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Centro de Estudos Constitucionais e de Gestão Pública

Os tribunais de contas e sua função de controle externo no Brasil

Publicado por Michel Cury Neto em JusBrasil

A fiscalização dos atos de determinado órgão, por outro distinto dele, é tradição do nosso direito constitucional sendo que esse controle, mediante ação fiscalizadora, é exercido pelo Poder Legislativo, que o faz com o auxílio do Tribunal de Contas.

Antonio Roque Citadini salienta que:

(…) nos dias atuais, não existe país democrático sem um órgão de  controle com a missão de fiscalizar a boa gestão do dinheiro público.

São exceções apenas os regime ditatoriais – nos quais o que os dirigentes menos querem e menos aceitam é o controle de seus atos – e os Estados de forte atraso na organização política e econômica.[1] 

Historicamente o Tribunal de Contas surgiu no Brasil por iniciativa do então Ministro da Fazenda Ruy Barbosa, em 7 de novembro de 1890, mediante, o Decreto nº9666-A sendo atualmente entidade prevista no ordenamento jurídico em âmbito constitucional, com atribuições fiscalizatórias e controladoras da atividade administrativa.

Inicialmente faremos uma breve explanação sobre o surgimento e a evolução das competências constitucionais do Tribunal de Contas no ordenamento nacional, a fim de que seja possível situar adequadamente sua competência fiscalizatória, ocasião em que também situaremos a natureza dessa competência, desempenhada no exercício de função controladora. 

Só é possível afirmar que um Estado é de Direito se existirem instituições e mecanismos hábeis para garantir sua submissão à lei, de modo que, no exercício de  suas funções, a Administração Pública se sujeita ao controle externo por parte dos poderes Legislativo e Judiciário, além de exercer, ela mesma controle sobre seus próprios atos.

No Brasil, a tentativa de instituir Tribunal de Contas surgiu pela primeira vez em 1826, por idéia dos Senadores do Império, Visconde de Barbacena e José Inácio Borges. Não obstante as tentativas, o Império não teve seu Tribunal de Contas     ideia que só ganhou força com a Proclamação da   República, em 1889.

Dessa forma, durante o governo de transição da Monarquia para a República, foi editado o Decreto 966-A, de 7 de novembro de 1890, da lavra do então  Ministro da Fazenda Rui Barbosa, criando o Tribunal de Contas, órgão destinado ao exame, revisão e julgamento dos atos concernentes à receita e despesa pública. 

Todavia, o Tribunal de Contas institucionalizou-se somente na Carta de 1891, através do artigo 89 das Disposições Gerais, com as funções de liquidar as contas da receita e despesa e verificar a sua legalidade. Foi efetivamente instalado em 1893, quando se iniciou a fiscalização das contas públicas, de forma independente do Poder Executivo, num modelo bastante influenciado pelo francês.

Não obstante a independência garantida, sobretudo pela permanência dos Ministros nos cargos, as decisões do Tribunal passaram a ser fortemente contestadas pelo Poder Executivo, que as via como provocações e passou a reduzir suas competências através de decretos.

A Constituição Federal de 1934, com a preeminência das preocupações sociais, em ambiente inteiramente diverso daquele que deu origem à Constituição de 1891, ampliou as competências do Tribunal de Contas, inserindo-o no capítulo denominado “dos órgãos de cooperação nas atividades governamentais”, juntamente com o Ministério Público.

A Carta outorgada de 1937, segundo Paulo Bonavides e Paes de Andrade “conhecida como ‘a polaca’ por assimilar muitos elementos da vaga autoritária que assolava a Europa na época”[2] ,   inseriu o    Tribunal de Contas no âmbito do Poder Judiciário, e, em consonância com o regime político da época, conhecido como Estado Novo, restringiu a competência desta instituição, suprimindo a função de emitir parecer prévio sobre as contas do Presidente da República.

O liberalismo do Texto Constitucional de 1946, pôs fim à ditadura de Vargas, restaurou o princípio federativo, as liberdades e garantias individuais e buscou devolver ao Legislativo e ao Judiciário a dignidade e prerrogativas de um regime democrático.

Nesse contexto, o Tribunal de Contas reassumiu as competências antes suprimidas e ganhou grande prestígio dadas as suas relevantes e independentes atribuições constantes do art. 77.

A partir de 1946, as Constituições brasileiras passaram a tratar do Tribunal de Contas no capítulo destinado ao Poder Legislativo, de forma que tanto na Constituição de 1967 como na Emenda Constitucional n.º 1 de 1969, os Tribunais de Contas foram disciplinados em seção integrante do capítulo do Poder Legislativo, mas especificamente destinada à fiscalização financeira e orçamentária. Cumpre registrar que as alterações promovidas no texto de 1967 diminuíram substancialmente as prerrogativas do Tribunal de Contas, que só voltaram a ser elevadas por ocasião da promulgação da Carta de 1988.

A Constituição Federal de 1988, além de consolidar as conquistas advindas com a Carta de 1946, ampliou as atribuições do Tribunal de Contas, acrescentando a competência para exercer a fiscalização operacional, ao lado da financeira, orçamentária, contábil e patrimonial. E além do exame sob o aspecto da legalidade,  introduziu a competência para avaliar os aspectos da legitimidade e economicidade dos atos da Administração Pública direta e indireta.

Desta forma, fortalecendo o papel do controle, de limitar o exercício do poder, a Constituição Federal colocou o Tribunal de Contas ao lado do Poder Legislativo, para auxiliá-lo no controle externo, com atribuições bastante ampliadas, uma vez que a atual noção de legalidade, antes concebida por um ângulo puramente formal, em sua evolução superou essa concepção, passando-se a exigir do administrador uma conduta não apenas em consonância com a lei, mas com o Direito.

O controle externo da função administrativa prescrito pela Constituição Federal, nos artigos 70 e seguintes, compreende dois aspectos: o político, atribuído aos órgãos do Poder Legislativo, e o técnico, exercido pelo Tribunal de Contas. O controle externo também é exercido pelo Poder Judiciário.

Trata-se de órgão auxiliar do Poder Legislativo, mas não subordinado, e que tampouco integra sua estrutura. Foi criado posteriormente à teoria da separação dos poderes e não se insere nas linhas rígidas da tripartição, a exemplo do que ocorre com o Ministério Público. Todavia, não o concebemos como um dos poderes da República, mas, adotando o entendimento do Ministro Celso de Mello e Odete Medauar[3], o   consideramos um conjunto orgânico autônomo. A subordinação hierárquica a qualquer poder representaria limitação e até mesmo a inviabilidade da efetivação da função de controle em sua plenitude.

A abrangência das atribuições da Corte de Contas faz com que a matéria relacionada à natureza jurídica de seus atos encerre acirradas controvérsias em âmbito doutrinário e jurisprudencial. Respeitados juristas defendem que, com exceção dos aspectos processuais ou de manifesta ilegalidade, a decisão da Corte de Contas se impõe ao Judiciário no que concerne aos aspectos técnicos, ocorrendo um abrandamento no princípio da unidade de jurisdição, quando a própria Constituição confere a competência privativa aos Tribunais de Contas para julgar  as contas dos administradores e demais responsáveis por dinheiro, bens e valores públicos (inciso II do artigo 71 da Constituição Federal).   

De acordo com Edgard Camargo Rodrigues:

poder-se-ia cogitar se os Chefes do Executivo (Prefeitos e Governadores) e Legislativo (Presidentes das Casas Legislativas) seriam ou não passíveis de serem sancionados caso pratiquem infração. Estão investidas estas pessoas de funções simultâneas de agentes políticos e de administradores. Enquanto ajam na esfera da discricionariedade política, ao Tribunal de Contas não é dado interferir. Entretanto, no transcorrer de seus mandatos praticam eles também atos administrativos vinculados ao regimento jurídico-legal pertinente, e aqui se sujeitam à fiscalização do Tribunal de Contas e às sanções resultantes das infrações que cometerem. Enquanto administradores públicos, todos estão sujeitos ao controle da legalidade e legitimidade dos seus atos.[4]

Destaque-se disposição do parágrafo 1º do artigo 74: “Os responsáveis pelo controle interno, ao tomarem conhecimento de qualquer irregularidade ou ilegalidade dela darão ciência ao Tribunal de Contas da União, sob pena responsabilidade solidária.”

Pretende o dispositivo evitar a omissão, tão comum na esfera administrativa. O ordenador da despesa, por vezes, conhece fatos que comprometem a lisura da gestão pública, porém permanece silente, como se a coisa pública também dele não fosse. Evidencia-se, destarte, a cumplicidade por omissão.

Muito embora, na realidade brasileira, além do Tribunal de Contas da União existam, ainda, 26 Tribunais de Contas Estaduais,  4 Tribunais de Contas Estaduais dos Municípios (Goiás, Bahia, Ceará e Piauí), 1 Tribunal de Contas do Distrito Federal  e 2 Tribunais de Contas Municipais (São Paulo e Rio de Janeiro), estes últimos agora só viáveis porque preexistentes à Carta de 1988, a análise do presente trabalho enfocará o Tribunal de Contas da União, aplicando-se as conclusões, no que couber, aos demais Tribunais de Contas, pelo princípio da simetria e em sintonia com o disposto no artigo 75 da Constituição Federal, que estendeu a disciplina a ele conferida às demais Cortes de Contas, limitando-se a estabelecer o número de Conselheiros que integrarão os Tribunais de Contas estaduais. No mais, remeteu a disciplina de cada qual às Constituições dos respectivos Estados e Municípios.

1 O atual tratamento constitucional do Tribunal de Contas 

A atual Constituição Federal concedeu ao Congresso Nacional, competência para fiscalizar em sede de controle externo e pelo sistema de controle interno de cada poder, os aspectos contábeis, financeiros, orçamentários, operacionais e patrimoniais dos entes da administração direta e indireta, inclusive no tocante à legalidade, legitimidade e economicidade, aplicação das subvenções e renúncia de receitas.

No exercício dessa atividade o Congresso Nacional conta com o auxílio do Tribunal de Contas, instituição, como vimos antiga em nosso ordenamento e reconhecida pelo texto de 1988.

A atual Constituição, reconhecendo o Tribunal de Contas como órgão já existente, concedeu-lhe novas atribuições e corrigiu alguns defeitos. Vemos a existência de Tribunais de Contas no âmbito dos três entes federativos brasileiros. Conforme afirmado anteriormente, nosso estudo versará somente sobre o Tribunal de Contas da União, visto ser ente paradigmático aos demais.

Nas palavras de Valmir Campelo, “o Tribunal de Contas da União  é hoje, no ordenamento jurídico brasileiro, o ente máximo de auxílio ao Congresso Nacional no controle externo da administração pública federal. Autônomo, a ele compete fiscalizar a totalidade de atividades desenvolvidas pelo poder público, o que leva a verificar a contabilidade de receitas e despesas, a execução orçamentária, os resultados operacionais e as variações patrimoniais do Estado, sob os aspectos de legalidade, compatibilidade com o interesse público, economia, eficiência, eficácia e efetividade”.[5]

Passou a Corte de Contas a desempenhar papel fiscalizatório mais intenso do Poder Público. Nos dizeres do Professor Marcos Jordão Teixeira do Amaral Filho[6], o Tribunal de Contas, devido às suas atribuições e alcances, passou a assemelhar-se à figura de um  ombudsman no controle da administração, em seus dizeres:

Como se pode observar, os constituintes ampliaram de forma bastante nítida o rol de competências do Tribunal de Contas da União, que decididamente deixa de ser mera Corte de Contas para passar à condição de fiscal do Poder Público, com grandes semelhanças em relação às atribuições clássicas do ombudsman.

A disciplina constitucional atual do Tribunal de Contas da União encontra-se na Seção IX, do Capítulo I que alude ao Poder Legislativo, e vem intitulada como “Da fiscalização contábil, financeira e orçamentária”.

O Tribunal de Contas da União é composto por 9 Ministros e, conforme dispõe o artigo 73 § 1º da Constituição Federal, para a nomeação deverão cumprir os seguintes requisitos: ter mais de 35 e menos de 65 anos de idade, possuir idoneidade moral, reputação ilibada, notórios conhecimentos jurídicos, contábeis, econômicos e financeiros ou de administração pública e mais de 10 anos de exercício de funções ou efetiva atividade profissional que exija os conhecimentos relacionados aos assuntos mencionados.  

Aos Ministros do Tribunal de Contas da União, por força do estabelecido no § 3º do artigo 73 da Carta Magna são asseguradas as mesmas garantias, prerrogativas, impedimentos, vencimentos e vantagens dos Ministros do Superior Tribunal de Justiça.

O processo de escolha se dará de acordo com o estabelecido no § 2º do mesmo dispositivo constitucional, sendo um terço pelo Presidente da República, com aprovação do Senado Federal, escolhidos dentre os indicados em lista tríplice do Tribunal e de forma alternada entre auditores e membros do Ministério Público junto ao Tribunal de Contas, e dois terços são escolhidos pelo Congresso Nacional.

Estruturalmente, o Tribunal divide-se em duas câmaras e o plenário, cujas sessões se realizam sempre com a presença de um membro do Ministério Público junto ao Tribunal. O presidente e o vice-presidente do Tribunal são eleitos pelos seus pares para o mandato de um ano e podem ser reeleitos uma vez.

2 A natureza jurídica dos tribunais de contas

É recorrente a discussão doutrinária acerca da posição ocupada pelo Tribunal de Contas em relação aos poderes ou funções do Estado, ou seja, em relação ao Poder Legislativo, ao Poder Executivo e ao Poder Judiciário.

O que se pretende nesta parte é fixar, no âmbito da estrutura do Estado Brasileiro, onde estão situados os órgãos de controle externo da Administração Pública, ou os Tribunais de Contas.

Sobre esta temática, verificamos três posicionamentos e assim não poderia deixar de ser tendo em conta a teoria da separação dos poderes. Os que entendem que o Tribunal de Contas é órgão pertencente ao Poder Judiciário (primeira corrente). Aqueles que pretendem ser ele um órgão do Poder Executivo (segunda corrente) e, ainda, aqueles que o concebem como parte integrante do Poder Legislativo (terceira corrente).

Para a primeira corrente,que tem como expoente José Luiz de Aranha Mello, os órgãos de controle da Administração Pública pertencem ao Poder Judiciário e exercem uma parcela de sua jurisdição. Suas decisões se assemelhariam às decisões deste Poder e seus integrantes seriam equiparados aos membros da magistratura, gozando de prerrogativas, impedimentos, vencimentos, vantagens, para viabilizar o exercício de suas funções com autonomia e independência.

Nas palavras de José Luiz de Anhaia Melo, o que acabamos de afirmar: “/…/ me encanta a idéia de um Tribunal de Contas inserido na órbita do Poder Judiciário, como uma Justiça Especial, a par da eleitoral, da trabalhista, da agrária, como uma Justiça de Contas/…/.”[7]

Para Antonio Roque Citadini, “a verdade é que vincular o órgão de fiscalização da Administração ao Poder Judiciário não encontra acolhida em qualquer grande país, sendo apenas experiência em alguns países africanos (como Angola) até que o Estado organize um órgão autônomo de fiscalização.”[8]

Para os adeptos da segunda corrente, que entende que o Tribunal de Contas é órgão vinculado ao Poder Executivo, Antonio Roque Citadini rememora que “no Brasil durante o regime ditatorial de Getúlio Vargas, as funções de controle dos atos da Administração passa RAM para órgãos vinculados à Fazenda Pública. Seus membros eram indicados pelo chefe do Poder Executivo e suas competências eram bastante restritas, até porque numa ditadura o poder é todo do Executivo. Em Portugal, durante o período Salazarista, embora o Tribunal de Contas se mantivesse atuante, seus membros eram designados pelo Ministro das Finanças.”[9]

Relevante observar que esses órgãos de controle iniciam como auditorias internas das áreas de contabilidade e finanças do Estado, evoluindo para um órgão autônomo. Daí porque de maneira errônea há os que confundem este órgão de controle externo quando vinculados ao Poder Executivo com o departamento de auditoria interna da administração.

Há, ainda, a terceira corrente preconizada por aqueles que entendem que os órgãos de controle externo vinculam-se ao Poder Legislativo.

Dentre os expoentes desta posição encontra-se Michel Temer,quando aduz que “o Tribunal de Contas é parte componente do Poder Legislativo, na qualidade de órgão auxiliar, e os atos que pratica são de natureza administrativa”.[10]

Para os expoentes deste entendimento haverá formas diversas de vinculação ao parlamento, mas sempre a vinculação ocorrerá em relação ao Poder Legislativo.

Tratando destes órgãos que se vinculam ao Poder Legislativo, mas mantém sua autonomia Antonio Roque Citadini[11] traz o exemplo do General Accounting Office – GAO[12] nos Estados Unidos e do National Audit Office – NAO[13] na Inglaterra.

Cita ainda o exemplo do Canadá, no qual “o auditor geral dispõe de ampla autonomia administrativa e de competência. Seu mandato é de 10 anos sendo que durante este período ele é inamovível. Seu mandato, todavia, não pode ser renovado. Ele exerce o controle de legalidade e de mérito econômico em roteiro organizado pela Controladoria e suas conclusões são informadas pelo Parlamento”.[14]

E da Cour des Comptes da França assiste tanto o Parlamento quanto o governo. É órgão autônomo e seus membros gozam das garantias da magistratura. Constitui-se em um dos órgãos mais antigos de fiscalização e controle, exercendo ampla verificação de legalidade e mérito econômico de gestão.

Diante de toda esta exposição, verificamos que ao parlamento é interessante a existência de um órgão técnico autônomo e de subordinação às maiorias que oscilam no Poder Legislativo.

Discorre Antonio Roque Citadini que “embora seja grande o número de países onde os órgãos de controle têm vínculos com o Legislativo, são poucos aqueles em que o vínculo é de subordinação e a fiscalização dos atos da administração é realizada por um departamento do parlamento. Mesmo em países onde vigora o sistema de controladoria, que nasceu como órgão do Parlamento, esta situação evoluiu para um modelo no qual o trabalho de verificação dos atos administrativos é executado por órgãos com autonomia, ainda que mantenham forte vínculo com o parlamento.”[15] O que, levando-se em consideração que o parlamento é um órgão político, melhor seria se o órgão incumbido de fiscalizar tecnicamente a ação governamental não fosse a ele subordinado.

Nesse diapasão, Antonio Roque Citadini afirma que a fiscalização exercida pelo parlamento será sempre política e não dispensa o trabalho da auditoria.

Relevante observarmos que, atualmente, não há vínculo de subordinação entre o Tribunal de Contas e os poderes do Estado. Referimos a hoje porque SEABRA Fagundes nos conta que nem sempre fora assim. “Sob a Constituição de 1937, integrava-se ele no Poder Executivo. Apesar de sua restrita atribuição judicante, no que respeitava às contas dos responsáveis por dinheiros e bens públicos em geral, a grande massa das atribuições a ele cometidas, concernentes à invalidez e regularidade de contratos, ordens de pagamento, despesas e mais atos da gestão financeira da União /…/ figurando o Presidente da República, como instância de recurso para muitos de seus atos (Dec.-Lei nº 7, de 17-11-1937, artigos 3º e 5º, parágrafo único). Era órgão fiscalizador engastado (embutido) no mecanismo da Administração. Sob a Constituição de 1946 (artigo 77) retoma ele o caráter com que se apresentava nas Constituições de 1891 (artigo 89) e de 1934 (artigos 99, 101 e 102), ou seja, de órgão fiscalizador da execução orçamentária e da gestão financeira em geral, articulado com o Poder Legislativo, como caracterizava Ruy Barbosa quando de seu ingresso, com a República, entre os instrumentos de ação superior do Poder Público.”[16]

Entendemos, juntamente com Pontes de Miranda, Celso Antônio Bandeira de Mello[17] e Odete Medauar[18] que o Tribunal de Contas é órgão autônomo de matriz constitucional e que não se vincula a nenhum dos poderes instituídos, muito embora tenha função auxiliar do Poder Legislativo em sua tarefa constitucional.

A independência e autonomia caracterizam as Cortes de Contas e nem poderia ser de outra forma, em face da competência jurisdicional de controle e fiscalização que lhes reserva a Constituição Federal.

Auxiliando o Legislativo, o Tribunal de Contas desempenha papel de colaborador, sem submissão hierárquica ou administrativa, de todos os Poderes, nos respectivos desempenhos de suas atividades administrativas.

Porque a independência, se não é, deveria ser o norte desta instituição, é que melhor seria defini-la como “órgão auxiliar da República”.[19]

E, em arrimo à tese defendida, mencione-se Sérgio Ferraz: 

Em momento algum, entretanto, a Constituição denomina o Tribunal de Contas “órgão auxiliar” (de quem quer que seja). O que ela faz, repita-se, é afirmar que o controle externo da execução financeiro-orçamentária, de atribuição do Congresso Nacional, será exercido com o auxílio do Tribunal de Contas. Trata-se, a toda evidência, de um mecanismo de cooperação integrada, fórmula essa, aliás, encontrada ao longo do texto constitucional, unindo diversos Poderes Estatais na consecução de um fim comum (o exemplo mais notável dessa cooperação independente mas integrada é a que se dá, na Constituição, entre Executivo, Legislativo e Judiciário e a Ordem dos Advogados do Brasil, para a nomeação de magistrados a terem assento nos tribunais superiores, como representantes da advocacia).[20]

De outra parte, compõem o Congresso Nacional o Senado Federal e a Câmara dos Deputados (artigo 44 da Constituição Federal), logo o Tribunal de Contas da União não compõe o Poder Legislativo, em que pese inadvertidamente inserido no capítulo dedicado ao mencionado Poder.[21] Como observa Carlos Ayres Britto:

[…] algumas atividades de controle nascem e morrem do lado de fora das Casas Legislativas. A partir da consideração de que as próprias unidades administrativas do Poder Legislativo Federal são fiscalizadas é pelo Tribunal de Contas da União (inciso IV do art. 71 da CF). Como poderia, então, o Poder administrativamente fiscalizado sobrepairar sobre o órgão fiscalizante?[22]

Destarte, forçosa a conclusão de que as Cortes de Contas não integram o Poder Legislativo, o que afasta qualquer subserviência de ordem funcional. Não sem razão, Carlos Ayres Britto acrescenta:

[…] quando aConstituiçãoo diz que o Congresso Nacional exercerá o controle externo “com o auxílio do Tribunal de Contas da União” (art. 71), tenho como certo está a falar de “auxílio” do mesmo modo como aConstituiçãoo fala do Ministério Público perante o Poder Judiciário. Quero dizer: não se pode exercer a jurisdição senão com a participação do Ministério Público. Senão com a obrigatória participação ou o compulsório auxílio do Ministério Público. Uma só função (a jurisdicional), com dois diferenciados órgãos a servi-la, sem que se possa falar de superioridade de um perante o outro.[23]

3  A natureza jurídica das decisões do tribunal de contas 

A partir da sistematização proposta por Rodolfo de Camargo Mancuso[24], podem-se aglutinar as decisões das Cortes de Contas em quatro tipos: declaratórias, constitutivas, mandamentais e condenatórias.

São declaratórias aquelas destinadas a chancelar determinada situação e eliminar incertezas, sem, contudo, inovar no mundo jurídico. Certificam o procedimento atestando-o como válido. Desta natureza revestem-se os atos de registro de aposentadoria e de admissão de pessoal.

São constitutivas as decisões que inovam no mundo jurídico, alterando substancialmente a situação anterior existente. Servem de exemplo as decisões em ações de rescisão e revisão de julgado e as relativas a licitações e contratos. Também aqui cabe o parecer, favorável ou desfavorável, a respeito das contas anuais do Chefe do Executivo, uma vez que tal decisão traz em seu bojo alterações significativas no panorama jurídico-político, “dada a eventualidade daquele parecer contrário vir a ser referendado pelo Poder Legislativo, daí podendo resultar, na sequência, mesmo o impeachment e a inelegibilidade da Autoridade faltosa”, no dizer de Rodolfo de Camargo Mancuso.[25]

As decisões de ordem mandamental revestem-se de um comando ou ordem. São exemplos a suspensão prévia de edital, a instauração de auditoria para verificação de certo fato, a determinação para anulação de certame e a sustação, se não atendido, da execução do ato impugnado, com comunicação da decisão à Câmara dos Deputados e ao Senado Federal.

As decisões condenatórias geram pretensões insatisfeitas e cominam obrigação ou abstenção da prática de determinado ato pelo condenado. Sujeitam-se, observadas as peculiaridades legais, a prazos de prescrição e/ou decadência. No tocante às Cortes de Contas, tais decisões, porque podem apontar débito ou aplicar multa, ou seja, porque condenam à devolução de ordem pecuniária, geram título executivo extrajudicial, conforme o artigo 71, § 3º, da Constituição Federal.[26]

O título gerado pelas Cortes de Contas deve possuir os mesmos elementos formadores do título executivo judicial previstos no artigo 586, do Código de Processo Civil: liquidez, certeza e exigibilidade.

Ensina Rodolfo de Camargo Mancuso a necessidade de satisfação do credor pela constrição da vontade do devedor, por meios adrede estabelecidos pelo legislador para consecução de tal fim.

Alguns desses meios são de tipo “coativo”, na medida em que atuam psicologicamente sobre a vontade do devedor, induzindo-o a adimplir a obrigação, em espécie (v.g.,a multa diária); outros são de tipo ‘sub-rogatório’ (realização do objeto através de terceiro, quando o permita a fungibilidade da obrigação); em casos mais especiais pode mesmo dar-se a substituição, pelo próprio título judicial, do contrato não aperfeiçoado, da declaração da vontade não emitida, como se verifica nas adjudicações compulsórias, nas renovatórias de locação comercial, nas promessas de contratar; ainda, através de outros meios, pode-se tentar a prestação específica do objeto através de atos de natureza constritiva do patrimônio ou da atividade negocial do devedor (penhora, interdições, seqüestro, imposição de contrapropaganda, fechamento de estabelecimento); finalmente, se ainda assim nada se revelar eficaz para vencer a recalcitrância do devedor, e se a obrigação for daquelas que não comportam realização por terceiro (ou ainda por livre opção do exeqüente), tudo se reduzirá às perdas e danos (CPC, arts. 633 e 461, § 1º).[27]

Grande parte das decisões prolatadas pelas Cortes de Contas ainda é condenatória, em que pesem incansáveis esforços de caráter pedagógico empreendidos no sentido do aprimoramento dos procedimentos fiscais, planejamento econômico orçamentário e transparência nas contratações.

As condenações a obrigação de fazer ou de não fazer dirigem-se ao autor da prática do ato (ou omissão). O pagamento da multa, e a recomposição do erário, têm caráter personalíssimo e devem ser adimplidos e/ou questionados pelo apenado, observando-se que a entidade pública é a beneficiária final da recomposição (e não a autoridade ou ex-autoridade pública apontada como a responsável pelo dano, como decidiu, a propósito, o Tribunal de Contas do Estado de São Paulo em diversas ocasiões).[28]

Há casos, ainda, de obrigação atribuível à autoridade responsável enquanto titular do cargo, a exemplo do fornecimento de justificativas, produção de provas, e instauração de sindicância. Contudo, havendo vacância, a obrigação deverá ser adimplida pelo novo titular com fundamento no princípio da continuidade do serviço público, cabendo, quando necessário, ação regressiva contra o responsável. É nesse sentido o decidido nos autos do TCE-SP 13759/026/07, sessão de 05.11.08, Rel. Conselheiro Antonio Roque Citadini, e pelo TCU.[29]

Para cumprimento de suas decisões o sistema legal dotou as Cortes de Contas de diversos meios e providências. Dentre eles, destacam-se a aplicação de sanções pecuniárias, a exemplo das multas de até cem por cento do valor atualizado do dano causado ao erário, em razão de contas julgadas irregulares de que não resulte débito, e/ou por desatendimento às determinações do Tribunal; inabilitação para o exercício do cargo em comissão ou função de confiança no âmbito da Administração Pública (respectivamente artigos 57 a 60 da Lei Federal nº 8.443/92); remessa de autos ao Ministério Público; oficiamento ao Poder Legislativo para providências de sua alçada; além de outras supletivamente previstas na legislação pertinente (cf. artigo 116, Lei Complementar Estadual nº 709/93, e artigo 298 do Regimento Interno do Tribunal de Contas da União).[30]

No âmbito das Cortes de Contas do Brasil, observadas pequenas variações nas respectivas Leis Orgânicas, quando existentes, as decisões em tomadas de contas ou prestação de contas revestem-se das seguintes formas e efeitos:

1. Parecer prévio: emitido sobre as contas apresentadas anualmente, pelos Chefes do Poder Executivo.

A apreciação será realizada de forma geral e fundamentada sobre o exercício e a execução orçamentária, oportunidade em que se indicarão as irregularidades, as parcelas impugnadas, as ressalvas e as recomendações.

2. Decisão definitiva, no tocante às contas dos gestores e demais responsáveis por bens e valores públicos da Administração direta e autarquias, empresas públicas e sociedades de economia mista, inclusive fundações instituídas ou mantidas pelo Poder Público, e às contas daqueles que derem causa a perda, extravio ou outra irregularidade de que resulte dano ao erário:

2.1. Contas regulares: demonstradas a exatidão das contas e a correta aplicação de valores, alcance de metas governamentais, ou seja, atos de gestão responsável;

2.2. Contas regulares com ressalva: contas apresentadas com irregularidades formais passíveis de regularização e de que não resultem dano ao erário;

2.3. Contas irregulares: decisão de maior gravidade, sempre que ocorra uma das seguintes condições:

2.3.1. Omissão do dever de prestar contas — o responsável não presta contas dentro do prazo estabelecido, sem justificação;

2.3.2. Prática de ato ilegal, ilegítimo e antieconômico ou então infração à norma legal ou regulamentar de natureza contábil, financeira, orçamentária, operacional ou patrimonial — significa dizer que as demonstrações contábeis estão distorcidas;

2.3.3. Dano ao erário público decorrente da prática de ato de gestão ilegítimo ou antieconômico — o Tesouro ficou prejudicado pela prática do ato; 2.3.4. Desfalque ou desvio de bens, dinheiro ou valores públicos.[31]

3. Contas iliquidáveis: ocorrência de força maior ou caso fortuito, comprovadamente alheio à vontade, tornando materialmente impossível o julgamento de mérito do responsável.

4. A jurusdição das cortes de contas

Com a finalidade de dar efetividade às suas decisões e prevenir lesão ao erário, é reconhecida a existência de poderes implícitos dos Tribunais de Contas para o exercício das suas prerrogativas constitucionais.[32]

Não sem razão necessitam as Cortes de Contas de porto seguro para as tentativas daqueles que querem maleabilizar o controle, torná-lo menos rigoroso e menos atento aos valores constitucionais.

Em que pesem lutas acirradas travadas entre instituições, agentes e servidores a respeito dos limites e conteúdo do controle, a prática afigura-se de todo salutar, pois não há que perder de vista “o correto”, o equilíbrio e o aprimoramento da máquina pública. E nesta caminhada, vedado é olvidar o importante papel pedagógico e institucional desempenhado pelas Cortes de Contas.

Necessário, pois, analisar o processo administrativo conduzido pelas Cortes de Contas, que apresenta matizes específicos, extrapola a simples relação Administração-administrado, muito se aproximando do processo judicial (autor, réu e juiz).

Há países em que, a par do processo judicial, há, ainda, dois outros processos: o administrativo contencioso e o administrativo gracioso. Na Espanha, a título de exemplo, vigora a dualidade de jurisdição: a afeta ao Poder Judiciário (civil e penal) somada à que trata do contencioso administrativo exercida pela “jurisdição administrativa geral”, e aquela relativa à “jurisdição administrativa especial”, a cargo dos Tribunais de Contas ou Comissões de Contas ou Conselhos de Contas.

Segundo a maioria de doutrinadores,[33] não existe dualidade de jurisdição quando apenas ao Poder Judiciário cabe apreciar, com força de coisa julgada,278 lesão ou ameaça a direitos individuais e coletivos.

Quando de natureza contenciosa, o processo administrativo, voltado à solução de conflitos entre Administração-administrado, cerca-se de todas as garantias do devido processo legal: competência do julgador, direito de defesa e contraditório, imparcialidade, segurança jurídica e garantia da coisa julgada, entre outras. 

Nos chamados “processos graciosos” visa-se apenas cumprir as finalidades públicas para as quais foram criados, procedendo-se à averiguação dos fatos, adequação do caso à hipótese normativa, com edição de uma série de atos visando ao ato final pautado na discricionariedade administrativa.

No Brasil, impera a chamada “unidade de jurisdição”, assim entendida como o monopólio da competência constitucional de aplicar o Direito contenciosamente a casos concretos, em lides qualificadas por uma pretensão resistida, com observância do devido processo legal e da coisa julgada formal e material.

Há, entretanto, outros elementos, especialmente em face da Constituição Federal de 1988, que integram e alargam o conceito de jurisdição, concebida como a prerrogativa de julgar, de dizer o direito. É sobre este enfoque, à parte de se reconhecer a jurisdição judicial, que se ousa questionar a expressão “monopólio da jurisdição”.

Alceu José Cicco Filho divide didaticamente o processo administrativo em seis modalidades básicas: processo de expediente, de outorga, de controle, punitivo, administrativo disciplinar e administrativo tributário.[34]

Para o desenvolvimento do tema interessa apreciar o processo de controle. Em 1891, escrevia Ruy Barbosa:

O Governo Provisório reconheceu a urgência inevitável de reorganizá-lo; e acredita haver lançado os fundamentos de um Tribunal de Contas, corpo de magistratura intermediária à administração e à legislatura, que, colocado em posição autônoma, com atribuições de revisão e julgamento, cercado de garantias contra quaisquer ameaças, possa exercer as suas funções vitais no organismo constitucional, sem risco de converter-se em instituição de ornato aparatoso e inútil.[35]

Embora se quisesse ver os Tribunais de Contas como integrantes do Poder Judiciário, é fato que, pelo menos nos países observados (Espanha, França , Itália), eles não integram tal Poder. Figuram como órgãos autônomos com função e competências derivadas da própria Constituição.

A natureza das decisões dos Tribunais de Contas enfrenta acirrado debate na doutrina e jurisprudência, especialmente no que toca aos limites do controle e eficácia.

Duas as correntes formadas: a que atribui natureza jurisdicional às decisões prolatadas pelas Cortes de Contas; logo, ao Poder Judiciário caberia apenas exame de conformação do ato à hipótese legal; e a segunda a que, negando função jurisdicional às Cortes de Contas, atribui ao Judiciário poder de revisão das decisões respectivas, não só sob o aspecto formal, como sob o material, ou seja, o mérito.[36]

No centro da divergência, a competência atribuída pela Constituição Federal aos Tribunais de Contas para julgar os responsáveis, direta ou indiretamente, por bens e valores públicos (art. 71, II, CF).[37]

Em que pese seu poder seja uno e indivisível, atua o Estado de maneiras diversas: ora administrativa, ora legislativa, ora jurisdicionalmente. Ensina De Plácido e Silva que a jurisdição, em sentido lato, implica o poder ou autoridade conferida pelo Estado à pessoa para conhecer de certos negócios jurídicos e resolvê-los.[38]

O Estado […] atua por seus próprios órgãos, em especial, por meio da figura do juiz. “Mas o juiz, e assinala Carnelutti, não é somente o indivíduo julgador, também o que dispõe cuja decisão tem eficácia ordenadora e que essa eficácia esteja consubstanciada numa sentença que tem a característica principal para a sua configuração como ato jurisdicional, “a autoridade da coisa julgada” na devida expressão de Liebman […].[39]

E acrescenta: “[…] jurisdição é o poder de julgar que, decorrente do imperium, pertence ao Estado. E este, por delegação, o confere às autoridades judiciais (magistrados) e às autoridades administrativas”.[40]

Ao termo “jurisdição”, entretanto, a doutrina foi acrescentando conceitos, transfigurando sua idéia original de poder conferido ao Estado de aplicar o direito ao caso concreto. Segundo Hely Lopes Meirelles:

Jurisdição é atividade de dizer o direito, e tanto diz o direito o Poder Judiciário como o Executivo e até mesmo o Legislativo, quando interpretam e aplicam a lei. Portanto, todos os Poderes e órgãos exercem “jurisdição”, mas somente o Poder Judiciário tem o monopólio da jurisdição judicial, isto é, de dizer o direito com força de coisa julgada. Não se confunde, pois, o controle judicial, privativo do Poder Judiciário, com o controle jurisdicional administrativo, exercido por qualquer outro órgão, inclusive do Poder Judiciário em função administrativa.[41]

O controle jurisdicional dos atos administrativos assume, na doutrina, grosso modo, duas vertentes: a comum e a especial.

No primeiro caso, ao Poder Judiciário assegura-se a apreciação dos atos estatais, executados sob a égide pública ou privada. Portanto, ao Judiciário compete examinar toda a matéria do contencioso administrativo. É a chamada, por muitos, “jurisdição única”, ou o modelo inglês, segundo o qual somente o Poder Judiciário exerce, com exclusividade, a função jurisdicional.

A jurisdição dúplice implica o julgamento por um tribunal específico de contendas de que participa a Administração. É possível, pois, que outra jurisdição, não integrante do Poder Judiciário, aprecie dada matéria, impossibilitando sua reapreciação por outro Poder.

Nesse caso, origina-se aí a coisa julgada material e formal.[42] Há, pois, duas jurisdições em igualdade de exercício: a comum e a administrativa.

No Brasil, é invocado o art. 5º, XXXV, da Constituição Federal para defender a inafastabilidade de apreciação pelo Judiciário: “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”.

A leitura do dispositivo assinala um pilar do Estado Democrático de Direito, ou seja, independentemente da situação patrimonial, pessoal, vantagens ou desvantagens, a todos, indistintamente, será concedida a tutela judicial. Neste sentido, o art. 3º da Constituição Federal, ao arrolar os fundamentos da República.

Contudo, tal não significa, tampouco implica excluir que a própria Constituição Federal conceda a outro órgão, ou instituição, poder jurisdicional. Uma coisa não exclui a outra.

Avançou o legislador constitucional ao ampliar as vias de acesso do cidadão à justiça, por meio do aperfeiçoamento de instituições e criação de novos instrumentos para solução de conflitos.

Salientou o E. Tribunal de Justiça de São Paulo que, “Na instância administrativa, o Tribunal de Contas julga com amplitude de poderes”.[43] Daí a referência de Pontes de Miranda à competência de julgar das Cortes de Contas como “função judicialiforme”, e não judiciária.[44]

A Constituição Federal confere aos Tribunais de Contas, observadas as peculiaridades de cada órgão, as mesmas atribuições reservadas aos tribunais judiciários, conforme o disposto no artigo 73: “O Tribunal de Contas da União, integrado por nove Ministros, tem sede no Distrito Federal, quadro próprio de pessoal e jurisdição em todo o território nacional, exercendo, no que couber, as atribuições previstas no art. 96.”

Nesse caso, pode-se dizer que o próprio sistema normativo deferiu ao Tribunal de Contas poder jurisdicional, com apuração de fatos, julgamento com aplicação do direito (regularidade e/ou irregularidade) e irretratabilidade de efeitos (coisa julgada).

A respeito das Cortes de Contas, não é demais recordar Pontes de Miranda ao inseri-las no “corpo judiciário”, no plano material, e, no plano formal, no “corpo auxiliar do Congresso Nacional”, ao cooperar na sua missão de controle da execução orçamentária.[45]

Daí a dupla função da instituição: a de avaliar tecnicamente as contas dos administradores responsáveis por bens e valores públicos e a de cooperar com o Poder Legislativo na fiscalização política e jurídica da gestão financeira. 

Assim, descabe relacionar a coisa julgada unicamente com as decisões emanadas pelo Judiciário. Também à esfera administrativa foi reservado um núcleo de decisão.

Esta a lição de Seabra Fagundes:

O Poder Judiciário, chamado a atuar no processo de realização do direito, para remover anormalidade porventura surgida, circunscreve o âmbito da sua atuação ao caso sobre o qual tenha sido provocado. Extinguindo-se a situação anormal com o seu pronunciamento, cessa, por isso mesmo, a razão de ser de sua interferência.[46]

As Cortes, especializadas ou não, devem conviver em harmonia, na busca do bem maior: a justiça. Assim, ainda que privativa a tomada de contas pelo Tribunal de Contas, importa reconhecer, como faz Jorge Ulisses Jacoby Fernandes:

que a jurisdição dessas Cortes guarda relações com o processo judiciário e, portanto, podem ter o exame de mérito impedido por força de decisão judicial transitada em julgado”. E, no exame de tais relações, arrola as seguintes premissas básicas:

– as esferas administrativas, civil, e penal são independentes;

– as penalidades de cada uma das esferas de competência, descritas anteriormente, podem cumular-se;

– o julgamento por fatos conexos pode ensejar a atuação simultânea de dois Tribunais de Contas, o que ocorreria, por exemplo, quando um prefeito, tendo aplicado irregularmente recursos federais, para pagar o débito utilizasse de recursos do erário municipal;

– a responsabilidade administrativa do servidor deve ser afastada no caso de absolvição civil ou criminal que negue a existência do fato ou a autoria;

– só pode ser considerada como exceção peremptória a decisão judicial que: tenha transitado em julgado; tenha adotado por fundamento fato que, diretamente, seja objeto do processo debatido nos Tribunais de Contas e sobre o qual expressamente se tenha pronunciado, reconhecendo-se não ocorrido ou sendo o responsável outro que não o indicado;

– a tomada de contas especial que busca apurar a responsabilidade do agente e, se for o caso, a recomposição do erário, pode ter pleno e normal curso ainda que uma ação judicial absolva o agente da prática de determinado crime;

– como os processos judiciais sofrem uma tramitação mais lenta e as esferas são independentes, os Tribunais de Contas não têm o dever de sobrestar o processo, para aguardar decisão do Poder Judiciário. Exemplo disso: o Poder Judiciário, há 25 anos, debate famoso escândalo na aplicação de recursos públicos no DF.[47]

Lúcia Valle Figueiredo, observa que “a característica essencial e fundamental do ato administrativo, no Estado de Direito, é sua contrastabilidade pelo Poder Judiciário”.[48] E conclui que o Judiciário é qualificado para dizer se a conduta administrativa quedou-se dentro da moldura legal, não a desbordando.[49]

Assim é em relação à decisão das Cortes de Contas. O controle do Judiciário é admissível unicamente para coibir abusos e não para rediscutir critérios técnicos adotados.

Nessa linha, o decidido pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo nos autos do Mandado de Segurança nº 72.598 (Relator Desembargador Sinésio de Souza) e na Apelação Cível nº 844.768-5/7 (Relator Desembargador Corrêa Vianna), pelo Supremo Tribunal Federal nos autos do Mandado de Segurança nº 6.960, Recursos Extraordinários nº 55.821 e 7.280 (Ministro Henrique D’Ávila),[50] e pelo Superior Tribunal de Justiça nos autos do Recurso Especial nº 8970/SP, Recursos Ordinários em Mandado de Segurança nº 628/RS e 12.487.[51]Adiciona Roberto Rosas:

No STF asseverou o Ministro Rafael de Barros Monteiro que as decisões do Tribunal de Contas não podem ser revistas pelo Poder Judiciário, a não ser quanto ao seu aspecto formal, palavras corroboradas na mesma assentada pelo Min. Djaci Falcão, considerando essas decisões com força preclusiva (RE 55.821, RTJ 43/151). Ainda quando o ato administrativo seja praticado pelo Tribunal de Justiça não ficará imune à apreciação do Tribunal de Contas com competência para isso (RE 47.390, RTJ 32/115), bem como com o exercício de auditoria financeira e orçamentária sobre as contas dos Três Poderes. Inclusive Legislativo (art. 70, § 3.º, Const.) assim interpretado pelo STF na Representação 764 do Espírito Santo (RTJ 50/245). Em outro julgado do pretório Excelso (MS n.º 16.255, RTJ 38/245) o Relator Ministro Lins, ainda que restringindo o âmbito da função jurisdicional do Tribunal de Contas, não negou sua competência constitucional, afirmando que “tudo quanto ultrapassa este limitado projeto de exame da regularidade intrínseca das contas prestadas pelos responsáveis, refoge à competência jurisdicional restrita, e inampliável por lei, do Tribunal de Contas. Só o que toca a este exame, já para liberar o responsável, já para declará-lo em alcance, constitui decisão jurisdicional definitiva, a cavaleiro de qualquer revisão judicial”, afirmou o iminente magistrado. No mesmo passo acentuaram os Ministros Aliomar Baleeiro e Carlos Medeiros Silva em aresto da Corte Suprema (MS n.º 15.831, RTJ 37/462).[52]

As Cortes de Contas encontram-se aparelhadas e tecnicamente preparadas para o exercício do controle e julgamento dos atos que causem lesão ao erário, em que pese tal aspecto desagrade a muitos. E, embora digam não caber a elas a edição de atos jurisdicionais típicos, inconcebível imaginar não detenham, ainda que em dose diminuta, tal condição.[53]

Compete, ademais, às Cortes de Contas negar aplicação de lei que considerem inconstitucional, e tal função decorre da jurisdicional.

Tal controle exercido pelo Tribunal de Contas se dá de modo difuso, é o chamado “controle incidental”. Por meio dele, soluciona-se a questão constitucional como pressuposto para alcance e apreciação do caso concreto, e os efeitos do incidente atingem apenas as partes envolvidas no processo sujeito à apreciação da Corte.

Tal prerrogativa, a propósito, foi reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal ao editar a Súmula 347: “O Tribunal de Contas, no exercício de suas atribuições, pode apreciar a constitucionalidade das leis e dos atos do Poder Público”.

São, pois, diversos e reiterados os julgados no sentido de que não cabe ao Judiciário rever as decisões dos Tribunais de Contas, salvo quando, quanto ao seu aspecto formal, ocorra ilegalidade manifesta ou irregularidade formal grave.[54]

Cabe, ainda, por curiosidade, mencionar julgado afim. Proclamou o E. Tribunal de Justiça de São Paulo não competir ao Poder Judiciário apreciar o mérito da rejeição de contas do Poder Executivo pelo Poder Legislativo Municipal.[55]

Consigne-se a conclusão alcançada por Rodolfo de Camargo Mancuso:

[…] os pronunciamentos desses órgãos colegiados configuram verdadeiros julgamentos, atos judicantes aperfeiçoados e impositivos, embora restrito