O desafio do governo é o de conseguir encabrestar os cerca de 242 milhões de celulares inteligentes em uso no Brasil. Adicionando os notebooks e os tablets, são 352 milhões de dispositivos portáteis ou 1,6 por habitante! – Conforme dados de maio de 2022 do Centro de Tecnologia de Informação Aplicada da FGV.
Por Sergio Tamer*
O governo federal prepara um projeto de lei a ser encaminhado proximamente ao Congresso visando, genericamente, combater “a proliferação de desinformação na internet, as práticas anticompetitivas das redes sociais, as fakenews e tudo o que possa ameaçar a democracia…”. Como se vê, cabe tudo nesse projeto! De acordo com o INSPER – Instituto de Ensino e Pesquisa, 148 milhões de brasileiros estão no Facebook, 105 milhões no Youtube, 99 milhões estão no Instagram e no Twitter são 19 milhões. Nada mal, assim, para o governo, que haja uma lei que consiga aplacar e, de permeio, controlar esse furor comunicativo entre pessoas, instituições, empresas e atores políticos.
A questão é: o Marco Civil da internet (Lei nº 12.965/2014) regula as redes sociais no país desde 2014, mas a legislação não responsabiliza as plataformas pelo seu uso, ou seja, pelas publicações feitas por terceiros, ainda que eventualmente estejam sendo divulgadas informações falsas.
O ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Alexandre de Moraes, defende a adoção de mecanismos de regulamentação das redes sociais, contudo ele entende que tal controle seja semelhante àquela aplicada à mídia tradicional. O ministro Barroso – sempre muito midiático e opinativo -, também já formulou a sua proposta …E muitas outras sugestões têm surgido por parte das chamadas “entidades da sociedade civil”, a exemplo da ABERT – Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão e, como se vê pelo detalhamento de todas elas, são detentoras dos melhores propósitos! Mas, desconfiado com o que já se viu no passado, o cidadão lembra que tanto a ladeira do inferno quanto as propostas de regulação da internet estão repletas de bem-intencionados…Dessa maneira, os contrários à essa possibilidade dizem que, se um projeto for aprovado nesse sentido, isso poderá nivelar o Brasil a países autoritários e sem liberdades.
Dando eco a essas vozes dissonantes, o jornalista Cláudio Humberto (que mantém uma coluna diária no Jornal Pequeno, dentre outros órgãos da imprensa nacional), afirma que “democracias em geral não relativizam o exercício da liberdade, sem prejuízo a punições de crimes previstos, como calúnia. Lembra, ainda, que críticos da teocracia iraniana são presos, e na Rússia de Putin cidadãos podem ser enquadrados por “crime contra a segurança nacional”. Isto é, a busca pelo louvável equilíbrio entre liberdade e responsabilidade poderá ensejar um clima indisfarçável de censura e de intimidações por parte de servidores públicos – o que, à toda evidência, é intolerável para os padrões democráticos que almejamos.
A Lei de Imprensa de 1967 (Lei nº 5.250, de 9 de fevereiro), que regulava a “liberdade de manifestação do pensamento e de informação” em uma época em que não havia celulares e muito menos smartphones, vigorou até abril de 2009 quando o STF, acolhendo uma arguição de descumprimento de preceito fundamental proposta pelo deputado federal Miro Teixeira considerou que a lei não foi recepcionada pela Constituição Federal de 1988, e acabou decidindo pela sua inconstitucionalidade. No seu art.12 ela prescrevia: “Aqueles que, através dos meios de informação e divulgação, praticarem abusos no exercício da liberdade de manifestação do pensamento e informação ficarão sujeitos às penas desta Lei e responderão pelos prejuízos que causarem.” E logo no art. 14 estabelecia: “Fazer propaganda de guerra, de processos para subversão da ordem política e social ou de preconceitos de raça ou classe: Pena: de 1 a 4 anos de detenção.” Quanto às “fakenews” da época, assim dispunha o art.16: “Publicar ou divulgar notícias falsas ou fatos verdadeiros truncados ou deturpados, que provoquem: I – perturbação da ordem pública ou alarma social; II – desconfiança no sistema bancário ou abalo de crédito de instituição financeira ou de qualquer empresa, pessoa física ou jurídica; III – prejuízo ao crédito da União, do Estado, do Distrito Federal ou do Município; IV – sensível perturbação na cotação das mercadorias e dos títulos imobiliários no mercado financeiro. Pena: De 1 (um) a 6 (seis) meses de detenção, quando se tratar do autor do escrito ou transmissão incriminada, e multa de 5 (cinco) a 10 (dez) salários-mínimos da região.” Claro que a lei também recriminava quem ousasse “Ofender a moral pública e os bons costumes”, etc. e, por óbvio que ela não admitia “a prova da verdade contra o Presidente da República, o Presidente do Senado Federal, o Presidente da Câmara dos Deputados, os Ministros do Supremo Tribunal Federal, Chefes de Estado ou de Governo estrangeiro, ou seus representantes diplomáticos….” Por sua vez, era mantida a responsabilização pelos crimes de injúria, difamação e calúnia.
Mas o STF achou que aquela lei era atentatória à liberdade de expressão, além de sua má reputação por ter sido originada em pleno regime militar, e logo tratou de extirpá-la. Agora os tempos são outros, e como é sabido que pimenta nos olhos do outro é refresco, pede-se muito mais rigor na tipificação midiática das condutas “antidemocráticas”, na definição de suas responsabilidades e na aplicação das penas. O desafio do governo é o de conseguir encabrestar os cerca de 242 milhões de celulares inteligentes em uso no Brasil. Adicionando os notebooks e os tablets, são 352 milhões de dispositivos portáteis ou 1,6 por habitante! – Conforme dados de maio de 2022 do Centro de Tecnologia de Informação Aplicada da FGV. Em face do que se pretende hoje, a Lei de Imprensa de 1967 era uma norma para ser aplicada em “jardim da infância” …
Em regimes autoritários e ditatoriais, como o da China, Rússia, Iran, Síria, Venezuela, Cuba, Coreia do Norte, Nicarágua e outros, não há qualquer dificuldade em impor controle e censura sobre o meio e a mensagem. Nas democracias, porém, onde o valor “liberdade de expressão” deve ser preservado para que elas existam como tal, as coisas hoje se tornam mais complexas quando o assunto é o controle da comunicação especialmente em um cenário multimidiático no qual, ao contrário da conceituação tradicional, o “meio” se confunde com a própria “mensagem”.
De pouca valia, portanto, seria o governo pretender amordaçar os 352 milhões de dispositivos portáteis conectados à internet o que teria o mesmo efeito de se tentar encobrir “o sol com peneira”. Contudo, as condutas que levem à difamação, injúria e calúnia, além da mentira capaz de provocar alarma social e outros danos, deverão ser responsabilizadas e punidas – como, aliás, já existem instrumentos legais para isso.
O que não me parece sensato, todavia, é punir o carteiro pelo conteúdo da carta que nos foi entregue e que não nos agradou. Nas ditaduras, a autocensura é até pior do que a censura em si: as pessoas preferem se submeter ao silêncio do que incorrer no risco de ser denunciadas por funcionário estatal. Porém, esperemos não chegar a esse ponto! Por enquanto, fiquemos com a observação de que o controle da mídia, nos moldes como está se delineando, não é o melhor caminho para “salvar a honra do governo” dos ataques de desatinados e celerados, ainda que para isso tenhamos as melhores intenções legislativas…
__________________________Sergio Tamer é presidente do Centro de Estudos Constitucionais e de Gestão Pública-CECGP; membro da Academia Maranhense de Letras Jurídicas e presidente da Academia Maranhense de Cultura Jurídica, Social e Política; é doutor em Direito Constitucional pela Universidade de Salamanca e autor de diversas obras jurídicas.