Cooperação entre entes federados, Poderes e órgãos independentes é bem-vinda no aperfeiçoamento da gestão pública.
Em épocas de escassez de recursos, como a que está sendo enfrentada há muitos anos, em que se vê necessidade de redução de despesas que atingem políticas públicas fundamentais para o desenvolvimento e bem-estar da população, como saúde, educação, segurança, previdência social e tantas outras, é de estarrecer constatar recursos públicos sendo largamente desperdiçados.
Mais ainda saber que por razões já identificadas, mapeadas e conhecidas – mas que, inexplicavelmente, não se consegue resolver. E, com isso, os escassos recursos públicos continuam escoando pelo ralo, ao mesmo tempo que faltam em áreas essenciais.
Recentemente foi lançado o “Destrava – Programa Integrado para Retomada de Obras”, por meio do Comitê Executivo Nacional para Apoio à Solução das Obras Paralisadas, formado pelo CNJ (Conselho Nacional de Justiça), Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), Tribunal de Contas da União (TCU), Associação dos Membros do Tribunais de Contas do Brasil (Atricon), Ministério da Infraestrutura, Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), Advocacia- Geral da União (AGU) e Controladoria Geral da União (CGU).[1].
Iniciativa que não se mostra isolada, pelo contrário, evidencia uma tendência da administração pública. O Ministério Público Federal, poucos dias após, celebrou acordo de cooperação técnica com a União, por meio dos Ministérios da Infraestrutura e da Economia, com o propósito de acompanhar e fiscalizar as obras, e com isso colaborar para que sejam melhor conduzidas, mitigando-se os motivos que levam às paralisações.[2] E decorre de evolução dos trabalhos da administração pública, especialmente do Tribunal de Contas da União, que em recente trabalho, fez constar recomendação para a criação de um fórum permanente, com múltiplos atores, para atuar nessa questão.[3]
Embora as obras públicas estejam regra geral a cargo do Poder Executivo, os demais Poderes e órgãos independentes têm sua parcela de responsabilidade na solução do problema.
Não apenas pelo fato de que administram obras próprias, mas também porque, no exercício das respectivas funções constitucionais, interferem muitas vezes na execução das obras em toda a administração pública. Sendo assim, devem tomar ciência e participar da busca de soluções. A cooperação entre entes federados, poderes e órgãos independentes é sempre bem-vinda no aperfeiçoamento da gestão pública.
A iniciativa de “destravar” as obras paralisadas decorre de constatações já feitas, especialmente pela atuação dos tribunais de contas, das inúmeras obras públicas paradas ou abandonadas, com destaque para o trabalho feito pelo Tribunal de Contas da União, que resultou no já mencionado Acórdão 1079/2019.
Foi constatado, no âmbito da União, o incrível número de mais de 14.000 obras paradas – e nessa conta não entram as obras a cargo do Poder Judiciário da União[4], o que corresponde a cerca de um terço das obras em andamento, e que já importaram em gastos de mais de 10 bilhões de reais, sem que a população tenha recebido o correspondente benefício. “Números assustadores”, para reproduzir as palavras do Min. Vital do Rêgo, relator da auditoria.[5]
E a situação não difere em muitos outros entes da Federação. O Tribunal de Contas do Estado de São Paulo recentemente desenvolveu um mapa virtual de acesso público[6], tem mantido um acompanhamento das obras paradas, e em levantamento de 2019 encontrou cerca de 1.500 empreendimentos nessa situação, com contratos cujos valores ultrapassam 40 bilhões de reais, já tendo sido pagos mais de 14 bilhões – e a maior parte na área da educação[7]; no Rio de Janeiro, em torno de 1.300 obras paradas, entre as quais o conhecido caso de Angra 3, sem andamento desde 2015.[8]
Um problema que, como se sabe, não é novo. “Mazelas relacionadas à execução de obras públicas ocupam, há muito, lugar de destaque na lista de disfuncionalidades do Estado brasileiro”, destacou a Folha de S. Paulo em editorial recente[9].
A infraestrutura é fundamental para o desenvolvimento do país, está em praticamente todas as áreas, dela dependem não só o funcionamento da economia do país, mas também saúde, educação e tantas outras de interesse social direto.
Vê-se pelo lançamento do citado programa que inicialmente se pretende dar atenção às creches, evidenciando o forte caráter social das obras públicas.[10] Não há como aceitar a manter essa situação, cuja solução é mais do que urgente, sendo válidas todas as medidas que possam colaborar para melhorar a gestão do setor.
Os tribunais de contas, órgãos de estatura constitucional cuja função precípua é exercida no âmbito da fiscalização financeira e orçamentária, tem atuação voltada principalmente a intervenções a posteriori, analisando prestações de contas e sobre elas emitindo pareceres e julgamentos. De longa data sabe-se que esta forma de ação peca muitas vezes pela ineficácia, pois, no mais das vezes, o prejuízo já está consumado quando é constatado, e difícil a reversão da situação e recuperação dos prejuízos eventualmente encontrados. Por essa razão que os tribunais de contas vêm intensificando e concentrando esforços em atuar preventivamente, agindo a priori ou de forma concomitante à realização dos gastos, com os muitos instrumentos de que dispõe para tanto, o que permite evitar prejuízos aos cofres públicos.
A atuação nesse campo das obras paralisadas não é nova no âmbito da atuação dos órgãos de fiscalização, registrando o TCU trabalhos que remontam há pelo menos 20 anos[11], e vem se aperfeiçoando e intensificando. Mesmo porque, dado o prejuízo, que não é somente financeiro, mas também e principalmente social, e sendo função zelar pelo bom uso dos recursos públicos, é um dever colaborar para mitigar essa situação, que tem atingido patamares por demais elevados. Ressalte-se ainda que as leis de diretrizes orçamentárias contêm anexo com a indicação de obras com indícios de irregularidades graves, para os fins de não lhe serem mais destinados recursos, e os tribunais de contas devem agir para identificá-las.
Além de colaborar para a observância do art. 45 da Lei de Responsabilidade Fiscal, que exige a adequação dos projetos para que possam contemplados com dotações orçamentárias.
Estudos como o citado relatório de auditoria têm importante função de identificar problemas, sendo extremamente útil para orientar a administração pública a corrigir desvios e aperfeiçoar a gestão.
Uma questão grave e complexa como essa, evidentemente tem múltiplas causas[12], várias das quais foram apontadas pelo TCU, tais como contratação com projeto básico deficiente, insuficiência de recursos financeiros de contrapartida e dificuldade na gestão de recursos recebidos. O mapeamento permitiu identificar e quantificar as causas, sendo quase metade delas (47%) por razões técnicas, 23% por abandono pela empresa, 10% por razões orçamentário-financeiras. Interessante notar que desfaz alguns mitos, como o de que as paralisações decorrem da ação dos órgãos de controle ou judiciais (3% cada), ou ainda questões ambientais (1%) (AC 1079/2019).
Identificaram-se muitos dos principais problemas, e também as possíveis soluções.
Há, por exemplo, muitos contratos aprovados com projetos básicos deficientes, o que obviamente tende a resultar em problemas no decorrer da execução das obras, como equívocos na previsão do tempo necessário para a execução. Ou falhas na previsão dos recursos financeiros suficientes para a consecução das obras, especialmente no que tange às contrapartidas exigidas dos entes federados recebedores dos recursos transferidos, que também participam com aportes, resultante muitas vezes da equivocada avaliação da capacidade financeira do ente.
Muitas dessas falhas decorrem da falta de profissionais qualificados nos municípios, aos quais falta capacidade técnica para gerenciar a obra, o que pode ser solucionado, ou melhorado, como constatado pelo TCU, com a implementação de consórcios intermunicipais, a fim de que seja possível unir esforços para beneficiar a todos.
O aumento da transparência, com a divulgação de informações mais abrangentes, precisas e qualificadas, por meio de sistemas informatizados, como o novo Portal de Transferências Voluntárias, rede Siconv, aplicativos como o Siconv Cidadão, Siconv Fiscalização e Siconv Convenente, trazem ferramentas e funcionalidades que aperfeiçoam a gestão dos recursos e tornam mais transparentes os atos relacionados ao financiamento de obras pública, além de colaborar para o controle social.
O sempre recomendado registro e sistematização de boas práticas e casos de sucesso, instrumento extremamente útil em qualquer área da administração pública, é outra medida importante para aumentar a eficiência, e simples de ser implementada.
Constatou-se ainda que muitos órgãos dispõem de sistemas próprios de informações sobre o financiamento e gestão das obras, sem uniformidade, tornando necessário uma maior integração dos sistemas, o que colabora também para facilitar as relações entre os Poderes Executivo e Legislativo nos processos de alocação e execução orçamentárias, evitando desalinhamentos que prejudicam o fluxo financeiro e levam à paralisações desnecessárias. Medida especialmente valiosa neste momento, em que as novas disposições constitucionais acerca do orçamento impositivo tendem a fomentar o uso das transferências intergovernamentais.
Em suma, são necessárias muitas medidas que configuram aperfeiçoamentos da gestão pública em seus vários aspectos, o que não é nenhuma novidade nem segredo, mas há décadas se tenta e os avanços têm sido lentos. É preciso avançar mais rapidamente.
As soluções estão aí. Passou da hora de implementá-las. O carnaval já acabou. Mãos à obra! Ou melhor, mãos às obras – que são muitas!
—————————————–
[1] Ministro Dias Toffoli lança programa para retomada de obras paralisadas no país. In Portal STF, 17.2.2020 (portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=437274&ori=1)
[2] “Nossa pretensão não é gerir, não é legislar e nem julgar. É acompanhar e fiscalizar as políticas públicas durante todo o seu curso”. A afirmação é do procurador-geral da República, Augusto Aras e foi feita na noite desta quarta-feira (19), durante solenidade de assinatura de acordo de cooperação técnica entre o Ministério Público Federal (MPF) e a União, por meio dos os ministérios da Infraestrutura e da Economia. Um desdobramento do protocolo de entendimentos estabelecido em março de 2019 entre os órgãos, a medida tem o objetivo de viabilizar ações conjuntas nos setores portuário e de transportes ferroviário, rodoviário, aquaviário, aeroportuário e aeroviário. (PGR assina acordo de cooperação com ministérios da Economia e da Infraestrutura – http://www.mpf.mp.br/pgr/noticias-pgr/pgr-assina-acordo-de-cooperacao-com-ministerios-da-economia-e-da-infraestrutura, em 19.2.2020)
[3] Relatório de Auditoria. Diagnóstico das obras paralisadas. Identificação das principais causas e das oportunidades de melhoria. Recomendações. Monitoramento. Ac 1079/2019, Rel. Min. Vital do Rêgo, Plenário, sessão de 15.5.2019.
[4] São consideradas paradas as obras que estão sem desbloqueio há mais de três meses consecutivos.
[5] Mais de um terço das obras pelo país estão paralisadas, informa TCU, in JOTA, 15.5.2019.
[6] Tribunal desenvolve mapa virtual das obras paralisadas e atrasadas no Estado, in Site do TCE-SP, 4.4.2019.
[7] SP tem 1.412 obras de prefeituras e estado atrasadas ou paradas, diz TCE, in Folha de S. Paulo, 18.2.2020.
[8] Onde estão as 14 mil obras inacabadas do Brasil (e como destravá-las), in Exame, 18.2.2020.
[9] Paralisia Paulista, Folha de S. Paulo, 20.2.2020, p. A2.
[10] TCU quer destravar obras paralisadas e deve começar por 1,3 mil creches, in Correio Braziliense, 12.12.2019.
[11] Relatório Final da Comissão de Obras Inacabadas de 1995; Levantamento para elaborar diagnóstico sobre situação de obras inacabadas (TC 012.667-2006-4, em 2006); TCU – Ac 1.188/2007; TCU – Ac 617/2010; TCU – Ac 148/2014; TCU – Ac 2.810/2016; TCU – Ac 2.451/2017.
[12] “As causas desse fenômeno são múltiplas e atávicas: planejamento inepto, entraves burocráticos, distribuição intermitente de recursos, gestão deficiente e, não menos importante, corrupção” (Paralisia Paulista, Folha de S. Paulo, 20.2.2020, p. A2).
JOSÉ MAURICIO CONTI – Professor de Direito Financeiro da Faculdade de Direito da USP. Mestre, Doutor e Livre-docente em Direito Financeiro pela USP.