CECGP

CENTRO DE ESTUDOS CONSTITUCIONAIS E DE GESTÃO PÚBLICA

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As evoluções tecnológicas e os paradoxos do direito autoral

Publicado por Luis Fernando Prado Chaves em JusBrasil

Nas últimas décadas, a sociedade mundial vem passando por um fenômeno de modernização das comunicações, que a cada dia se tornam mais instantâneas. Ademais, é raro um lar, atualmente, em que não se tenha um computador com acesso a Internet.

A ideia é que o público em geral se liberte gradativamente dos meios tradicionais de consumir a cultura do entretenimento (e.g. Youtube, Netflix). O comportamento de adequar os horários de nossas atividades cotidianas à programação das distribuidoras do conteúdo cultural e de entretenimento vai parecer cada vez mais obsoleto.

Além disso, as novas tecnologias, cada vez mais acessíveis, representam uma democratização das mídias. Ora, é muito mais fácil produzir e divulgar, ainda que de forma amadora, um texto, um vídeo, uma imagem e até mesmo uma música hoje, em 2013, que há 20 anos, por exemplo.

Nesse sentido, pode-se dizer que vivemos um processo de democratização da criatividade, o qual permite a transposição de barreiras de acesso ao mercado da criação. Hoje, o público deixa de ser apenas alvo do processo criativo para, muitas vezes, tornar-se agente criador.

As grandes empresas do ramo tecnológico, cientes de que cada vez mais os indivíduos que antes eram considerados meramente receptores da obra criada passam a ser agentes criadores, investem significativamente no mercado da criatividade digital. A gigante Apple, por exemplo, no ano de 2001, chegou a adotar como seu slogan a frase “rip, mix and burn”[1], fato que representa um reconhecimento de que seus consumidores buscavam produtos que interferissem diretamente no processo criativo.

Por outro lado, as empresa tradicionais do ramo das gravadoras, produtoras e editoras não se mostraram receptivas à imensa gama de possibilidades de alteração, distribuição e criação de conteúdo artístico, literal e musical trazidas pelas recém introduzidas tecnologias. Nas palavras da autora Alessandra Tridente[2], “empresas tradicionais apresentam uma tendência a não abraçar imediatamente novas tecnologias e novos mercados, mas estão sempre propensas a lutar contra eles, tentando preservar seu modo de fazer negócio convencional”.

Dessa forma, no início do presente milênio, muitas empresas tradicionais do ramo das produções musicais e cinematográficas tentaram combater no âmbito judicial as transposições aos direitos autorais possibilitadas pelas novas tecnologias.

O sistema peer-to-peer, de compartilhamento de arquivos entre usuários pela Internet, pareceu ser, à primeira vista, o grande vilão das grandes gravadoras e produtoras, mesmo porque era imune ao controle inibitório. Seu funcionamento se dá pelo intercâmbio de dados e arquivos diretamente entre usuários, sem que exista um controle central, razão pela qual é praticamente impossível proibi-lo ou inibi-lo.

Após várias demandas ajuizadas[3] (muitas delas infrutíferas), as empresas começaram a perceber que, no âmbito do marketing, poderia não ser interessante a perseguição judicial em face dos supostos violadores dos direitos autorais. Em outras palavras, as gravadoras, produtoras e editoras batalhavam judicialmente com indivíduos que compunham o próprio público alvo destas. Os lucros ou benefícios de se travar uma batalha judicial contra um jovem ou uma dona de casa, por exemplo, que tenha obtido de maneira ilegal (violando-se os direitos autorais) determinada obra não compensaria a imagem negativa que afetaria a empresa perante seus próprios consumidores.

Em que pese a ocorrência dessa referida mudança de comportamento das grandes empresas do ramo do entretenimento, decorrente de mera estratégia de marketing, as normas de direito autoral continuam a coibir severamente qualquer ação que possa representar uma violação aos direitos patrimoniais e morais do autor, bem como os direitos conexos.

Pode-se dizer que os fatores que ameaçam a liberdade da sociedade da informação, da Internet e da tecnologia digital atualmente são basicamente quatro: a lei, as normas sociais, o mercado e a arquitetura ou código (“estrutura inerente de como as coisas são construídas e ocorrem”[4]). Na atual conjuntura da sociedade da informação em rede, a arquitetura torna-se um dos fatores reguladores mais eficazes, pois permite o fechamento do conteúdo da informação transmitida na Internet, limitando o acesso a determinada obra ou conteúdo digital a usuários específicos por certo tempo. Ademais, ressalte-se que enquanto a regulação efetivada pela lei, normas sociais e mercado se dá a posteriori, a regulação arquitetônica acontece a priori.

Observe-se que, em muitos casos, a própria legislação autoral chega a representar uma ameaça ao princípio da livre concorrência. Ainda segundo Alessandra Tridente, “o direito autoral pode, assim, obstaculizar a livre concorrência, conferindo a certos agentes de mercado posições monopolísticas intoleráveis”[5].

Ademais, enquanto as novas tecnologias apresentam vastas possibilidades de criação, compartilhamento e modificação de obras artísticas, literais e musicais, as normas de direito autoral, paradoxalmente, continuam coibindo severamente qualquer possível afronta aos direitos de autor e/ou aos direitos conexos.
Dessa forma, as evoluções tecnológicas representam, a depender do ponto de vista da reflexão, ora instrumentos catalizadores do processo criativo, ora meios que viabilizam e até estimulam a ilegalidade.

Ainda sobre as questões paradoxais, é de se refletir se o direito autoral serve como instrumento de estímulo à liberdade de expressão, vez que garante ao autor de determinada obra que seu trabalho não será alterado sem sua autorização, dando-lhe direito também a auferir os benefícios econômicos e morais de sua criação, ou se representa, muitas vezes, um verdadeiro meio de censura, ao vedar, em regra, os trabalhos derivados, bem como as cópias e reproduções de uma obra.

Não bastasse, o direito autoral possui ainda um gritante paradoxo em sua própria estrutura. Isso porque os conceitos do ineditismo e da originalidade de uma obra se tornam imprecisos na medida em que esta, como elemento de comunicação entre o autor e o público, depende de significados e símbolos já existentes. Dessa forma, denota-se a dificuldade em se classificar uma obra como original e inédita, pois, mesmo as obras que assim são consideradas, certamente levam em sua composição elementos estruturais de outras pré-existentes.

E há mais: esses elementos pré-existentes, formadores da comunicação, podem, ainda, estar inacessíveis ao autor justamente graças às próprias normas de direito autoral, que protegem a exclusividade de exploração de tais elementos pelo autor antecessor[6].

Nesse contexto, ressalte-se também que, em regra, as obras derivadas são proibidas pelas normas de direito autoral, salvo se há autorização por parte do autor (tido por) original. Entretanto, atualmente vivemos em um mundo que nos apresenta formas revolucionárias de transmissão da informação, no qual limites territoriais e barreiras geográficas entre países são praticamente inexistentes.

Por exemplo, pela Internet, em poucos milésimos de segundo a partir de sua exteriorização, uma música recém-criada por um compositor em uma pequena cidade da China (autor original) pode chegar aos ouvidos de um DJ de certo renome, residente em algum país do continente americano, que, em um especial momento de inspiração, decide elaborar um remix ou inédita versão desta, com enorme potencial comercial, fato que poderia, inclusive, alavancar a carreira do compositor da obra original. Entretanto, imaginemos que, por uma infelicidade do destino, a obra musical chegue ao DJ de uma maneira que não se permita a localização e o contato com o autor original. Pelas normas de direito autoral, o DJ, nesse caso, nada pode fazer com a obra original, vez que não possui autorização para tanto.

Essa inibição do processo criativo ocorre porque, em que pese o fato das normas autorais exigirem a autorização para produção da obra derivada (no caso, o remix), inexiste um órgão (internacional) responsável pela manutenção de uma relação cadastral das obras (musicais) existentes e seus respectivos autores. Dessa forma, muitas vezes se torna impossível a identificação de um autor, bem como impraticável a comunicação entre agentes do processo criativo para que se obtenha uma autorização de elaboração de uma obra derivada.

Ainda sobre o paradoxo estrutural do direito autoral, faz-se necessário mencionar outro aspecto importante a respeito do elo entre autor, obra e interesse público. Se pensado o direito autoral como instrumento de proteção da titularidade privativa do direito do autor sobre sua criação, como sendo esta fruto exclusivo do seu trabalho individual, sem interferências externas, chega-se à conclusão de que é imperiosa a proteção absoluta do autor, nos termos e limites da lei. Por outro lado, se resulta entendido que a criação (obra intelectual) é, em verdade, fruto de inspiração advinda da sociedade, bem como que não há trabalho cultural/criativo sem influências de toda a coletividade sobre o autor, conclui-se pela impossibilidade de atribuição de um caráter absoluto ao direito autoral.

Não bastasse, são as rígidas normas de direito autoral que fazem com que qualquer cidadão comum almeje sua violação. Até as pessoas sem má-intenção se tornam “piratas” em um mundo onde as regras (autorais) parecem, a par de paradoxais, absurdas[7].

Percebe-se que, por sua própria estrutura paradoxal, o direito autoral, a depender da dosagem em que se aplica, pode passar de remédio a veneno no que se refere à produção de bens intelectuais[8].

[1] Tradução livre: copie, misture, grave.

[2] TRIDENTE, Alessandra. Direito Autoral: Paradoxos e Contribuições para a Revisão da Tecnologia Jurídica no Século XXI. Rio de Janeiro: Elsevier, 2008, p. 80

[3] No ano de 2005, a Recording Industry Association of America (RIAA) já havia processado mais de doze mil norte-americanos por violação aosdireitos autoraiss ao realizar downloads ilegais de músicas na Internet. (GOLDSMITH, Jack e WU, Tim. Who controls the internet? Illusions of a borderless world. New York: Oxford Press, 2006, p.109-115)

[4] LEMOS, Ronaldo. Direito, Tecnologia e Cultura, Rio de Janeiro: FGV, 2005, p. 21

[5] TRIDENTE, Alessandra. Direito Autoral: Paradoxos e Contribuições para a Revisão da Tecnologia Jurídica no Século XXI. Rio de Janeiro: Elsevier, 2008, p. 83

[6] Ibid., p. 93

[7]  cf. LESSIG, Lawrence. REMIX: Making Art and Commerce Thrive in the Hybrid Economy. Estados Unidos: The Penguin Pres, 2008, p. 44

[8]  cf. TRIDENTE, Alessandra. Op. Cit., p. 105.

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