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Centro de Estudos Constitucionais e de Gestão Pública

O Judiciário e o Supremo: a equivocada criação de um demônio popular – por Ney Bello

“O que temos assistido é a apresentação da Justiça e do Supremo Tribunal Federal como demônios capazes de gerar tamanho mal à sociedade, que suas inexistências – com o fechamento do STF – são necessárias à proteção da população.”

Por Ney Bello

A história do Direito Penal registra a existência, em diversos períodos, de muitos demônios populares que estabeleceram pânicos morais na sociedade, num movimento que criou fobias e construiu inimigos públicos.

Em alguns casos, há inimigos reais que têm a sua importância exagerada e potencializada, e são apresentados aos olhos e mentes da massa como muito mais perigosos do que realmente são. Em outros exemplos, os inimigos são literalmente inventados, construídos para causar medo e horror.

Há também aqueles que são reais na sua existência, mas possuem a sua significação totalmente distorcida, passando a representar algo que verdadeiramente não são.

Grupos de jovens de periferia, traficantes de drogas, agentes públicos, criminosos comuns, todos eles em algum momento e em algum lugar do mundo já foram sujeitos que suscitavam medo ou pânico de um mal profundo e irremediável, por eles gerado.

Quem desenvolve o pânico moral e quem constrói o demônio popular?

Muito se discute na criminologia de onde partem essas construções e como se desenvolve esse surto coletivo.

Exemplos já estudados como o de Antônio Conselheiro e Canudos, das Bruxas de Salém ou mesmo dos jovens de periferia na pequena cidade do sul da Inglaterra trazem muitas respostas e mais dúvidas.

Há quem veja no pânico moral gerado pela existência de um demônio popular como algo planificadamente criado com um objetivo claro.

Uma força motriz que possui interesse em controlar grupos, ideias ou pessoas constrói de forma planificada um demônio e o torna popular e digno de ojeriza, trabalhando na produção da reação da massa a ele próprio e ao que representa.

Há teóricos que veem no “folk devil” e no “moral panic” não uma produção pensada com um objetivo específico, mas uma criação espontânea da sociedade que sempre projeta seus temores e seus receios em pessoas concretas e em atos reais, no movimento psíquico já conhecido de culpar os outros por seus próprios equívocos ou pela insatisfação com algum elemento concreto de suas próprias vidas.

Não haveria construção centralizada e interessada do demônio popular, mas sim a criação automática de um simbólico mau, por mil fatores convergentes, que levariam ao pânico a partir da perspectiva de dano que ele próprio poderia causar.

Todos os criminalistas dedicados à questão percebem que o pânico, a partir de um certo momento, gera mais pânico e se desenvolve sobretudo em razão do hiperfoco que os canais de informação vigentes passam a dar ao próprio demônio popular, gerando horror e medo sucessivos e progressivos, a partir da overdose de informações tendentes a gerar reação, revolta e fobia. E ,consequentemente, pânico.

Nos tempos que correm, esse processo de hiperfoco se desenvolve não apenas por jornais, televisões ou rodas de conversas, mas principalmente por redes sociais ou pelo WhatsApp, que bombardeiam a a todos nós com notícias, informações ou análises que frequentemente são tendenciosas, falsas ou distorcidas que condicionam o leitor ou o ouvinte a ter mais receio de sofrer um mal. E este mal, conforme a mensagem – que vem seguindo a lógica do “demônio que pode me engolir” – estará “cada vez mais perto de mim”.

No Brasil contemporâneo os “folk devils” tornaram-se comuns e passaram a ocupar noticiários, trending topics no Twitter, correntes de WhatsApp, páginas de Facebook e postagens de Instagram.

Turbinados profissionalmente por robôs, mas também difusamente distribuídos por usuários das redes ou YouTubers, as notícias tendentes a gerar revolta e medo foram dirigidas contra professores, artistas, pesquisadores, políticos, pessoas de pensamento ou posição ideológica à esquerda, além de servidores públicos.

A velocidade da construção de demônios populares chegou ao ponto de serem apresentados um deles por semana, alguns gerando muito pânico e outros apenas reações moderadas.

Independentemente de saber se isso é um movimento espontâneo ou planificado e se não há interesse na sua gênese ou se obedece a um script, a um motivo e a um objetivo, há algo que parece ser novidade nos estudos acerca do assunto: a criação de um demônio popular – com geração de catarse característica do pânico moral – que na verdade é uma instituição, e joga a função política de um dos três sustentáculos da democracia.

O que temos assistido é a apresentação da Justiça e do Supremo Tribunal Federal como demônios capazes de gerar tamanho mal à sociedade, que suas inexistências – com o fechamento do STF – são necessárias à proteção da população.

As Bruxas de Salém agora são os magistrados, e a má intenção por detrás da construção da imagem demoníaca relaciona-se com a contrariedade exposta à decisões judiciais.

O STF decide determinada questão da maneira como acha correto, funcionando como instituição pilar da democracia e, repentinamente, outros servidores públicos – descontentes com o resultado de uma decisão – formatam um demônio popular e começam a gerar pânico moral, na certeza de que um levante ou uma revolta pode alterar o papel da Corte se não nessa decisão, em outras.

O fator pânico moral – e o efeito manada – leva alguns detentores de mandatos eletivos, na dependência dos sentimentos populares que se traduzem em votos, a apoiarem a construção do demônio popular, gerando movimento de pânico que se demonstra em outras medidas informativas ou – pior – em atos formais de depreciação do novo inimigo.

No espalhamento do pânico moral em relação ao STF três coisas não são observadas e precisariam ser pensadas, por quem deseje agir distante do efeito manada:

Em primeiro lugar o Judiciário, e principalmente o Supremo, com todos os erros e críticas à corte de hoje ou de sempre, representam o ponto de Arquimedes da democracia. Sem ele e sem a sua liberdade de decidir e julgar não será possível haver democracia, pois faltará o árbitro das decisões políticas e das tensões endógenas. Quem passará a decidir: um senador? Um ditador? Um colégio de integrantes do Ministério Público? Uma reunião de advogados? Ou o povo, aquele mesmo que livrou Barrabás e condenou Jesus?

O jogo do descontente, principalmente quando elaborado por funcionário público, representa um ato autoritário, criador de demônios populares bem ao estilo da época das Bruxas de Salém. “Queimem todas! São culpadas”!

Em segundo lugar, o descontentamento de mérito só justifica a demonização do Judiciário quando o órgão acusador não deseja um julgamento justo. Apenas quando ele deseja a chancela de suas próprias verdades, e a confirmação do seu próprio relato da história, nada mais. Goebbels ressurge como patrono dessa ideia! Pensar assim é ser igual a qualquer ditador latino.

É preciso atentar para o fato de que o pânico moral que vem sendo gestado não busca reagir a desvios éticos ou funcionais, mas sim a posições de mérito, utilizando a retórica da demonização! O movimento só demonstra desapego à democracia, reação às regras do jogo democrático e arrogância político-institucional.

Cabe ao jogador, descontente com a marcação de um impedimento, desejar expulsar o árbitro da partida? Evidente que não!

Em terceiro lugar, cumpre refletir que o movimento traz consigo a desestabilização dos métodos de decisão do próprio Judiciário, permitindo a barbárie.

Quando a população legitima o sarcasmo, a agressão e a mobilização popular pelo fechamento da Justiça e contra decisão do STF que não lhe agrada, mobilizada por operadores do Direito, está permitindo que forças antagônicas façam o mesmo, quando a decisão desagradar a outra metade da sociedade. É a legitimação do jogo da força, e a negação da racionalidade! E quando esse movimento de implosão é patrocinado por operadores da Justiça, certamente temos parte do sistema negando amplamente a existência e a validade do próprio sistema.

Haverá de haver um tempo em que a maturidade institucional nos alcance e possamos entender que demônios criados e pânicos gerados – por interesses pessoais ou espontâneos – não conseguirão construir um mundo melhor!

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Ney Bello é desembargador no Tribunal Regional Federal da 1ª Região, professor da Universidade de Brasília (UnB), pós-doutor em Direito e membro da Academia Maranhense de Letras.

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Publicado originalmente na Revista Consultor Jurídico