Os poderes não são independentes, como equivocadamente muitos apregoam, mas sim interdependentes, pois não existem poderes isolados em dependências incomunicáveis, o que fragmentaria o Estado, quebrando a sua incontestável unidade.
Por Sergio Tamer
O argumento, propagado em tom de indignação, por parte de alguns ministros do STF, de que o Tribunal é “independente” e de que “essa casa não é composta por covardes” – demonstra uma grande falta de civilidade, principalmente por se tratar de uma reação despropositada contra o Senado da República. Outros foram mais além e falaram até em “traição rasteira”, assacadilha, convenhamos, nada republicana. Na realidade a PEC 8/2021 (proposta de emenda à Constituição), aprovada em dois turnos, veta decisões monocráticas que suspendam a eficácia de leis ou atos dos presidentes dos demais Poderes. O Senado busca corrigir, assim, um grave defeito institucional, atualmente inserido no Regimento Interno do STF e, para tanto, utilizou-se de sua prerrogativa constitucional. Os ministros do STF não possuem poder absoluto e a atuação do Tribunal deve seguir concertada com os demais poderes. No caso brasileiro, porém, esse empoderamento excessivo decorre, há mais de uma década, dos escândalos de corrupção que bateram às portas do Legislativo e do Executivo, deixando-os com baixíssima legitimidade perante a opinião pública. Do mensalão ao petrolão, e passando por outros desvãos da República, a política partidária virou um “salve-se quem puder”, e esse filme todos conhecemos. O ativismo judicial, antes restrito aos direitos fundamentais, aproveitou-se desse vácuo de poder e fez finca pé nas questões políticas, antes afeta à exclusiva competência dos demais poderes. E para agravar ainda mais a questão, temos a conhecida fórmula: 11 ministros, 11 Supremos… Esse exacerbado protagonismo político-institucional provocou indesejáveis efeitos colaterais e, pelo visto, deixou sequelas no tecido constitucional brasileiro.
Curioso é que a ideia da separação de poderes surgiu para delimitar o poder e garantir as liberdades, mas essa receita política não pode ser aplicada de forma rígida e inadequada às circunstâncias. A aplicação do modelo nos EUA, por exemplo, atenuando a independência em benefício da harmonia, estabeleceu um sistema de “freios e contrapesos”. Os conflitos existem, mas foram minimizados, o que impediu a preponderância de um poder sobre o outro.[1] Mas o clima político no Brasil, desde os albores da República, sempre foi profundamente oposto ao americano, o que levou Oswaldo Trigueiro a dizer que o nosso sistema tripartite de poder era “uma abstração insuscetível de transformar-se em realidade”.[2] Mas atualmente, vivenciamos o pós 1988, um outro momento de nossa história, ou seja, o STF passou a ter prerrogativas de função até então inexistentes, como orçamento próprio e uso da força policial. Aos poucos, foi assumindo um crescente papel político, impondo seus posicionamentos e norteando as questões jurídico-políticas por meio do seu controle concentrado e difuso (teoria da abstrativização) de constitucionalidade. Além disso, utilizando-se de diversas teorias estrangeiras, passou a interpretar o texto constitucional de forma surpreendente, inclusive suprindo eventual omissão legislativa, o que tem causado manifesta insegurança jurídica no país.
Os poderes não são independentes, como equivocadamente muitos apregoam, mas sim interdependentes, pois não existem poderes isolados em dependências incomunicáveis, o que fragmentaria o Estado, quebrando a sua incontestável unidade. Mas a questão, desafiadora, refere-se ao exercício do poder, sem prejuízo da eficiência do Estado, com plena garantia das liberdades e dos direitos fundamentais. Contudo, a falta de contenção entre os poderes, sobretudo em relação ao STF, haja vista os melindres de alguns ministros neste recente episódio da votação do Senado, nos dá bem a dimensão de que a cultura política que ainda vivenciamos emperra sobremaneira o desenvolvimento de nosso sistema democrático.
SERGIO VICTOR TAMER é advogado e professor, doutor em Direito Constitucional pela Universidade de Salamanca; presidente do Centro de Estudos Constitucionais e de Gestão Pública – CECGP e da Academia Maranhense de Cultura Jurídica, Social e Política
[1] Vide o meu “Fundamentos do Estado Democrático e a Hipertrofia do Executivo no Brasil” – Editora Fabris, RS, 2002, Tamer, Sergio Victor, p. 168
[2] Idem, p. 186