CECGP

Notícia

Centro de Estudos Constitucionais e de Gestão Pública

OPINIÃO: A INTENTONA DE 8 DE JANEIRO – por Sergio Tamer

POR QUÊ A INTENTONA DE 8 DE JANEIRO NÃO FOI EVITADA?

“Situação mais complexa, difícil e tormentosa, contudo, é e será a relação do governo Lula com as Forças Armadas. …”

Por Sergio Tamer*

     Os acontecimentos de 8 de janeiro já entraram para a história como um dos mais perturbadores episódios políticos ocorridos no Brasil. Difícil esquecer a turba raivosa e determinada entrando quase em marcha unida em Brasília, rumo à Praça dos Três Poderes, para iniciar uma escalada jamais vista de depredações e invasões nos prédios que simbolizam o coração do Poder em nosso país. Nem o MST, em tempos outros, ousaria tanto.

      Os governos Lula e Ibaneis, recém instituídos, mal haviam se ajustado em suas respectivas cadeiras e logo foram assombrados por aquela horda de manifestantes, alguns bem mais ativos na liderança que exerciam sobre os demais. Aquela massa humana, aparentemente ordeira no início da caminhada, se transfigurou, de forma incontrolável, após o início das invasões. Como disse o professor português Viriato Soromenho-Marques, “no vocabulário da longa história política do Ocidente não faltam conceitos para qualificar essa nuvem humana, pintada em amarelo e verde, que deixou atrás de si um mar de ruínas na Praça dos Três Poderes, em Brasília”. De fato, há termos para todos os gostos e qualificações. Foram atos criminosos, sim, mas de que etiologia? Terroristas ou antidemocráticos? Vândalos ou arruaceiros? Em qual tipificação penal enquadrá-los? Por seu turno, resta a pergunta mais incômoda para os detentores do poder: esses fatos poderiam ser evitados? Porque a segurança – estadual e federal – falhou de forma clamorosa já que as autoridades foram avisadas do que iria suceder? E por fim, diante dos graves feitos presenciados pelo mundo todo, quais consequências, de ordem política e social, poderão ainda convulsionar a sociedade brasileira nos próximos quatro anos? Há algum risco de golpe de estado, vale dizer, de uma intervenção militar no Brasil?

     A CONTA DO ESTRAGO COBRADA DE FORMA SELETIVA

     Em relação à responsabilização por omissão dolosa ou por mera e nefasta negligência, verificamos que toda a fúria retórica e peculiar do ministro Alexandre de Moraes se voltou, a priori, contra o governador Ibaneis e o seu secretário de segurança, o delegado da Polícia Federal e ex-ministro da Justiça de Bolsonaro, em face da forte suspeita de ter havido, por parte de ambos, uma destruidora omissão. Mas, pelo outro ângulo da questão, é pertinente indagar qual a razão para o Governo Federal, por seus órgãos especializados, ter-se mantido inerte diante da invasão previamente anunciada?!… Por enquanto, até por questões de conveniência política,  o bode expiatório continua sendo somente a cúpula do governo do Distrito Federal. Veja-se, por exemplo, este trecho da decisão monocrática do ministro do STF:

“…a escalada violenta dos atos criminosos (…) com depredação do patrimônio público, conforme amplamente noticiado pela imprensa nacional, circunstâncias que somente poderia ocorrer com a anuência, e até participação efetiva, das autoridades competentes pela segurança pública e inteligência, uma vez que a organização das supostas manifestações era fato notório e sabido, que foi divulgado pela mídia brasileira. A omissão e conivência de diversas autoridades da área de segurança e inteligência ficaram demonstradas com (a) a ausência do necessário policiamento, em especial do Comando de Choque da Polícia Militar do Distrito Federal…”

     A exemplificação da omissão e conivência, como se vê, parou na Polícia Militar do Distrito Federal. Mas deve-se indagar e igualmente questionar o porquê da omissão, dolosa ou culposa, das demais forças federais sediadas em Brasília uma vez que sabiam do que iria ocorrer pois, como afirmou o ministro Alexandre de Moraes, “…a organização das supostas manifestações era fato notório e sabido, que foi divulgado pela mídia brasileira…”

     A apuração da responsabilidade dos atores desse lamentável episódio ainda prossegue. Há, entre os investigados, aqueles que compõem o núcleo dos planejadores, dos financiadores, dos executores, dos omissos, e dos “inocentes úteis”, como, aliás, em todo movimento dessa natureza, sendo que a imputação deverá incidir conforme o maior ou menor grau de participação de cada qual. Mas que imputação?

TERRORISMO OU GOLPISMO: O ENQUADRAMENTO LEGAL

A Lei 13.260 de 16 de março de 2016, conhecida como “Lei antiterrorismo”, passou a regulamentar o disposto no inciso XLIII do art. 5º da Constituição, disciplinando assim a matéria relacionada ao terrorismo com a consequente disposição investigatória e processual. O mais inusitado, porém: por influência da esquerda, o conceito de organização terrorista fora reformulado no Congresso para excluir o caráter político das ações. Agora, nos estritos termos da lei, o terrorismo só é tipificado como tal “por razões de xenofobia, discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia e religião”. E de forma ainda mais enfática, o parágrafo 2º do art. 2º ressalva: “O disposto neste artigo não se aplica à conduta individual ou coletiva de pessoas em manifestações políticas, movimentos sociais, sindicais, religiosos, de classe ou de categoria profissional, direcionados por propósitos sociais ou reivindicatórios, visando a contestar, criticar, protestar ou apoiar, com o objetivo de defender direitos, garantias e liberdades constitucionais, sem prejuízo da tipificação penal contida em lei.” Dessa forma, somente em linguagem popular pode se falar em “atos terroristas” para aqueles praticados no dia 8 de janeiro em Brasília, porém não sob a ótica da linguagem técnico-jurídica.

     Todavia, o caminho para a responsabilização dos envolvidos está na aplicação da Lei nº 14.197/2021, também conhecida como Lei do Estado Democrático de Direito, que veio para substituir a Lei de Segurança Nacional, do recente período militar (1964-1985). São aplicáveis, portanto, ao caso em análise os artigos 359-L e 359-M da referida lei que tipifica, nos seguintes termos, as ações antidemocráticas: “Tentar, com emprego de violência ou grave ameaça, abolir o Estado Democrático de Direito, impedindo ou restringindo o exercício dos poderes constitucionais”; e, “Tentar depor, por meio de violência ou grave ameaça, o governo legitimamente constituído”. À luz da legislação, os atos criminosos praticados pelos vândalos em Brasília, foram de caráter antidemocrático, passíveis de serem sancionados pelas penas previstas nos artigos 359-L e 359-M do Código Penal.

     LULA E OS MILITARES: RELAÇÕES CONFLITUOSAS

     Situação mais complexa, difícil e tormentosa, contudo, é e será a relação do governo Lula com as Forças Armadas. Não que haja qualquer possibilidade de intervenção militar, golpe de estado ou coisa do gênero. Probabilidade zero nesse campo, especialmente em face do amplo apoio já manifestado pelas principais potências do mundo, ao governo petista, vindo de todos os quadrantes geopolíticos do planeta. No entanto, a entrevista concedida pelo presidente Lula aos jornalistas, em Brasília, na qual ele revela um elevado grau de desconfiança do governo federal nas Forças Armadas, já assinala, para o futuro, consequências políticas de vários matizes, caso não ocorra antes uma distensão nesse turbulento território.

     É preciso entender, em primeiro plano, o papel constitucional das Forças Armadas. Assim, pela Lei Complementar nº 97/1999, que dispõe sobre as normas gerais para a organização, o preparo e o emprego das Forças Armadas, elas submetem-se à autoridade suprema do Presidente da República e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem. Além disso, há as atribuições subsidiárias explicitadas na referida Lei Complementar. O Ministro de Estado da Defesa exerce a direção superior das Forças Armadas, assessorado pelo Conselho Militar. Vale ressaltar que o emprego das Forças Armadas na defesa da Pátria e na garantia dos poderes constitucionais, da lei e da ordem, e na participação em operações de paz, é de responsabilidade do presidente da República, que determinará ao ministro de Estado da Defesa a ativação de órgãos operacionais, conforme expressa cláusula legal. Agem, assim, as Forças Armadas, sob determinação exclusiva do presidente, via ministro da Defesa. Não podem, portanto, sair dos quartéis sem essa convocação institucional.

     A OMISSÃO FEDERAL

     Como é notório, nem o presidente Lula, tampouco o ministro da Defesa, mesmo avisados do que se avizinhava, acionaram as forças federais para a garantia da lei e da ordem (GLO), e esta foi uma das perguntas feita pelos jornalistas durante o café no Planalto com o presidente. Desconfiado dos militares, como fez questão de mencionar,  Lula da Silva preferiu  confiar na PM do governador Ibaneis. Conforme já foi revelado, as forças federais de segurança sequer estavam em prontidão naquele modorrento domingo à tarde na Capital do Brasil. Tal postura política, digamos assim, não foi das melhores. Tudo o que ocorreu, em nossa particular análise, poderia ter sido evitado. Faltaram providências e sobraram bodes expiatórios, de preferência buscados no quintal político dos adversários…

     Resta, agora, em nome da unidade nacional e da plena e desejável governabilidade, que os responsáveis pela ação e omissão sejam responsabilizados, com a inafastável observância do devido processo legal, e que a Justiça siga os seus cânones jurídicos sem sofrer a tentação de produzir vingança, como parece desejar alguns setores da mídia impressa e televisiva, que jogam seus holofotes em togados proeminentes sempre em busca de uma declaração “bombástica” deste ou daquele setor do judiciário. Como aconselha o adágio popular, “vamos devagar com o andor…”, pois o momento exige mais a ação de bombeiros do que de incendiários. Já bastam os malucos com “língua de fogo” a dominar os subterrâneos da desinformação. Se não há qualquer possibilidade – nem ontem e nem hoje – para que tentativas de atos golpistas prosperem, é preciso estar atento, porém, para outras ações destrutivas como são os atos clandestinos de sabotagem, promovidos por incendiários de plantão, que agem de forma sub-reptícia, e que  são extremamente perigosos  à estabilidade democrática.  

      CADA PRESIDENTE COM O SEU GENERAL

      Nesse passo, e bem ponderados os fatos, deve o governo restabelecer, com urgência, a relação de confiança com as Forças Armadas. Por sinal, nem se sabe ao certo o porquê desse receio. São elas insubstituíveis como força e como instituição na defesa da Pátria e, em última análise, na garantia da ordem interna. Possuem elevado conceito junto à população brasileira, o que lhes confere apreciado grau de credibilidade e prestígio. Feridas abertas não contribuem para a saúde do tecido social. O governo não pode se afastar das Forças Armadas deixando-as de braços cruzados diante do que ainda poderá vir,  promovendo o seu isolamento.  Em seus momentos de dificuldades institucionais, o presidente Figueiredo (o último do período militar), ameaçava chamar o Pires (general Walter Pires, comandante do Exército); Com Sarney no cargo, vez ou outra ele se referia ao Pires (mas a outro Pires, o Leônidas Pires Gonçalves, ministro do Exército no seu governo); Temer chegou a recorrer ao seu “Pires” (o general Eduardo Villas Boas, comandante do Exército), para o desbloqueio de estradas. Já Lula pode ter na figura do ministro do STF, Alexandre Moraes o seu general de estimação: conduz inquérito contra os acusados de ataque à Democracia, aplica multas e restrições de direito, enfim, acusa, julga e pune os réus. O novo governo cedo descobriu que a caneta de Moraes tem mais poder de fogo e eficácia que mil balas de canhão e que está disposto a acioná-lo via AGU ou MPF sempre que se sentir ameaçado. Vemos, nesses movimentos, que o eixo de poder se deslocou com a exacerbação do ativismo judicial, fenômeno que no Brasil ganhou gigantescas proporções ao apropriar-se de substancial parcela da condução política do Estado em detrimento das funções constitucionais do Executivo.  

     E essa oscilação do governo em direção a outro poder, no caso o STF, para resolver suas questões de segurança, distanciando-se das Forças Armadas, poderá torná-lo refém de outras intentonas e com isso produzir ainda mais incertezas, apreensões, desordem e insegurança institucional na sociedade brasileira.

_______________________________________________________________________________

Sergio Victor Tamer é advogado, professor universitário, mestre em Direito Público pela UFPe, doutor em Direito Constitucional pela Universidade de Salamanca e pós doutor em Segurança Pública pela Universidade Portucalense. É autor de várias obras jurídicas e presidente do CECGP – Centro de Estudos Constitucionais e de Gestão Pública.