ou terceiro interessado que pagar a divida do alienante ou devedor se sub-rogará, de pleno direito, no crédito e na garantia constituída pela alienação fiduciária” e o Código Civil de 2002, em seu art. 1.368, a ratificou dispondo que “o terceiro, interessado ou não, que pagar a divida, se sub-rogará de pleno direito no crédito e na propriedade fiduciária”.

4.2 Requisitos Objetivo

A Lei 9.514/97 em seus arts. 22 a 33 dispõe sobre a propriedade fiduciária dos bens imóveis. Aqui, faz-se mister ressaltar que até dispor sobre os requisitos, esta lei passou por diversas alterações. Primeiramente, em seu teor original, o art. 22 da respectiva lei estatuía que a alienação fiduciária consistia em um negócio jurídico no qual o fiduciante contratava transferência ao fiduciário da propriedade resolúvel de coisa imóvel como garantia. Logo, a priori, seu requisito objetivo era tão somente essa propriedade resolúvel de coisa imóvel concluída ou em construção como garantia. Nesse diapasão, à época surgiram discussões acerca da aplicação deste instituto e, se o mesmo, era aplicado apenas aos imóveis construídos ou em construção, ou se abarcava também imóveis sem qualquer edificação. Alguns doutrinadores como Melhim Namem Chalhub, entendiam que não havia qualquer limitação no tangente à aplicabilidade da alienação fiduciária a imóveis sem construção, englobando o terreno e suas acessões servindo, apenas, como fonte de esclarecimento.

Entretanto, outros como Frederico Henrique Viegas de Lima acreditava que a inserção dessa limitação no parágrafo único do art. 22, da Lei 9.514/97 servia como restrição do objeto da garantia. Em 2004, foi publicada a Lei 10.931 que promoveu alterações no art. 22 da lei 9.514/97: suprimiu a particularização do parágrafo único do citado artigo, bem como possibilitou que bens enfitêuticos pudessem ser objeto de alienação fiduciária em garantia imobiliária. Colocando fim a essa problemática, foi publicada a Lei 11.481/2007, que alterando o art. 22, da Lei 9.514/97, ampliou a sua aplicação, possibilitando a aplicação do instituto da alienação fiduciária aos bens enfitêuticos, o direito de uso especial para fins de moradia, o direito real de uso se este for suscetível de alienação e a propriedade fiduciária. Estes são, portanto, os requisitos objetivos da alienação fiduciária. Observa-se, assim, que atualmente é permitida a aplicação deste instituto tanto para bens móveis como para bens imóveis, além do que admite sua aplicação a outros direitos reais, o que acaba por aumentar o campo de atuação desse negócio, desencadeando uma maior segurança aos credores para disponibilização de crédito e consequentemente fomentando o mercado imobiliário.

4.3 Requisitos Formais

Além dos requisitos acima mencionados, a alienação fiduciária para ter validade deve obedecer, ainda, a alguns requisitos formais, previstos no art. 1.361, §1º do Código Civil de 2002. A propriedade fiduciária se constitui com o registro do contrato, celebrado por instrumento público ou particular, que lhe serve de título, no Cartório de Registro de Títulos e Documentos do domicílio do devedor, ou, em se tratando de veículos, na repartição competente para o licenciamento, fazendo-se a anotação no certificado de registro. Dessa forma, o contrato que serve de título à propriedade fiduciária, deve conter os seguintes elementos: I - o total da dívida, ou sua estimativa; II - o prazo, ou a época do pagamento; III – a taxa de juros, se houver; e, IV – a descrição da coisa objeto da transferência, com os elementos indispensáveis à sua identificação. Tais requisitos constituem, portanto a essência do ato, uma vez que através de sua obediência garante-se a publicidade do ato.

4.4 A Súmula 308 do Superior Tribunal de Justiça Brasileiro

No Brasil é perceptível que sempre houve uma maior valorização em garantias imóveis do que móveis, devido às valorizações das mesmas, bem como pela facilidade de se localizar o bem. Desde o início das relações creditícias, o objetivo central era o adimplemento do crédito por parte do devedor e o recebimento do mesmo pelo credor. Dessa forma, podemos perceber que a história veio criando diversos mecanismos no intuito de fazer realizar o cumprimento das obrigações atendendo, assim, o direito do credor a ter seu crédito satisfeito, bem como, o direito do devedor, poder cumprir sua obrigação da forma que lhe for menos onerosa. Com a edição da Lei 9.514/1997, o instituto da alienação fiduciária passou a substituir e a ser mais utilizados que as outras garantias existentes no ordenamento brasileiro, quais sejam, penhor, anticrese e hipoteca. Contudo, o verdadeiro desuso de tais garantias veio a se concretizar no ano de 2005, com a publicação da Súmula 308 do Superior Tribunal de Justiça Brasileiro que dispõe: “a hipoteca firmada entre a construtora e o agente financeiro, anterior ou posterior à celebração da promessa de compra e venda, não tem eficácia perante os adquirentes do imóvel”.

Os ministros integrantes da Terceira Turma, responsáveis pelo seu julgamento e edição, entenderam que o referido enunciado sumular pode ter sua aplicação estendida também a agentes financiadores de construção de empreendimentos imobiliários, ainda que não sejam instituições financeiras e não sejam relações contratuais regidas pelo Sistema Financeiro de Habitação, isto porque a intenção de ampliar o seu alcance é principalmente proteger o terceiro que adquire imóvel de boa-fé e cumpre o contrato de compra e venda. Neste caso, a Colenda Corte entendeu que o proprietário do imóvel não pode sofrer consequências pela falência da construtora, uma vez que a falência diz respeito somente a ela, não tendo qualquer relação com a pessoa física que adquiriu legalmente o imóvel de boa-fé. Portanto, a sociedade brasileira a fim de garantir mais segurança em suas relações passou a se utilizar mais do instituto da alienação fiduciária, já que esta atende aos interesses de ambos os envolvidos na relação contratual: credor e devedor.

V. Alienação Fiduciária no Direito Português

Muito se discute sobre a possibilidade de aplicação ou não do instituto da alienação fiduciária no direito português. Nele, tal instituto não se encontra amplamente descrito no ordenamento jurídico e também não possui a amplitude contida no ordenamento jurídico brasileiro. O negócio jurídico por meio da alienação fiduciária ganhou corpo no direito luso através de práticas bancárias e financeiras, com a edição do Decreto-Lei n.º 105/2004 de 08 de maio de 2004, transportado da Directiva 2002/47/CE de 06 de junho do mesmo ano. Para fundamentar e explicar a aplicação deste instituto, foram criadas diversas teorias, tais quais, a teoria do efeito duplo, teoria do negócio indireto; teoria do negócio atípico subordinado a condição, teoria da titularidade fiduciária e teoria da propriedade formal na titularidade do fiduciário. Como o estudo aprofundado das mesmas, embora enriquecedor, foge à hipótese tratada neste artigo, o qual ater-se-á comentários sobre a teoria mais aceita no ordenamento luso, qual seja a teoria do efeito duplo. Segundo ela, consideram-se realizados dois negócios: transmissão de propriedade com efeito erga omnes e o pactum fiduciae, que consiste na obrigação inter partes. Dessa forma, um contrato é celebrado para produzir efeitos normais entre as partes e perante terceiros. No entanto, tem-se uma cláusula entre o devedor/alienante e o credor/adquirente pela qual este assume a obrigação de retransferir para aquele o direito obtido através do negócio realizado assim que for satisfeito o crédito.

No Código Civil Português, o direito de propriedade está previsto em seus art. 1305 e seguintes, sendo que o art. 1.307 dispõe que o direito de propriedade pode constituir-se sob condição e que sua aplicação temporária é admitida apenas nos casos previstos em lei.

VI. Brasil X Portugal

No direito brasileiro, constata-se que na década de 1960 em decorrência da efervescência na economia, período em que houve desenvolvimento da política de difusão do crédito direto ao consumidor, a propriedade fiduciária ganhou espaço, assim, surgem as primeiras legislações quanto ao tema, a qual sofreu várias desdobramentos aos largo da evolução legislativa temporal. A primeira lei a tratar do tema foi a Lei 4.728/65, tendo esse diploma sido o precursor do instituto na legislação brasileira, conhecido como Lei de Mercados de Capitais. Objetivava um incentivo ao crédito de forma a dar mais dinamismo ao financiamento de bens imóveis. Com o início da vigência da Lei 4.728/65 passa a ser possível a retomada do objeto contratado em razão de inadimplemento, trazendo assim para o ordenamento jurídico brasileiro uma forma mais atrativa de garantia, tendo em vista que o credor passa a ter uma ampliação das garantias quanto a propriedade da coisa.

Adiante o Decreto-Lei 9.514/2004 (o qual aborda a alienação fiduciária de bens imóveis) e a Lei 10.931/2004, que alterou o regime jurídico. Caio Mário da Silva Pereira , colaborador convidado para Projeto do Código de Obrigações de 1965, inseriu no art. 672 a previsão do contrato de fidúcia aproveitando a experiência do direito anglo-americano do instituto trust. Foi com o advento do Código Civil Brasileiro de 2002, que a propriedade fiduciária surge enquanto direito real, mais especificamente no art. 1.225, inciso I, estando de forma expressa como espécie de propriedade resolúvel. Destaca Cristiano Chaves de Farias e outro “Antes do advento do advento do Código Civil, era tratada como alienação fiduciária, expressão que agora só se reserva ao tipo contratual, mas não ao direito real de garantia que se forma posteriormente pelo registro.” Nesse mesmo sentido o renomado autor Caio Mário da Silva Pereira pontuou : “[...] embora que por muitas vezes sejam empregadas indistintamente, as expressões alienação fiduciária em garantia e propriedade fiduciária correspondem tecnicamente a fenômenos distintos. A primeira relaciona-se ao negócio jurídico que constitui o título de garantia, ao passo que a segunda designa o direito real de garanti em si considerado.”

Assim, firma-se a compreensão de que a propriedade fiduciária se afigura como um direito real de garantia tal como a hipoteca e o penhor. Em Portugal, o instituto da propriedade fiduciária não esta amplamente descrita no ordenamento jurídico nem tampouco tem a amplitude contida no ordenamento jurídico brasileiro. O negócio jurídico por meio da alienação fiduciária ganhou corpo no direito português por meio das práticas bancárias e financeiras, como já dito alhures, tendo em vista a edição do Decreto-Lei n.º 105/2004 de 08 de maio de 2004, transportado da Directiva 2002/47/CE de 06 de junho do mesmo ano. Por meio do Decreto supramencionado procedeu-se à consagração legal de uma nova modalidade de penhor financeiro, qual seja, da alienação fiduciária em garantia, no entanto restrita aos contratos de garantia financeira. Assim, “a possibilidade de as partes convencionarem a transmissão da propriedade a título de garantia resulta de expressa imposição da directiva agora transposta e constitui um dos aspectos mais inovadores do regime aprovado. Com a consagração de uma nova forma de transmissão da propriedade, ainda que a título de garantia, é alargado o numerus clausus pressuposti pelo artigo 1306º do Código Civil, o que permitirá o reconhecimento da validade das alienações fiduciárias em garantia e o fim da insegurança jurídica que resultava da necessária requalificação desses acordos como meros contratos de penhor” (preâmbulo do Decreto-lei n.º 105/2004 de 08/05).

VII. Conclusão

O presente estudo possibilitou uma análise panorâmica do instituto da Alienação Fiduciária. Inicialmente abordou-se a matéria quanto a sua evolução histórica, conceito e natureza jurídica. Adiante se tratou do instituto propriamente dito, suas peculiaridades, elecando seus requisitos e promovendo um comparativo da aplicabilidade deste instituto no Direito Português e no Direito Brasileiro. Foi possível constatar que no Direito Português a Alienação Fiduciária reduz-se aos contratos de garantia financeira, apresenta garantia de posse relativamente a títulos dessa natureza. Conquanto no Direito Brasileiro o Instituto possui uma aplicabilidade mais ampla, perpassando o mercado mobiliário, atingindo bens móveis e imóveis. Pode-se inferir que a Alienação fiduciária no Brasil, trata-se da garantia real mais utilizada, e em razão disso, sobrepujando a própria Hipoteca, já quase em desuso, restringindo-se a garantia de bens imóveis. Nessa esteira há que se ressaltar a importância da garantia real da Alienação Fiduciária nos dias atuais, a qual vem norteando a maior parte das relações de consumo do Brasil que envolvem questões relativas à posse, com garantia posterior da propriedade. Isto porque as relações são dinâmicas e necessitam de celeridade o que as garantias reais de outrora, já não podem oferecer. Assim, a Alienação Fiduciária apresenta-se como uma resposta rápida e eficaz ao Credor, de forma a proporcionar segurança jurídicas à relações. Logo, a alienação fiduciária, da mesma forma que se tornou no Brasil um instituto de grande relevância, uma vez que confere poder de compra a praticamente todos os seguimentos sociais existentes no país, pode trazer grandes contribuições à realidade portuguesa, facilitando o adimplemento de créditos na relação credor/devedor.

Referências bibliográficas

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