O entendimento do Supremo e o estado de inocência sob ataque
A prerrogativa jurídica da liberdade — que possui extração constitucional (CF, art. 5º, LXI e LXV) — não pode ser ofendida por interpretações doutrinárias ou jurisprudenciais que culminem por consagrar, paradoxalmente, em detrimento de direitos e garantias fundamentais proclamados pela Constituição da República, a ideologia da lei e da ordem.
O postulado constitucional da presunção de inocência impede que o Estado trate, como se culpado fosse, aquele que ainda não sofreu condenação penal irrecorrível (STF – HC 96.095/SP, relator o ministro Celso de Mello).
Nas primeiras lições de Teoria Geral do Estado (esse era o antigo nome da disciplina), aprendíamos, pressurosos, as diversas conformações de nações politicamente organizadas em Estado, estruturas e sistemas políticos e, muito bem explicada, a diferença fundamental entre autocracia e Estado de Direito, este o rule of law anglo-saxão, contraposto ao voluntarismo monárquico (princeps placuit).
Parece insensato, mas nestes tempos estranhos que estamos a viver, mostra-se oportuno revisitar esses rudimentos e reencontrar o básico, o elementar.
Sem abraçar apaixonadamente o positivismo de Kelsen, pareceu sempre mais civilizado, seguro e consentâneo com as ideias de liberdade orechtsstaat (Estado de Direito), mas o democrático, com contornos e competências definidos por uma legítima Grundnorm (Lei Fundamental), e não simplesmente um estado de legalidade qualquer.
Por ser obviamente civilizado e vantajoso como garantia dos cidadãos contra o autoritarismo, o voluntarismo, o narcisismo, a arrogância e, sobretudo, a autorreferência exacerbada dos que exercem o poder, o sistema que se suporta em uma constituição democrática, rígida e analítica, se mostra atemporal e opção de liberdade adequada em qualquer circunstância.
Melhor uma legítima constituição democrática e leis subalternas que nos governem do que Varões de Plutarco a ditarem casuísticas soluções de justiça segundo os anseios deles próprios ou da turba apaixonada das ruas. A segurança e as franquias moram na Constituição e no ordenamento jurídico, não nos homens que governam ou interpretam as leis.
Temos nós, promulgada em 1988, a Constituição (Cidadã) da República Federativa do Brasil, plasmada com lágrimas e dor, em cujo corpo permanente se veem insculpidas franquias e direitos básicos, que são inabdicáveis e insuprimíveis (mesmo pelo poder constituinte derivado que é o Congresso Nacional — cf. CF, artigo 60, parágrafo 4º, inciso IV).
Entre essas garantias intocáveis, encontra-se aquela que cinzelou, de modo indelével, a indiscutível inocência da pessoa humana, até que contra ela sobrevenha sentença penal condenatória transitada em julgado. É princípio da não culpabilidade — ou presunção de inocência — que alguns brasileiros, menos afeitos às liberdades e mais próximos do conceito de autoridade, querem revogar. O discurso é o de combater a impunidade, pagando-se qualquer preço.
Mas como, se o que se lê no artigo 5º, inciso LVII, da nossa Constituição é que“ninguém será considerado culpado até o transito em julgado de sentença penal condenatória”?
Aí está. Fica proibido se considerar culpado aquele em cujo desfavor não se acha lavrada condenação passada em julgado. Claro assim, como o sol a pino em meio-dia de verão.
Como, então, se “interpretar” esse texto contra a letra e a alma da Carta Política?
Argumenta-se: mas não se está negando a inocência constitucionalmente presumida, o que se está a fazer é mandar para o cárcere uma pessoa que continua inocente por força da dicção constitucional, mas que já tenha sofrido uma condenação ainda que provisória. E provisória será sempre, antes do trânsito em julgado…
Ora, alguém há que possa sustentar ser justo, moral ou aceitável mandar recolher à prisão um inocente? Seria ético o Estado que, mesmo proclamando a inocência do indivíduo por força de norma constitucional, o mandasse para as galés?
Cabe refletir: se a erosão hermenêutica, mesmo em aberto confronto com a Lei Maior, levar de arrasto essa garantia de liberdade, quais outras serão engolfadas pela correnteza da “lei e da ordem” no porvir?
Faz pensar, e muito.
José Roberto Batochio é advogado criminalista, foi presidente do Conselho Federal da OAB e deputado federal por São Paulo.