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Procurador de Justiça diz que a falta de fundamentação no recebimento da denúncia penal gera nulidade…

 Decisão que recebe denúncia deve ser fundamentada, sob pena de nulidade: art. 93, IX, da Constituição

 

O Procurador de Justiça Rômulo de Andrade Moreira emitiu Parecer nos autos da Apelação Criminal n. 0300514-56.2014.8.05.0103 em que pugnou pela nulidade do processo desde a decisão que recebeu a denúncia por ausência de fundamentação.

Segundo ele, o ato de recebimento da denúncia nos delitos que preveem defesa preliminar, como é o caso do tráfico de drogas, constitui decisão judicial, uma vez que possui conteúdo decisório, e, por conseguinte, é-lhe exigível fundamentação, em consonância com o art. 93, IX, da Constituição Federal, sob pena de nulidade.

Evidentemente que o recebimento da denúncia, após a resposta preliminar, como todo ato decisório deverá ser devidamente fundamentado, pois “nos procedimentos especiais em que o legislador exigiu defesa preliminar, é evidente a necessidade de motivação da decisão que recebe a denúncia, eis que, nesse tipo específico de procedimento, faculta-se à parte a manifestação pretérita ao ato decisório que deflagra a ação penal, podendo ela, inclusive, ofertar provas, tudo em homenagem ao princípio constitucional do contraditório. A ausência de análise das preliminares suscitadas pelo denunciado em defesa preliminar constitui vício que macula o procedimento e requer a declaração de sua nulidade como forma de cessar o constrangimento. Ordem concedida para anular o processo até a decisão que recebeu a denúncia, inclusive” (Superior Tribunal de Justiça – 6ª Turma- HC 89.765 – Rel. Jane Silva – j. 26.02.2008 – DJE 24.03.2008).

A temática ainda gera divergências na doutrina. Corrente distinta entende que o ato do juiz que recebe a denúncia equivale a despacho (embora tenha também conteúdo decisório), e não decisão, razão pela qual a fundamentação não seria obrigatória e não caberia recurso. A fundamentação, segundo tal linha de raciocínio, seria exigida apenas quando o juiz rejeitar a denúncia ou queixa, sendo cabível, neste caso, Recurso em Sentido Estrito.

Leia abaixo a íntegra de mais um brilhante Parecer do Procurador de Justiça Rômulo de Andrade Moreira, o qual lançou recentemente o livro “O Procedimento Comum” pela Editora Empório do Direito (confira aqui), além de ser articulista do site, com diversos artigos (confira aqui).


MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DA BAHIA

PROCURADORIA DE JUSTIÇA CRIMINAL

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PROCESSO Nº. 0300514-56.2014.8.05.0103 – APELAÇÃO

ORGÃO JULGADOR: PRIMEIRA CÂMARA CRIMINAL – SEGUNDA TURMA

APELADO: MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DA BAHIA

PARECER Nº. 7859/2015

Trata-se de uma apelação criminal interposta por (…), irresignado com a sentença condenatória proferida nos autos da ação penal nº. 0300514-56.2014.8.05.0103, que tramitou perante o Juízo da 1ª. Vara Criminal de Ilhéus, cujo teor o condenou a uma pena de sete anos de reclusão, pela prática da conduta tipificada no artigo 33, caput, da Lei nº. 11.343/06, em regime inicial fechado.

Oferecida defesa preliminar (fls. 75/80), ocorreu a audiência de instrução e julgamento, na qual foram ouvidas as testemunhas (fls. 109), e, em seguida, procedeu-se o interrogatório (fls. 108).

Ultimada a instrução criminal e oferecidas as alegações finais, do Ministério Público às fls. 135/140, e do apelante às fls. 145/157, sobreveio sentença (fls. 158/161).

Inconformado, o apelante interpôs o presente recurso (fls. 174), pleiteando, em epítome, nas razões recursais de fls. 175/198, a sua absolvição.

Por sua vez, em sede de contrarrazões (fls. 206/210), o Ministério Público entendeu que a sentença não deve ser reformada, pugnando seja negado provimento ao recurso de apelação interposto, ratificando in totum a decisão condenatória do Juízo a quo.

Eis um sucinto relatório.

Os autos foram encaminhados ao Ministério Público para o parecer.

Compulsando os autos, afere-se que o processo deve ser nulificado a partir das fls. 81 (inclusive), tendo em vista a ausência do recebimento da denúncia devidamente fundamentado, violando, assim, o art. 56 da Lei nº. 11.343/06 e o art. 93, IX, da Constituição Federal.

Evidentemente que o recebimento da denúncia, após a resposta preliminar, como todo ato decisório deverá ser devidamente fundamentado, pois “nos procedimentos especiais em que o legislador exigiu defesa preliminar, é evidente a necessidade de motivação da decisão que recebe a denúncia, eis que, nesse tipo específico de procedimento, faculta-se à parte a manifestação pretérita ao ato decisório que deflagra a ação penal, podendo ela, inclusive, ofertar provas, tudo em homenagem ao princípio constitucional do contraditório. A ausência de análise das preliminares suscitadas pelo denunciado em defesa preliminar constitui vício que macula o procedimento e requer a declaração de sua nulidade como forma de cessar o constrangimento. Ordem concedida para anular o processo até a decisão que recebeu a denúncia, inclusive” (Superior Tribunal de Justiça – 6ª Turma- HC 89.765 – Rel. Jane Silva – j. 26.02.2008 – DJE 24.03.2008).

Neste sentido, saliente-se a lição de Renato Brasileiro:

Apesar de a jurisprudência entender que, em regra, não há necessidade de se fundamentar o recebimento da peça acusatória, ressalva importante deve ser feita quanto aos procedimentos que preveem defesa preliminar (peça da defesa apresentada entre o oferecimento e o recebimento da peça acusatória). Nesses casos, os próprios Tribunais impõem a necessidade de motivação do ato de recebimento da exordial acusatória.”[1]  (Grifo nosso).

A propósito, vejamos trecho da decisão da Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça, no Habeas Corpus nº. 282.509 (j. 19.11.2013 – public.22.11.2013), de relatoria do Ministro Rogério Schietti Cruz, publicada no Boletim nº. 258 do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais – IBCCRIM, in verbis:

A motivação dos atos jurisdicionais, conforme imposição do artigo 93, IX, da Constituição Federal (“Todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade…”), funciona como garantia da atuação imparcial e secundum legis (sentido lato) do órgão julgador. Como bem leciona ANTÔNIO MAGALHÃES GOMES FILHO, a motivação exerce quer uma função política, quer uma garantia processual. Como função política, a motivação das decisões judiciais “transcende o âmbito próprio do processo” (A motivação das decisões penais. São Paulo: RT, 2001, p. 80), alcançando o próprio povo em nome do qual a decisão é tomada, o que a legitima como ato típico de um regime democrático. Como garantia processual, dirige-se à dinâmica interna ou à técnica do processo, assegurando às partes um mecanismo formal de controle dos atos judiciais decisórios, de modo a ‘atender a certas necessidades de racionalização e eficiência da atividade jurisdicional’.”[2]

No Superior Tribunal de Justiça e no Supremo Tribunal Federal, várias são as decisões no sentido da observância do art. 93, IX, da Constituição Federal:

Trata-se de ideia-força, voltada ao prestígio do Estado Democrático de Direito: as decisões do Poder Judiciário devem ser motivadas (art. 93, IX, CF). Neste mister, é facultado ao tribunal reportar-se ao parecer ministerial ou aos termos do ato atacado, todavia, a bem de se prestigiar a dialeticidade, expressão do contraditório, é imperioso que acrescente fundamentação que seja de sua autoria. Ordem concedida para reconhecer a nulidade do feito, devendo-se refazer o julgamento do aresto atacado, promovendo-se a fundamentação do decisum, de modo a enfrentar os argumentos contrapostos no recurso” (Superior Tribunal de Justiça – 6ª T.- Habeas Corpus nº. 90.684 – Relatora Ministra Maria Thereza de Assis Moura).

Recurso Extraordinário nº. 540.995-RJ – Relator Ministro Menezes de Direito – A garantia constitucional estatuída no artigo 93, inciso IX, da Constituição Federal, segundo a qual todas as decisões judiciais devem ser fundamentadas, é exigência inerente ao Estado Democrático de Direito e, por outro, é instrumento para viabilizar o controle das decisões judiciais e assegurar o exercício do direito de defesa. A decisão judicial não é um ato autoritário, um ato que nasce do arbítrio do julgador, daí a necessidade da sua apropriada fundamentação. A lavratura do acórdão dá consequência à garantia constitucional da motivação dos julgados. 4. Recurso extraordinário conhecido e provido.

O Processo Penal, em um Estado Democrático de Direito, é necessário para a garantia dos direitos do acusado. Não é um mero instrumento de efetivação do Direito Penal, mas, verdadeiramente, um instrumento de satisfação de direitos humanos fundamentais e, sobretudo, uma garantia contra o arbítrio do Estado. Aliás, sobre processo, já afirmou o mestre Calmon de Passos, não ser “algo que opera como simples meio, instrumento, sim um elemento que integra o próprio ser do Direito. A relação entre o chamado direito material e o processo não é uma relação meio/fim, instrumental, como se tem proclamado com tanta ênfase, ultimamente, por força do prestígio de seus arautos, sim uma relação integrativa, orgânica, substancial.”[3]  Nesta mesma obra, o eminente processualista adverte que o “devido processo constitucional jurisdicional (como ele prefere designar), para evitar sofismas e distorções maliciosas, não é sinônimo de formalismo, nem culto da forma pela forma, do rito pelo rito, sim um complexo de garantias mínimas contra o subjetivismo e o arbítrio dos que têm poder de decidir.”[4]

Certamente sem um processo penal efetivamente garantidor, não podemos imaginar vivermos em uma verdadeira democracia[5]. Um texto processual penal deve trazer ínsita a certeza de que ao acusado, apesar do crime supostamente praticado, deve ser garantida a fruição de seus direitos previstos especialmente na Constituição do Estado Democrático de Direito.

Como afirma Ada Pelegrini Grinover, “o processo penal não pode ser entendido, apenas, como instrumento de persecução do réu. O processo penal se faz também – e até primacialmente – para a garantia do acusado(…) Por isso é que no Estado de direito o processo penal não pode deixar de representar tutela da liberdade pessoal; e no tocante à persecução criminal deve constituir-se na antítese do despotismo, abandonando todo e qualquer aviltamento da personalidade humana. O processo é uma expressão de civilização e de cultura e consequentemente se submete aos limites impostos pelo reconhecimento dos valores da dignidade do homem.”[6](Grifo nosso).

Aliás, sobre o procedimento em matéria processual penal e bem a propósito, ensina Antonio Scarance Fernandes que “a incorporação, nos ordenamentos, de modelos alternativos aos procedimentos comuns ou ordinários gera para as partes o direito a que, presentes os requisitos legais, sejam obrigatoriamente seguidos. (…)Em relação à extensão do procedimento, têm as partes direito aos atos e fases que formam o conjunto procedimental. Em síntese, têm direito à integralidade do procedimento.”[7] (também sublinhamos).

Ademais, “o procedimento pode ser visto como as regras de um jogo, que devem ser obedecidas para que seja legítima a competição. O cumprimento dos atos e fases procedimentais se impõe tanto ao Juiz quanto às partes e a todos os sujeitos que participarem do processo, isso porque o procedimento é integral. Além disso, prevendo a lei um procedimento específico para determinada relação de Direito Material controvertida, não cabe ao Juiz dispensá-la, impondo-se sua observância, em respeito ao devido processo legal. Justifica-se isso em virtude de os atos previstos na cadeia procedimental serem adequados à tutela de determinadas situações, daí serem imprescindíveis, ou seja, o procedimento ostenta uma tipicidade.”[8] (Grifo nosso).

Como afirma Gilberto Thums, no Estado Democrático de Direito “o rito processual deve representar uma garantia ao acusado de que terá a seu dispor todos os instrumentos de defesa e que não serão violados os seus direitos fundamentais assegurados na Constituição e nas leis, retratados no princípio do due processo of law.” Neste sentido, conclui o autor que “o rito desempenha um papel importante, tanto para o réu quanto para o jurisdicionado.”[9] (Grifo nosso).

A propósito, por votação unânime, a Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal concedeu Habeas Corpus(HC 93387) a um condenado por tráfico de drogas: “É sempre importante enfatizar, presente esse contexto, que a estrita observância da forma processual representa garantia plena de liberdade”, afirmou o Ministro Celso de Mello. (Grifo nosso).

Vejamos a lição de Marcus Vinícius Pimenta Lopes:

“(…) Garantia, etimologicamente, está ligada à ideia de uma posição de segurança, que vai contra a incerteza e a fragilidade. Anota Bonavides (2007, p. 525) que ‘Existe garantia sempre em face de um interesse que demanda proteção e de um perigo que se deve conjurar’. Por sua vez, ensina Baracho (1984, p. 138) que ‘a própria palavra garantia é usada como sinônimo de proteção jurídico-política. O conceito vem do Direito Privado, de onde decorre sua acepção geral e seu conteúdo técnico-jurídico; garantir significa assegurar de modo efetivo’. Ainda, e com a habitual perfeição conceitual, diz Rui Barbosa (s/d, p. 193-194): “Direito ‘é a faculdade reconhecida, natural ou legal, de praticar ou não praticar certos atos’. Garantia ou segurança de um direito, é o requisito de legalidade, que o defende contra a ameaça de certas classes de atentados de ocorrência mais ou menos fácil”. Assim, garantia é uma ideia de contenção do poder. Visto o sentido de garantia – como contenção – poderemos iniciar uma associação mais clara da forma como garantia. (…). É por essa razão que disse o gênio Karl Popper (2007, p. 72) que as teorias ‘(…) não asseveram que algo exista ou ocorra; negam-no. Insistem na não-existência de certas coisas ou estados de coisas, proscrevendo ou proibindo, por assim dizer, essas coisas ou estados de coisas; afastam-nos’. Aplicando-se tal conceito ao Direito Democrático, temos, por exemplo, que se um sistema deve ser acusatório, logo ele não deve ser inquisitivo; e, se existe determinado procedimento (1) para a formação de um provimento final, logo, qualquer ato que difere dos enunciados normativos previstos para tal procedimento se apresenta como ilegal – pois fora da formulação autorizada pela lei democrática. Dessa maneira, a fórmula limita; pois ao prescrever um comportamento, impede que seja feito qualquer outro. E quanto às eventuais críticas ao formalismo, fazemos nossa a lição de Chiovenda (1969, p. 4):’Entre leigos abundam censuras às formas judiciais, sob a alegação de que as formas ensejam longas e inúteis querelas, e frequentemente a inobservância de uma forma pode acarretar a perda do direito; e ambicionam-se sistemas processuais simples e destituídos de formalidades. A experiência, todavia, tem demonstrado que as formas são necessárias no processo tanto ou mais que em qualquer outra relação jurídica; sua ausência carreia a desordem, a confusão e a incerteza’. A forma jurídica ao limitar o poder e proporcionar a segurança é, assim, garantia. (…)” [10]  (grifos nossos).

Ante o exposto, reiteramos que todos os atos processuais devem ser nulificados a partir das fls. 81 (inclusive) dos autos, conforme explicitado acima, salvaguardando, assim, o princípio constitucional do devido processo legal.

Por fim, prequestionamos, para efeito de recurso especial e extraordinário, o artigo 56 da Lei nº. 11.343/2006, além dos artigos 5º., LIV e LV, e 93, IX, ambos da Constituição Federal.

Salvador, 23 de setembro de 2015.

RÔMULO DE ANDRADE MOREIRA

Procurador de Justiça


Notas e Referências:

[1] Manual de Processo Penal. 2ª. ed. Salvador: Editora Juspodivm: 2014, p. 1235/1236.

[2] O DIREITO POR QUEM O FAZ – Superior Tribunal de Justiça. http://www.ibccrim.org.br/boletim_artigo/5112-O-DIREITO-POR-QUEM-O-FAZ-Superior-Tribunal-de-Justia. Acesso em 27 de março de 2015. Instituto Brasileiro de Ciências Criminais – Boletim nº 258 – Maio de 2014.

[3] Direito, Poder, Justiça e Processo, Rio de Janeiro: Forense, 1999, p. 68.

[4] Idem, p. 69.

[5] Apesar de que, como ensina Norberto Bobbio, “(…) a Democracia perfeita até agora não foi realizada em nenhuma parte do mundo, sendo utópica, portanto.” (Dicionário de Política, Brasília: Universidade de Brasília, 10ª. ed., 1997, p. 329).

[6] Liberdades Públicas e Processo Penal – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2ª. ed., 1982, pp. 20 e 52.

[7] Teoria Geral do Procedimento e o Procedimento no Processo Penal, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005, pp. 67/69.

[8] Luciana Russo, “Devido processo legal e direito ao procedimento adequado”, artigo publicado no jornal “O Estado do Paraná”, na edição do dia 26 de agosto de 2007.

[9] Sistemas Processuais Penais, Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2006, p. 181.

[10] A forma como garantia contra a pulsão vingativa do sistema penal.http://www.ibccrim.org.br/boletim_artigo/5224-A-forma-como-garantia-contra-a-pulsão-vingativa-do-sistema-penal. Acesso em 04 de dezembro de 2014.