Supremo Tribunal Federal não pode relativizar presunção de inocência
Encontram-se, no momento, em julgamento, perante o Supremo Tribunal Federal, as Ações Declaratórias de Constitucionalidade 43 e 44, na relatoria do ministro Marco Aurélio, de proposição do Partido Ecológico Nacional (PEN) e do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil. Nelas, solicita-se que seja declarado constitucional o artigo 283 do Código de Processo Penal, por estar rigorosamente de acordo com o artigo 5º, inciso LVII, da Lei Suprema, cláusula pétrea no direito constitucional brasileiro.
Rezam ambos os artigos o seguinte:
“Art. 283. Ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva. (Redação dada pela Lei nº 12.403, de 2011).
§ 1º As medidas cautelares previstas neste Título não se aplicam à infração a que não for isolada, cumulativa ou alternativamente cominada pena privativa de liberdade. (Incluído pela Lei nº 12.403, de 2011).
§ 2º A prisão poderá ser efetuada em qualquer dia e a qualquer hora, respeitadas as restrições relativas à inviolabilidade do domicílio. (Incluído pela Lei nº 12.403, de 2011).
Art. 5º…..
LVII – ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória; (….)”.
Os pedidos de declaração da constitucionalidade dessas normas infra legais decorrem da decisão não vinculativa do STF no HC 126.292, admitindo que execução provisória da pena não transitada em julgado após condenação em grau de apelação não ofende o princípio da presunção de inocência e da não culpabilidade. Essa decisão foi tomada por maioria, com quatro eminentes ministros e professores de Direito Constitucional entendendo que tal sinalização feriria um dos princípios fundamentais da Carta Maior brasileira, sobre agravar, consideravelmente, o já macabro sistema carcerário brasileiro.
Acresce-se o fato de que decisão anterior do Supremo Tribunal Federal, no HC 83.028 de 2010, só admitira a execução de pena após o trânsito em julgado da decisão.
É de se lembrar que fui eu a propor, pela primeira vez, a instituição de uma Ação Declaratória de Constitucionalidade, pelo Estado de São Paulo, em 25/1/1992; para evitar que o “emendão”, proposto pelo então presidente Collor, admitisse suspensão de decisões contrárias às leis inconstitucionais, sob a mera alegação de “grave lesão à economia”, sem exame de fundamentos jurídicos. Roberto Campos ligou-me, naquela oportunidade, encampando a ideia, e o então subchefe da Casa Civil do presidente Collor, hoje ministro Gilmar Mendes, auxiliou o então relator da EC 3/99 na Câmara dos Deputados a cunhar perfil um pouco diferente à minha proposta, que era dar legitimidade ativa a todas as entidades elencadas no artigo 103 da Constituição. Cheguei a patrocinar ação direta de inconstitucionalidade pela Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) contra o elenco reduzido dos legitimados, vício, todavia, que só foi corrigido com a EC 45/2003.
A ideia de controle concentrado para reconhecimento da constitucionalidade de normas objetivava evitar discussões que se prolongavam em instâncias inferiores sobre a validade de leis.
A proposição, portanto, das duas ADCs, em face da intranquilidade e insegurança causadas pelo HC 126.292, está plenamente justificada.
Com Antonio Cláudio Mariz de Oliveira, escrevi para O Estado de S. Paulo artigo intitulado Prisão antecipada: erro judiciário à vista (O Estado de S. Paulo, 4/3/2016, p. A2 — Espaço Aberto) logo após aquela decisão, que foi fortemente criticada por professores e operadores do Direito — exceção feita a parcela do Ministério Público e magistrados de primeira instância, que entendeu, em face da morosidade tão criticada da Justiça, que esperar o trânsito em julgado das decisões seria retardar muito tempo a aplicação de penas a praticantes de delitos criminais ou de crimes de colarinho branco, hoje tão “na moda”.
À evidência, a morosidade da Justiça deve-se menos aos operadores do Direito do que à própria magistratura — embora justificada pela excessiva litigiosidade do povo brasileiro —, em cujas instâncias judiciais transitam mais de 100 milhões de processos, vale dizer, um processo para cada dois brasileiros. Se considerarmos o número de crianças, velhos e incapazes — material ou judicialmente — de ingressar em juízo, poder-se-ia dizer que há uma ação para cada brasileiro, havendo, no Brasil, em torno de 17,5 mil magistrados.
Há, todavia, um escandaloso, indecente, imoral, desumano e digno dos campos de concentração nazistas, sistema carcerário brasileiro, verdadeira escola do crime. Agruparem-se seres humanos condenados em celas, em que, muitas vezes, os presos são obrigados a dormir sentados ou se revezar em turnos para que outros presos possam se deitar, é crime diariamente praticado pelo Estado brasileiro contra os encarcerados.
A pretensão do MP, à evidência, piorará consideravelmente o já desesperador sistema carcerário brasileiro.
Acresça-se que, em tribunais de segunda instância, há inúmeras câmaras penais, podendo haver divergência nas decisões tomadas, com absolvições e condenações para o mesmo tipo de crime. É de se lembrar que só o Tribunal de Justiça de São Paulo tem 360 desembargadores, sendo a maior corte de julgamento do mundo.
Há, por fim, a considerar que as pessoas podem ser condenadas em segunda instância e absolvidas em instância superior, ensejando pedidos de indenização por dano moral e físico em face dos governos que as encarceraram — já que o Ministério Público que pede a condenação não responde por seus atos —, enfraquecendo-se, assim, as já combalidas burras oficiais.
Não sem razão, o constituinte tornou cláusula pétrea a presunção de inocência, não se justificando que possa o Supremo Tribunal Federal arvorar-se em poder Constituinte originário — já que derivado não poderia ser, diante da cláusula pétrea do inciso LVII do artigo 5º — e declarar que, onde escrito está “será considerado culpado após o trânsito em julgado” deve-se ler “será considerado culpado após decisão de segunda instância”, devendo sua pena ser aplicada desde então.
Como velho professor de Direito e titular que fui da cadeira de Direito Constitucional na Faculdade de Direito da Universidade Mackenzie, e apesar de todo respeito que tenho pelos ínclitos ministros da Suprema Corte, não posso concordar que tenham o poder de mudar a Constituição, nem de relativizar a tal ponto a lei suprema, até porque, pelo artigo 102, são “guardiões da Constituição” e não seus “modificadores”, ao sabor das paixões populares ou da mídia.
Prefiro ser “politicamente incorreto”, mas fiel ao meu compromisso de defender, enquanto professor de Direito, a lei suprema de nosso país.
Espero, pois, que as duas ADCs sejam providas.
Ives Gandra da Silva Martins é advogado, professor emérito das Universidades Mackenzie e UniFMU e da Escola de Comando e Estado Maior do Exército, é presidente do Conselho de Estudos Jurídicos da Federação do Comércio do Estado de São Paulo, do Centro de Extensão Universitária e da Academia Paulista de Letras.