Oscar Vilhena Vieira: “Vivemos o ápice do nosso momento supremocrático”
Por Israel Nonato
No processo de impeachment, o direito de errar por último fica com o Senado Federal, afirma Oscar Vilhena Vieira, 50, professor de Direito Constitucional da FGV Direito SP, que não acredita que o Supremo Tribunal Federal aceite pedido para rever a decisão de mérito do processo da presidente Dilma Rousseff.
A deferência ao Parlamento, contudo, não é unânime na Suprema Corte. Como observa Vieira, as vozes dissonantes dos ministros Marco Aurélio e Ricardo Lewandowski demonstram que existe uma posição mais intervencionista no Tribunal, ainda que minoritária, que entende possível a revisão judicial no processo de impeachment.
Nessa entrevista ao blog Os Constitucionalistas, o professor Vilhena, que nasceu em Taubaté/SP, reconhece que o processo de impeachment de Dilma Rousseff tem se mostrado bruto, que a presença de Eduardo Cunha na primeira etapa do processo lhe reduz a legitimidade política e que o Supremo Tribunal Federal se arvorou o papel de monitorar a integridade do procedimento, em especial de assegurar os direitos relacionados à ampla defesa do presidente da República, o que não acontece nos Estados Unidos.
Oscar Vilhena Vieira aborda a decisão que suspendeu a nomeação do ex-presidente Lula para o cargo de ministro da Casa Civil, analisa a Operação Lava Jato e sua influência para a crise política e pontua que o juiz federal Sérgio Moro errou, ao dar ampla divulgação a gravações telefônicas de autoridades que estão sob a jurisdição do STF, o que atraiu o desconforto de ministros do Tribunal. Moro foi contido pela Corte, se desculpou, mas o desfecho dessa relação não está claro.
Sobre a decisão que afastou Eduardo Cunha, o professor da FGV/SP assevera que é incompatível com o todo o sistema constitucional permitir que Cunha use de suas prerrogativas para fraudar a Constituição. Para Vieira, os ministros do STF se mostraram profundamente conscientes da gravidade da decisão que tomaram, tanto que foi unânime o referendo do afastamento.
O entrevistado chama a atenção para um problema crônico do Supremo Tribunal Federal, a enorme quantidade de decisões monocráticas, de alta relevância e impacto político, que colocam em risco a autoridade do Tribunal.
Quanto a Michel Temer e seu governo, Vilhena argumenta que a interinidade não impõe nenhuma limitação que também não se aplique ao presidente. E revela a expectativa de que não haverá nenhuma mudança radical nas estruturas básicas do nosso pacto social, que vem sendo sistemática e paulatinamente reformado ao longo das últimas duas décadas.
Oscar Vilhena Vieira, autor de Supremocracia, um dos ensaios mais instigantes de Direito Constitucional, alerta que vivemos o ápice do nosso momento supremocrático, existindo forte consenso de que o modelo de tutela por parte do Supremo Tribunal Federal não pode ser ampliado ou perdurar eternamente.
“Creio que entraremos num período de paulatina autocontenção do Tribunal”, vaticina Oscar Vilhena Vieira, que ressalta, no entanto, que não chegaremos a ter uma Corte tímida, já que a nossa tradição é a de um Supremo Tribunal Federal ativo, que deve continuar.
Leia a entrevista, concedida por e-mail.
Os Constitucionalistas – O que é o impeachment?
Oscar Vilhena Vieira – O impeachment é um mecanismo previsto na Constituição para afastar o presidente da República em casos de crime de responsabilidade. Trata-se de um mecanismo de natureza jurídico-político. Jurídico porque há a previsão de uma longa lista de delitos passíveis de imputação, assim como porque o rito é amplamente regulado pelo direito. Político porque o processo do impeachment corre no Parlamento e não em um tribunal. A expressão “crime de responsabilidade” é bastante equivocada, pois na realidade trata-se de um conjunto de ações que, se praticadas, são passíveis de sanções de natureza política e administrativa, mas não penal.
Três são as funções do impeachment numa democracia presidencialista. A primeira delas é criar um incentivo para que o presidente eleito não abuse de seu poder, sob o risco de se ver destituído do cargo. Oimpeachment se apresenta como uma radical ferramenta do sistema de separação de poderes a deixar claro que a legitimidade para o exercício do poder exige, além do voto, a submissão ao direito.
A segunda função do impeachment é criar um desincentivo a golpes e atentados contra o chefe do Executivo por forças políticas de oposição. A existência de um meio constitucional para a deposição de um presidente que abuse de seu poder torna ilegítima qualquer tentativa violenta de interrupção do mandato presidencial.
A terceira função do processo de impeachment é qualificar o debate público e co-responsabilizar a sociedade e o Poder Legislativo pela definição dos padrões legais e éticos que devem pautar o exercício do poder presidencial. Dadas as enormes dificuldades estabelecidas pelo procedimento do impeachment para a destituição de um mandatário eleito pelo voto popular, questões irrelevantes ou mesmo temas fundamentais, se promovidos por grupos minoritários, têm pouca chance de prosperar. Ainda assim, a possibilidade de veiculá-los por intermédio de impeachment é válida, pois impõe aos que apoiam o governo o dever de refletir e se co-responsabilizar pelo modo como o poder é exercido.
OC – Qual a sua opinião sobre o processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff? Há justa causa? O processo é irregular, como advertiu o El Pais (editorial de 10.05.2016)? Dilma está pagando um preço desproporcional, como escreveu o The New York Times (editorial de 12.05.2016)?
Oscar Vilhena Vieira – O impeachment é um instrumento fundamental para o bom funcionamento das democracias constitucionais que optaram pelo presidencialismo, ainda que como prenúncio, como ameaça. Embora o impeachment não se confunda com o voto de desconfiança do regime parlamentarista, pois noimpeachment há a exigência de uma justa causa, e de um longo e ritualizado processo, ambos são a expressão de um sistema de freios e contrapesos pelo qual o Executivo se vê controlado pelo Legislativo e pela opinião pública.
A diferença é que, tendo o chefe do Executivo sido eleito pelo povo e não pelo Parlamento, no presidencialismo a sua destituição deve ser muito mais difícil. No Brasil deve estar fundada num crime de responsabilidade, passar por diversas etapas processuais e ser aprovada, por quórum de 2/3, nas duas Casas do Congresso Nacional.
A natureza predominantemente política do processo de impeachment fica clara, em primeiro lugar, pela abertura das hipóteses que caracterizam o crime de responsabilidade, entre os quais se encontram aqueles atos que atentem contra a lei orçamentária. Em segundo lugar pelo fato de que esta lei extremamente aberta deve ser aplicada pelo Parlamento, ou seja, o julgador não está submetido aos mesmos padrões de aplicação do direito que um juiz.
Logo, é ao Parlamento que cumpre determinar se há justa causa (razão jurídica) e se essa é suficiente para determinar a destituição do chefe do Executivo (razão política). No caso do ex-presidente Clinton, por exemplo, a justa causa – perjúrio num processo judicial por abuso sexual – não se demonstrou uma razão política suficiente para que o Senado americano o destituísse. No caso de Collor, o Senado Federal entendeu que diversas condutas do ex-presidente configuravam justa causa e razão política suficiente para destituí-lo do cargo. Da mesma forma, no caso da presidente Dilma Rousseff, os empréstimos de instituições financeiras sob controle da União e os decretos autorizando créditos suplementares, sem autorização do Legislativo, foram considerados justa causa.
O Supremo Tribunal Federal, em diversas ocasiões, tem assumido a posição de que no processo deimpeachment o seu papel deve estar limitado a assegurar a integridade do procedimento, em especial no que se refere à garantia do direito de defesa do presidente da República. No que tange à verificação da justa causa, ou da decisão final sobre a responsabilidade da presidente Dilma Rousseff pela prática do crime que lhe está sendo imputado, o STF tem se demonstrado deferente ao Parlamento. As vozes dissonantes dos ministros Marco Aurélio e Ricardo Lewandowski se apresentam como minoritárias.
Meu posicionamento, desde o julgamento do presidente Collor, é de que o Supremo Tribunal Federal, de fato, deve ter uma posição deferente, pois se a Constituição quisesse que a palavra final sobre o afastamento do presidente, em razão de crime de responsabilidade, decorresse de decisão do Tribunal, teria conferido esta competência ao Supremo, como o fez no caso dos crimes comuns. E não é isso o que diz o artigo 86 da Constituição. Portanto, a definição da justa causa e do mérito cabe ao Congresso.
OC – E as críticas de que se estaria desvirtuando o instituto do impeachment?
Oscar Vilhena Vieira – Há, evidentemente, uma discussão sobre a integridade política do processo. Ainda que o pedido tenha recebido amplo apoio da oposição, o seu desfecho só foi possível porque uma parte substantiva da coalizão que dava apoio à presidente Rousseff mudou de lado. Dilma tem, sim, motivos para se sentir traída. No entanto, dentro do presidencialismo de coalizão, a base de apoio do governo é sempre movediça e ela perdeu a sua base. Este é um fato político. E a responsabilidade é do governo, seja porque não soube negociar com sua base, seja porque escolheu mal os seus parceiros.
É fato que o processo de impeachment em curso, embora previsto na Constituição, tem se demonstrado bruto. A presença de Eduardo Cunha na primeira etapa do processo, de fato, lhe reduz a legitimidade política. Por outro lado, não deixa de ser paradoxal e lamentável que parte dos políticos responsáveis por tomar a decisão do afastamento da presidente também se veja envolvida no mesmo escândalo que conspurca o Executivo. Se o grupo que migrou para a oposição não o fez por motivos nobres, é fundamental que se reconheça que também não estava na situação por motivos nobres. PT e PMDB, agora em litígio, foram sócios nesse projeto de poder. Dilma e Temer foram eleitos com os mesmos votos. A incapacidade da presidente Rousseff de manter uma base mínima no Parlamento que assegurasse o seu mandato a deixou imensamente fragilizada, facilitando que a imputação que lhe foi feita tenha sido considerada justa causa para o prosseguimento do processo. Dada a abertura das cláusulas constitucionais e legais que regulam o processo por crime de responsabilidade, bem como a autoridade designada pela Constituição para processar oimpeachment – que é política e não judicial – me parece claro que se trata de um processo de natureza predominantemente política.
Quanto a ser proporcional ou não a punição a ser imposta à presidente Dilma Rousseff, a questão comporta duas dimensões. A primeira delas se refere à importância que a responsabilidade fiscal adquiriu no presidencialismo brasileiro nas últimas décadas. Se no passado governantes podiam agir de maneira perdulária, sem que isso gerasse qualquer consequência, hoje os limites impostos pela lei têm recaído sobre autoridades de maneira bastante contundente. É só analisar o número de prefeitos que se viu embaraçado por desrespeito a esse diploma legal. Dilma pode se tornar, ao que tudo indica, a primeira presidente a ser afastada por esse motivo. Isso pode ser apenas uma caracterização da seletividade e politização do processo, como também pode ser a indicação que ingressamos numa nova fase do presidencialismo brasileiro, onde o rigor fiscal se coloca como contrapeso ao expansionismo de gastos decorrente da necessidade de grandes coalizões. Essa é uma pergunta que fica.
A segunda dimensão está relacionada ao contexto em que o processo de impeachment se deu. Caso Eduardo Cunha houvesse acolhido o pedido formulado pela Ordem dos Advogados do Brasil, outros fatos, mais constrangedores do ponto de vista moral, seriam imputados à presidente Dilma Rousseff. Da mesma forma, a ação de impugnação de mandato eletivo que tramita no Tribunal Superior Eleitoral aponta para desvios mais graves que, se devidamente comprovados, invalidariam a eleição de 2014. Embora nada disso devesse ser levado em consideração no processo de impeachment, no Parlamento tais fatos certamente pesaram. Daí a aceitar a ideia de que houve um golpe de Estado vai um longo caminho.
OC – Como o senhor avalia a atuação do STF nas ações em que o Tribunal foi instado a se manifestar sobre o processo de impeachment?
Oscar Vilhena Vieira – Com o agravamento da crise política, o Supremo Tribunal Federal foi chamado para o centro da arena política nacional, e confirmou a sua função moderadora. Ao Tribunal foram entregues as chaves para interferir em diversas etapas altamente sensíveis do imbróglio político que se deu com a abertura do processo de impeachment, mas também da Operação Lava Jato, que estabelece, queiramos ou não, o contexto no qual o processo de impeachment se insere.
No que se refere especificamente ao processo de impeachment, a decisão fundamental do Supremo Tribunal Federal se deu em dezembro de 2015, quando o Tribunal reviu o procedimento a ser adotado pelo Congresso. Nessa decisão, a Corte, por maioria de votos, reafirmou, com reparos, a posição originalmente estabelecida em 1992/1993, de que o papel do Supremo deveria se limitar a garantir a integridade do processo, em especial de assegurar os direitos relacionados à ampla defesa do presidente. Foi, assim, além da doutrina e jurisprudência norte-americana, que entende que o impeachment é um processo que deve correr no âmbito exclusivo de competência do Congresso. No nosso caso, o Supremo se arvorou um papel de monitorar a integridade processual, o que não ocorre nos Estados Unidos. Porém, o Tribunal ficou aquém do que compreende adequado a defesa da presidente Dilma, que solicita uma interferência no mérito do julgamento.
Como já mencionei, a posição de deferência ao Congresso não é unânime no Supremo. A liminar concedida pelo ministro Marco Aurélio, determinando o recebimento, pelo presidente da Câmara dos Deputados, do pedido de impeachment contra o vice-presidente, é uma demonstração cabal disso. Também a manifestação do presidente do STF, Ricardo Lewandowski, de que o mérito da decisão a ser tomada pelo Senado Federal poderia, eventualmente, ser revista pelo Supremo, demonstra que há uma posição mais intervencionista entre os ministros, ainda que minoritária.
O processo do impeachment, no entanto, ocorre dentro de um contexto político muito mais amplo, que envolve crise econômica, mas também um grande escândalo de corrupção. Embora não estejam tecnicamente associados ao impeachment, dão sua moldura. Especificamente, o caso do escândalo da Petrobras, que se encontra parcialmente sob a jurisdição do STF, gera uma interferência direta do Supremo na dimensão política do processo do impeachment. Ao impedir a nomeação de Luiz Inácio Lula da Silva como ministro de Estado do governo da presidente Dilma, por exemplo, o Tribunal reduziu o espaço de articulação política do governo. Em circunstâncias normais, essa questão jamais seria submetida ao Supremo Tribunal Federal. Afinal, esta é uma competência privativa da presidente. Mas não há nada de normal na presente conjuntura. O Supremo viu a integridade de alguns de seus ministros afrontada pelas gravações que foram obtidas por intermédio da Lava Jato, o que certamente influenciou a Corte no modo como decidiu o caso de Lula e eventualmente outras questões que giram em torno do processo de impeachment.
OC – O fator Eduardo Cunha foi influente para o impeachment?
Oscar Vilhena Vieira – O Supremo interferiu de modo ainda mais contundente na dimensão política do processo do impeachment quando analisou o afastamento de Eduardo Cunha. O papel do deputado foi importantíssimo no encaminhamento do processo de impeachment na Câmara. Somente depois de cumprida essa fase Cunha foi afastado. Há uma questão de timing da decisão. Para alguns a demora se deu para favorecer os que advogam pelo impeachment. Para outros, o ministro Teori Zavascki não poderia afastá-lo antes de constatar que o deputado estava manipulando o Conselho de Ética da Câmara. Assim, a demora ocorreu como ato de deferência ao Parlamento. Por outro lado, o modo como se deu o afastamento de Eduardo Cunha não está expresso na letra da Constituição, o que é um enorme problema. Todavia, problema igualmente grande seria permitir que alguém se beneficiasse de suas prerrogativas para impedir que contra si fosse realizada uma investigação, ainda mais quando essa autoridade pode vir a se tornar presidente da República. Caso o Supremo se omitisse em relação a essas duas questões poderia estar contribuindo para vulnerabilizar a autoridade não apenas da Câmara, como da presidência da República. Ao meu ver, a Suprema Corte agiu neste caso específico no limite de sua função moderadora, que vem se avolumando nas últimas duas décadas.
OC – E a Operação Lava Jato continuará a influenciar a crise?
Oscar Vilhena Vieira – O Supremo Tribunal Federal tem calibrado a velocidade, o escopo e a contundência da Operação Lava Jato, de onde estão surgindo as maiores fagulhas desta crise. Isso num contexto em que cerca de 80% da população aprova a operação. Ao dar ampla divulgação às gravações telefônicas que envolvem autoridades que estão sob a jurisdição do STF, o juiz federal Sérgio Moro errou e atraiu para si o desconforto de vários ministros do Supremo, que até agora vinham referendando o seu trabalho. Moro foi contido pelo Tribunal, se desculpou, mas o desfecho dessa relação não está claro.
O desafio do STF tem sido resolver cada uma dessas espinhosíssimas questões, todas elas com consequências políticas imprevisíveis, num ambiente em que a autoridade do Tribunal é constantemente colocada em xeque, por múltiplos atores.
Não há dúvida alguma do amadurecimento do Tribunal nestas últimas décadas. Não há cortes supremas ao redor do globo que tenham sido submetidas, em um curto espaço de tempo, a testes de resistência tão dramáticos, a começar pelo próprio julgamento do mensalão, que lhe garantiu tantas feridas, mas também ensinou muito o que não deve ser feito.
Mesmo assim, não se pode deixar de destacar, como elemento negativo do envolvimento do Supremo neste processo, um problema mais crônico, que está relacionado à grande quantidade de decisões monocráticas, de alta relevância e impacto político, que colocam em risco a autoridade do Tribunal. O resultado geral, no entanto, me parece positivo. A Corte é muito exposta aos problemas políticos, tendo que reagir dentro do tempo da política. Isso nem sempre ajuda a tomada de decisões ponderadas e tecnicamente lapidadas. Mas esse é o desenho que escolhemos em 1988. Pior seria ter um Tribunal omisso.
OC – Para Rui Barbosa, ao STF “deve ficar o direito de errar por último”. O Supremo Tribunal Federal pode rever a decisão que o Senado proferir no julgamento do processo de impeachmentde Dilma Rousseff?
Oscar Vilhena Vieira – O Supremo Tribunal Federal vem consolidando, desde o impeachment de Collor, uma posição sobre o papel institucional do Tribunal no processo de impeachment. E esta posição é de guarda da integridade do processo e da garantia dos direitos de defesa do presidente da República. Nesse sentido, tenho enorme dificuldade em imaginar que o STF venha a aceitar um pedido para rever uma decisão de mérito do processo de impeachment. No processo de impeachment, o direito de errar por último foi dado ao Senado, e não ao Supremo, como reivindicava o ministro Paulo Brossard.
OC – O Plenário do STF referendou a liminar do ministro Teori Zavascki, que afastou Eduardo Cunha do exercício do mandato de deputado federal e da função de presidente da Câmara dos Deputados. O senhor concorda com os fundamentos dessa decisão?
Oscar Vilhena Vieira – Como disse antes, este foi um caso altamente complexo, na medida em que a decisão do Supremo de afastar o deputado não encontra uma autorização expressa na Constituição. Por outro lado, também não é compatível com todo o sistema constitucional permitir que um presidente de Poder use de suas prerrogativas para fraudar a Constituição. Mais do que isso, essa autoridade, por intermédio de suas fraudes, se coloca na linha sucessória. Evidente que a decisão tomada pelo Tribunal supera os limites de atuação de um órgão jurisdicional tradicional. Esta a razão pela qual tenho designado a atuação do Supremo como exercício de uma função moderadora. Alguns dirão que foi uma usurpação, pura e simples. Eu compreendo que a questão é mais complexa, pois não é compatível com uma ordem jurídica como a nossa que alguém possa ser beneficiário da própria torpeza. Tanto mais quando este benefício conspurca a própria democracia. A uma Corte de natureza constitucional, que se encontra no ápice do sistema jurídico, cumpre resolver idiossincrasias do ordenamento, com base em seus princípios mais fundamentais. O STF buscou demonstrar que entendia a gravidade do caso e a excepcionalidade de sua decisão. Os ministros se mostraram profundamente conscientes da gravidade da posição que tomaram. O fato de ter sido uma decisão unânime num Tribunal marcado por fortes divisões dá uma dimensão da gravidade do caso.
OC – A presidente Dilma Rousseff encontra-se afastada do cargo, mas ainda não está impedida. Nessas condições, o vice-presidente Michel Temer, como presidente interino, possui alguma limitação?
Oscar Vilhena Vieira – Tecnicamente, a interinidade não impõe nenhuma limitação que também não se aplique ao presidente. O fato, porém, é que teremos uma presidência muito breve. Neste curto espaço de tempo o presidente Michel Temer terá que escolher quais são as medidas que lhe são prioritárias, levando em consideração que medidas muito polêmicas criarão obstáculos a que medidas mais modestas e consensuais possam ser aprovadas. Minha expectativa é que não teremos nenhuma mudança radical nas estruturas básicas de nosso pacto social, que vem sendo sistemática e paulatinamente reformado ao longo dessas duas décadas. Teremos no máximo reformas incrementais na Previdência, no sistema tributário e no sistema regulatório. Mas nada de muito extravagante, pois isso criaria enormes obstáculos, inviabilizando que um governo de vida breve possa pôr em prática algumas de suas propostas.
Caso o Parlamento crie um pedágio para aprovar as medidas econômicas propostas pelo governo, no sentido de exigir a aprovação de medidas restritivas de direitos, especialmente no campo moral, penso que o papel de exercer o poder de veto ficará com o Supremo Tribunal Federal.
OC – No artigo “O Supremo e as maiorias de ocasião”, o senhor alerta que os avanços das duas últimas décadas podem ser colocados em risco, concluindo que “o Supremo Tribunal Federal será certamente convocado para ocupar um novo papel na arena político-institucional brasileira: o de instância contramajoritária”. Esse papel realmente é novo? Sua conclusão não se baseia apenas em casos controversos que se destacaram na pauta do Tribunal nos últimos anos? Não seria mais correto afirmar que, para fazer frente a novas ondas conservadoras, o papel do STF seria o de uma instância contrarepresentativa, e não contramajoritária, já que a vontade de uma eventual maioria do congresso não seria, de fato, a vontade da maioria da população brasileira?
Oscar Vilhena Vieira – Você tem razão que o papel mais tradicional de qualquer Suprema Corte é servir de instância contramajoritária (aqui no sentido de maioria parlamentar). O fato é que no Brasil ocorreu uma certa peculiaridade que decorre de nossa estrutura constitucional associada a nossos ciclos eleitorais. De um lado temos uma Constituição muito generosa em relação aos direitos. Com algumas exceções, como a união homoafetiva, o papel do Tribunal não foi de criar direitos. Os direitos estão lá. No mais das vezes a implementação ou regulação desses direitos, por governos razoavelmente progressistas, é que foi questionada por algum grupo que se sentiu derrotado no processo político. Daí porque o trabalho da Corte tenha sido mais o de referendar a ação parlamentar do que de contestá-la. Evidente que estou falando apenas do campo dos direitos fundamentais. Em outras áreas do direito a dinâmica não foi necessariamente esta. Minha expectativa é que esse papel contramajoritário possa vir a ser convocado com maior intensidade neste período, caso o Congresso insista em aprovar sua agenda conservadora.
OC – Com o Brasil vivendo tantos desafios na política, no direito e na economia, podemos esperar a ascensão de uma nova “Supremocracia”?
Oscar Vilhena Vieira – Vivemos o ápice do nosso momento supremocrático. Apenas para me fazer mais claro. A ideia de supremocracia decorre de uma percepção de que a partir de 1988 houve uma grande concentração de poderes nas mãos do Supremo Tribunal Federal. Isso foi uma consequência direta do desenho institucional adotado pelo constituinte. Em primeiro lugar, a ambição e ubiquidade constitucional ampliaram naturalmente o campo de intervenção do Supremo. Em segundo lugar, a ampliação de acesso ao STF, que passou a permitir que partidos, governadores e corporações sindicais pudessem provocar o Tribunal com muita facilidade, aumentou a dimensão política das questões a serem decididas pelo Tribunal. Por fim, a Corte passou a acumular as funções de Corte de último recurso, Corte constitucional e Tribunal especializado em julgar atos de autoridades de alto escalão (especificamente dos membros do Parlamento). A acumulação desses poderes, associada à competência para resolver a constitucionalidade de emendas, deu ao Supremo Tribunal Federal a possibilidade de dar a última palavra numa quantidade enorme de temas. Lógico que “última palavra”, aqui, tem um sentido relativo, pois essas podem ser revistas ao longo do tempo pelo próprio Tribunal ou por mudanças constitucionais que a Corte venha a assimilar. Porém, no momento político em que são proferidas, significam a palavra final.
Apesar da alta intensidade com que o Supremo Tribunal Federal vem intervindo no campo político, existe um forte consenso de que este modelo de tutela não pode ser ampliado ou mesmo perdurar eternamente. Para isso será necessário reduzir e racionalizar a jurisdição do Supremo. A Emenda 45 lançou as bases para que o STF devolva parte de sua jurisdição aos tribunais inferiores. Sua decisão de que a execução da pena poderá ocorrer a partir do julgamento em segunda instância também foi de enorme importância para que sua jurisdição se veja contida. É necessário estender isso para as demais áreas do direito. Além disso, vejo que muitos ministros e analistas estão se conscientizando de que a constante tutela do sistema político pelas instituições de aplicação da lei pode esgarçar a própria autoridade do sistema jurídico. Creio que entraremos num período de paulatina autocontenção do Tribunal, que será sucedida por algumas micro-reformas que levarão o Supremo Tribunal Federal a ocupar um papel mais contido. Esse processo, no entanto, será lento e dependerá do grau de confiança que a sociedade brasileira passe a depositar no seu sistema representativo. Não creio, no entanto, que dentro do atual marco constitucional, chegaremos a ter uma Corte tímida e contida. Nossa tradição é de um Tribunal ativo e isso deve continuar. A contenção, portanto, deverá se dar no campo das competências de natureza não constitucionais que hoje obstaculizam a realização racional de uma jurisdição tipicamente constitucional.
_______________
Oscar Vilhena Vieira é professor de Direito Constitucional da FGV Direito SP, mestre pela Universidade de Columbia, doutor pela USP e pós-doutor em Oxford.
Israel Nonato é editor do blog Os Constitucionalistas. Graduado em Direito pela UnB. Estudou Direito Constitucional e Eleitoral no IDP. Nessa entrevista, contou com sugestões de Rodrigo Haidar, Antonio Suxberger e Alonso Freire, aos quais agradece imensamente.
Foto: arquivo pessoal do entrevistado.