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Centro de Estudos Constitucionais e de Gestão Pública

MORALIZAR A POLÍTICA VIA ESTADO DE DIREITO: Política e ética são inconciliáveis?

 MORALIZAR A POLÍTICA VIA ESTADO DE DIREITO: Política e ética são inconciliáveis?

 

Por Sergio Tamer

 

Quais as relações que concretamente existem entre a ética e a política? Existe uma ética pública separada da ética privada? O que se vê é que o Brasil saltou de um patrimonialismo oligárquico – até recentemente praticado – para ingressar nos tempos nebulosos do aparelhamento das instituições públicas, este promovido sob a bandeira dos mais altos propósitos de Estado.

Nesse contexto, tudo passou a se justificar desde o fortalecimento de agremiações políticas, passando pela consolidação de ideologias e de benefícios sociais que seriam levados aos mais pobres, até chegar, enfim, à argumentação dialética de um amplo e duradouro (ou seria perene?) projeto de poder. O que seria vedado ou não permitido para o privado passou a ser, portanto, aceito e tolerado no âmbito público. Afinal, tantas políticas em favor dos mais desvalidos e tantas intenções nobres e elevadas precisavam, por essa ótica, fortalecer cada vez mais as estruturas de apoio e seus satélites, pessoas físicas ou jurídicas, o que ensejaria generosos e fartos financiamentos com verba pública, ainda que por meios e procedimentos “fora da curva”.

Os fins justificavam os meios. E nesse meio o princípio “legalidade” era apenas uma palavra que não poderia se opor a tão alvissareiros desideratos humanistas. Filósofos festejados em São Paulo no meio universitário, a exemplo de Maria Helena Chauí e outros nem tanto, passaram a defender a existência de uma ética pública distinta da ética privada. Logo, a ética política cidadã, inerente ao mais comum dos mortais, não seria admissível nas tomadas de decisões por parte dos profissionais da política (presidentes, governadores, dirigentes de órgãos estatais e outros atores do primeiro escalão), pois seria permitido “adaptar” os princípios e convicções morais às circunstâncias políticas concretas, sobretudo em casos difíceis que pudessem ocorrer.

Assim, se a tensão entre ética e política é constante, os ingredientes nacionais postos dessa maneira aumentaram ainda mais a temperatura a ponto de ferver e derramar o caldo cultural e político de nosso sistema de governo.

Ao analisar o problema da ética e da política, o professor espanhol Eusebio Fernandez Garcia, da Universidade Carlos III, de Madrid, propõe uma “ética das convicções responsáveis” onde a figura do “político moral” subordina a “habilidade e a oportunidade política à ética e dobra seu joelho ante o direito”. O que isso significa e como acontece?

Com base nos estudos de José Luis López-Aranguren (Ética y política, 1968), Eusebio Garcia analisou quatro formas de questionar essa conflituosa relação. A primeira delas seria por meio do (1) “realismo político”, corrente que entende que a moral é um mero idealismo, no sentido pejorativo da palavra. Por esse entendimento, o âmbito apropriado do ético é o privado. O moral e o político são incompatíveis e, portanto, “quem desejar atuar na política terá que prescindir da moral”. A segunda maneira de conceber a relação – diz Garcia – também mantém a (2) impossibilidade de conjugar o ético e o político, mas a diferença em relação ao “realismo político” é que neste caso se escolhe a ética. A terceira posição vive essa relação de uma (3) maneira "trágica": quem se encontra nela sente ao mesmo tempo a exigência moral e a exigência política, mas não pode satisfazer a ambas. Não pode preferir e tampouco prescindir. É uma impossibilidade insuperável e, portanto, trágica: o homem tem de ser moral, tem também que ser político e não pode sê-lo conjuntamente. Para López- -Aranguren, não há saída para ele. Na quarta concepção a relação entre ética e política é vivida (4) "dramaticamente". Se diferencia das três anteriores pois não parte do pressuposto da “impossibilidade absoluta”, mas de uma “problematicidade constitutiva da relação entre a ética e a política”. Sua característica mais peculiar é a tensão entre a luta pela moral e o compromisso político.

Dessa maneira, das quatro possibilidades de se questionar as conexões entre a ética e a política, Eusebio Garcia entende que a quarta postura é a que parece ter mais possibilidades de nos ser útil no momento de se tentar compreender os fenômenos éticos e políticos e suas relações. Para ele, a harmonia total entre a ética e a política, de uma relação não-problemática, somente pode ocorrer a partir de postulados fundamentalistas (partidários de subordinar a política a uma ética fechada e absoluta) ou totalitários (partidários de subordinar as éticas a uma só política que se considera a única, verdadeira e justa).

Assim colocadas as coisas, a atividade política democrática deve reger-se e se subordinar ao Direito e às leis a fim de que se evite a arbitrariedade do poder político. Não qualquer Direito, mas um Direito que tenha valores da tradição liberal, democrática e de direitos humanos, tradição que possibilitou o nascimento do moderno conceito de Estado de Direito (sem esses valores o Estado de Direito seria um mero sistema político autoritário e ditatorial). E em sendo a relação entre ética e política tensa e dramática, uma e outra estão condenadas a compartir “o mais interessante de suas vidas” já que desde a Idade Moderna ocidental nos demos conta de que a moral tem muitas deficiências políticas e a política, por sua vez, também as tem de natureza moral.

Todavia, o âmbito da política deve permanecer dentro do âmbito da ética, ainda que não coincidam e nem devem coincidir em uma sociedade pluralista, mas, apesar disso, deve a política desenvolver- -se dentro da moldura da ética. Nesse sentido haveria a moralização da política através do Direito e das leis de um Estado de Direito.

Quanto à existência de duas éticas para o político – uma como ser humano que aspira a uma vida decente e outra como político que tem que atuar responsavelmente, tendo sempre como horizonte o bem-estar da polis e dos seus cidadãos – o catedrático de Filosofia do Direito madrilenho, aqui muitas vezes referido, afirma que não seria correto eticamente sustentar que existem dois tipos de ética, pois as mínimas normas morais que uma sociedade considera adequadas e válidas o são de maneira igual para todos, sejam cidadãos comuns ou integrantes da alta cúpula governativa.

O “realismo político”, como aqui tratado, ou a realpolitik que os alemães chamaram em um dado momento histórico de “a política dos interesses práticos” – e que alguns “filósofos” e mandatários brasileiros tentaram nos impor de forma enviesada -, felizmente está posto fora do jogo democrático.

Sergio Victor Tamer é Advogado, ex-presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB, presidente do Centro de Estudos Constitucionais e de Gestão Pública – CECGP, mestre em Direito Público pela UFPe e doutor em Direito Constitucional pela Universidade de Salamanca.