Foi lançada a 44ª edição do Direito Administrativo Brasileiro, o manual de Hely Lopes Meirelles. Na frase há dois mortos: Hely, falecido em 1990; e os manuais de Direito Administrativo, mortos em meados dos anos 2000. Já tratei do primeiro falecimento em outro texto. Comento, agora, o segundo, ocorrido não com um sussuro, mas numa hiperagitação histriônica…
A afirmação textual do Direito Administrativo brasileiro se fez, de início, em materiais de cursos universitários, escritos por professores, cuja fonte essencial eram regulamentos e leis. Havia muita doutrina francesa e pouca jurisprudência. Chamavam-se Direito Administrativo Brasileiro (Joaquim Ribas, Veiga Cabral), Excerto de Direito Administrativo Pátrio (Furtado de Mendonça), Elementos de Direito Administrativo brasileiro (Pereira do Rego).
Científicos ou práticos, mais ou menos retóricos, todos se percebiam como avançando teses ou construindo saberes. A tendência continuou pelo século XX com alguns ajustes, como mais referências a autores nacionais e citação de jurisprudência. Dentre os recentes, Bandeira de Mello (Curso de Direito Administrativo) e o próprio Hely.
Nessas obras havia certa aura, no sentido de Walter Benjamin: autenticidade, voz, irreprodutibilidade. Eram livros Pesados e eram Graves. Eram Doutrina. Não eram literatura especializada, tampouco ciência. Ser jurista era mais vocação do que profissão. Mesmo quando escritas por jovens, eram obras de maturidade. Aspiravam secretamente a alguma permanência. Falharam – falharemos todos -, e estava nisso sua tragédia.
Mas o tempo dos manuais acabou. A prática engoliu a teoria: instituições importam; custos importam – conceitos de Direito Administrativo não importam tanto. A complexidade superou qualquer capacidade de abrangência manualística. O valor de diferença da erudição se perdeu com a internet. Novas tecnologias horizontalizaram discursos (o jurista do passado se torna um meme; o jurista do presente já nasce meme).
Existem, é claro, excelentes manuais contemporâneos. Mas é que, no novo contexto, tornaram-se ou luxo inócuo – resposta para uma sociedade que não se importa tanto com a pergunta – ou desafio pantagruélico. Nenhum manual é mais atual ou profundo do que uma consulta no Google.
Mas, além dos manuais de qualidade, há, também, uma maioria de manuais-para-concurso, que, resumindo infinitamente manuais anteriores e acrescendo decisões judiciais recentes, contribuem para o esvaziamento da forma. Talvez o manual aurático não tivesse mesmo como sobreviver em 2020, mas ninguém esperava que Luís Bonaparte chegasse num carro alegórico.
É que hoje, na sua superficialidade deliberada, no seu desenho trivializador, nos seus esquemas para decorar, nos seus truques e traques, nos seus resuminhos de posições, no influencer-manualista que chama “a galera”, resta-nos supor que esta segunda época dos manuais tem certo brilho millenial pink; sabe a unicórnios que vomitam arco-íris; é talvez um meme ou um instrumento ou um meme-instrumento; mas, antes e acima de tudo, é uma farsa.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA – Professor Adjunto de Direito Administrativo da UERJ. Coordenador do UERJ Reg. Doutor e mestre em Direito Público pela UERJ. Master of Laws por Harvard. Nenhum pós-doutorado (pós-doutorado não é título, é uma experiência de pesquisa).
Publicado originalmente no site jurídico JOTA