CECGP

CENTRO DE ESTUDOS CONSTITUCIONAIS E DE GESTÃO PÚBLICA

CECGP articula suas tarefas de pesquisa em torno de Programas de Pesquisa em que se integram pesquisadores, pós-doutores provenientes de diferentes países.

O princípio do juiz natural em um mundo em transformação

Por Vladimir Passos de Freitas

 

O princípio do juiz natural foi mencionado expressamente, pela primeira vez, na França, através da Lei 24/08/1790, que determinou no seu artigo 17 do título II que: “A ordem constitucional das jurisdições não pode ser perturbada, nem os jurisdicionados subtraídos de seus juízes naturais, por meio de qualquer comissão, nem mediante outras atribuições ou evocações, salvo nos casos determinados pela lei”.

Juiz natural é aquele com competência fixada em lei para processar e julgar a controvérsia levada ao Poder Judiciário. Previsto em nossas Constituições desde 1824 (artigo 179, inciso XII), ainda que nem sempre com as mesmas palavras, ele está explícito na Carta Magna de 1988, que proíbe “juízo ou tribunal de exceção” (artigo 5º, inciso XXXVII). Luis Roberto Barroso, invocando precedente do Supremo Tribunal Federal1, sobre ele assim falou:

“O postulado do juiz natural, por encerrar uma expressiva garantia da ordem constitucional, limita, de modo subordinante, os poderes do Estado — que fica, assim, impossibilitado de instituir juízos ad hoc ou de criar tribunais de exceção —, ao mesmo tempo em que assegura ao acusado o direito ao processo perante autoridade competente abstratamente designada na forma da lei anterior, vedados em consequência, os juízos ex post facto”2.

Muito embora poucos saibam, o Brasil já teve um tribunal de exceção, qual seja, o Tribunal de Segurança Nacional, criado em 1936, no regime ditatorial de Getúlio Vargas3. No regime militar instaurado em 1964 não foram criados juízos ou tribunais de exceção, muito embora transferida a competência para o julgamento dos crimes contra a segurança nacional da Justiça estadual para a Justiça Militar Federal.

No entanto, agora surgem conflitos entre o antigo princípio e as transformações pelas quais passa o mundo, em especial a revolução digital. Princípios seculares chocam-se com uma nova realidade, deixando atônitos os profissionais do Direito. A onda avassaladora, tal qual um tsunami, avança ignorando conceitos construídos ao longo do tempo.

Os Países Baixos aboliram, em reformas de 1º de janeiro e 1º de abril de 2013, nada menos do que três tribunais de apelação e 17 de primeira instância (comarcas)4, porque se mostraram desnecessários com o decorrer do tempo, já que os julgamentos poderiam ser feitos de forma eletrônica.

Há mais de dez anos as varas federais de crimes contra a ordem econômica alargaram a jurisdição especializada, já que, dos seus juízes, se exigem conhecimentos técnicos que vão muito além do Direito, como comércio exterior, contabilidade, economia e práticas bancárias.

Aos 15 de maio de 2008, o STF fixou o precedente. Tratava-se de uma resolução do Tribunal Regional Federal da 5ª Região que fixou a competência da Vara dos Crimes contra o Sistema Financeiro Nacional para ocorrências fora de Fortaleza, capital do Ceará. No Habeas Corpus 88.660, relatado pela ministra Cármen Lúcia, por 10 votos contra 1, a corte decidiu pela constitucionalidade da resolução atacada5.

Mais recentemente, o Superior Tribunal de Justiça enfrentou questão semelhante. O Tribunal de Justiça de Mato Grosso criou a Vara Especializada Contra o Crime Organizado da Comarca de Cuiabá, cuja jurisdição se estende além dos limites da capital do estado. O juiz de Direito de Rondonópolis declinou da competência para a vara da capital. Discutiu-se a competência e, no Recurso Especial 1.611.615-MT, o STJ, em acórdão relatado pelo ministro Felix Fischer em 20 de março deste ano, reconheceu a competência do juízo da capital6.

A decisão foi a mais adequada aos tempos atuais. O juiz do interior sempre está mais exposto, seus hábitos e os de sua família são conhecidos. Em tempos de crescimento do crime organizado, que não hesita em intimidar os que atuam na esfera judiciária, não há como garantir a imparcialidade do juiz local. E, além disso, há a necessária especialização dos magistrados, porque organizações criminosas não exercem suas atividades apenas no território da comarca, mas, sim, em regiões extensas, muitas vezes interestaduais e até internacionais.

No âmbito do Direito Ambiental dá-se o mesmo. O Tribunal Regional Federal da 4ª Região, através das resoluções 45 e 63 de 2018, estendeu os limites da 11ª Vara Federal de Curitiba, que é especializada em matéria ambiental, ao litoral paranaense, mesmo havendo uma vara federal em Paranaguá. É dizer, as ações civis públicas do litoral e até mesmo as execuções fiscais por multas ambientais impostas pelos órgãos federais tramitam no Juízo Ambiental de Curitiba, que é especializado. Com certeza por sua reconhecida eficiência e pelo dever constitucional de o poder público preservar o meio ambiente (artigo 225).

Não é diferente a situação das varas de execuções penais da Justiça dos estados. Obrigadas a lidar com os mais graves problemas de cumprimento das penas, exigem tratamento uniforme e juízes especializados. Ademais, a segurança dos magistrados e também dos agentes do Ministério Público está exposta a um risco muito maior, pois é na progressão das penas que surgem os maiores conflitos. Tal fato levou o Judiciário de muitos estados a estender a jurisdição além da comarca onde se situam as varas especializadas, ou seja, a uma determinada região ou até a todo o estado.

Nessa linha, o Tribunal de Justiça de São Paulo criou os chamados Deecrim (Departamentos Estaduais de Execuções Criminais), dividindo o estado em regiões administrativas judiciárias, como forma de enfrentar os novos tempos7. E a Lei 12.694, de 24 de julho de 2012, no seu artigo 1º, permitiu que, nos processos de organizações criminosas, a decisão possa ser colegiada, e não apenas de um juiz, individualmente. Reparte-se a responsabilidade e eleva-se a segurança dos atores envolvidos.

A esses exemplos some-se o fato de que muitas inovações vêm pela frente. Se um tribunal criar um sistema de julgamentos eletrônicos, nos quais as partes expõem suas posições e se busca um acordo através de um programa previamente preparado, certamente pessoas de todo o território nacional apontarão dita corte como foro de eleição em seus contratos, pela rapidez no julgamento. Desvia-se, voluntariamente, do juiz natural.

Em suma, vivemos novos tempos em que tudo vem se transformando drasticamente, para o bem e para o mal. A interpretação do Direito deve adequar-se, não há mais espaço para rituais quase litúrgicos, discussões intermináveis e discursos lindos que não levam a nada.

Nesta nova realidade, os tribunais devem se adaptar, até porque, se não o fizerem, serão simplesmente ignorados pela sociedade, que elegerá outra forma de solução de conflitos, dispensando juízes, promotores e advogados.

Mas como se coloca o princípio do juiz natural neste contexto?

Ele deve ser resguardado, pois sua relevância é inegável e deve ser reconhecida. Porém, adaptado às circunstâncias do caso concreto. Não deve ser simplesmente ignorado, porque configura uma conquista da democracia, evitando que se designem juízes para determinados casos ou que, deles, sejam retirados, a fim de atender interesses espúrios. Mas, por outro lado, não deve impedir a adequação da Justiça à realidade atual.

Então, o que se há de fazer é, caso a caso, a análise da lei ou do ato administrativo que estabelece a competência de varas, câmaras ou turmas, comparando-o com as peculiaridades de um caso concreto. Se ficar evidenciado que a origem foi para beneficiar ou prejudicar o interesse de alguém, deve ser declarado nulo. Mas, se foi criado para atender o interesse público genérico de uma Justiça mais célere e eficiente, deve ser mantido.

Em suma, para os tempos novos, novas soluções. Vamos em frente.

1 STF, Revista Trimestral de Jurisprudência, v. 160, p. 1.056.
2 BARROSO, Luis Roberto. Constituição da República Federativa do Brasil Anotada. São Paulo: Saraiva, 1998,p. 35, subtítulo 60.
3 FREITAS, Vladimir Passos de. Pouco se sabe sobre o Tribunal de Segurança NacionalRevista Eletrônica Consultor Jurídico, 31/5/2009. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2009-mai-31/brasil-sabe-tribunal-seguranca-nacional. Acesso em 22/9/2018.
4 https://e-justice.europa.eu/content_european_case_law_identifier_ecli-175-nl-en.do?member=1
5 http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=88918. Acesso em 21/9/2018.
6 https://stj.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/558708080/recurso-especial-resp-1611615-mt-2016-0174769-5. Acesso em 21/9/2018.
7 https://tj-sp.jusbrasil.com.br/noticias/199163027/tjsp-instala-departamento-estadual-de-execucoes-criminais-na-capital. Acesso em 21/9/2018.

 

Compartilhe!