Publicado por Saulo Henrique em JusBrasil
A Constituição brasileira é reconhecidamente uma “Carta Política”, sendo que o Supremo Tribunal Federal (STF) é o seu guardião, isto é, seu “último” intérprete, a última palavra sobre a vontade (interpretada) dos Poderes Constituinte Originário e Derivado.
Na concretização das normas jurídicas, notadamente nas constitucionais, direito e política convivem e se influenciam, apesar de Max Weber concebê-los (o Direito enquanto “Ciência”) como diferentes “vocações”. [1] E, desse umbilical relacionamento, surgem questões! Eis algumas:
1- Poderá o interprete da norma jurídica (constitucional) fundar-se em elementos de pura razão e objetividade – como é a ambição do Direito –, ou poderá recair na discricionariedade e na subjetividade, contumazmente presente em ‘decisões políticas’?
2 – Entre estes dois extremos, a sociedade ou mesmo a comunidade jurídica detém ‘legitimidade’ ou pode exercer algum tipo de “controle”?
Sobre estas questões, bom recordar observações feitas por um dos Ministros do STF, então em exercício da Colenda Corte Suprema, in verbis:
“a atuação de juizes e tribunais é preservada do contágio político por meio da independência do Judiciário em relação aos demais Poderes e por sua vinculação ao Direito, que constitui um mundo autônomo, tanto do ponto de vista normativo quanto doutrinário. Essa visão, inspirada pelo formalismo jurídico, apresenta inúmeras insuficiências teóricas e enfrenta boa quantidade de objeções, em uma era marcada pela complexidade da interpretação jurídica e por forte interação do Judiciário com outros atores políticos relevantes.” [2]
Para esclarecer esse ponto, necessário um pouco de história das (modificações de) decisões do STF ao longo das décadas. Trago duas lembradas pelo eminente procurador de Justiça e erudido jurista, Dr. Lênio Luiz Streck [3], senão vejamos:
a) Quem lembra da Lei Fleury (Lei 5.941/73), elaborada no período marcado pela ditadura no Brasil, criada para “proteger” o Delegado Sérgio Fernando Paranhos Fleury, que estava à frente da operação que matou Carlos Marighella – considerado o “inimigo numero um” do regime militar que golpeou em 1964?
Segundo Dr. Lênio Streck, em suas observações, “apesar das inúmeras pressões e intimidações que o Promotor Hélio Bicudo estava sofrendo, conseguiu reunir evidencias suficientes para o indiciamento do delegado, e, segundo a lei vigente da época, os indiciados deveriam ser presos.” Advinda a “Lei Fleury”, essa regra foi modificada para benefício do Delegado.
O eminente doutrinador chamou esse fenômeno de “fator Fleury”, porquanto modificador circunstancial de decisões das Cortes Superiores, modificando seus próprios precedentes e súmulas, ou promovendo alterações legislativas com caráter político.
b) Quem lembra, ainda, da Súmula 691/STF, impedindo a interposição de Habeas Corpus no STF de decisão denegatória de liminar (monocrática, portanto) em sede de habeas corpus interposto perante o STJ?
O próprio STF, contornando sua verbete sumular, quando do julgamento do “Caso Maluf”, passou a admitir Habeas Corpus de decisão que negou liminar em Habeas Corpus no STJ, se – e somente se – demonstrado o “fumus boni juris” (fumaça do bom direito) e o “periculum in mora”(perigo da demora).
Dois exemplos trazidos pelo ilustre jurista do Rio Grande do Sul e que, a nosso ver, são suficientes para que aqueles que conhecem bem o sistema judicial, e o ordenamento jurídico brasileiro, saibam que tal decisão do STF, no caso Maluff, foi “circunstancial.” Não houve, nela, nenhum sentimento “constitucional-processual.”
Pois bem.
Do passado para o presente, vem à tona, em nossos dias, a discussão sobre cabimento de embargos infringentes no caso “Mensalão.” Eis a suma da controvérsia: Para 5 Ministros, cabem, em nome da ampla defesa, e por força do Regimento Interno do STF. Para 5 outros Ministros, não caberia, pois perpetuaria os processos no STF que é a última instância – promovendo impunidade e levando os crimes à prescrição –, e porque a Lei Federal nº 8038/90 teria “revogado tacitamente” o Regimento Interno do STF (RISTF).
A decisão final, o desempate, cabe ao Ministro Celso Mello, conhecidamente de posições garantistas naquela Suprema Corte.
Vê-se claramente que a sociedade quer que os infringentes não sejam admitidos, apoiando a corrente encabeçada pelo Ministro Joaquim Barbosa, então Presidente do STF e Relator do Processo do Mensalão. Mas, em um julgamento dessa magnitude, e tendo em vista a concretização da norma maior que é a Carta Política de 1988, o que se “quer” é balizado pelo que se “pode” e pelo que se “deve” fazer.
Nessa quadra, eis a questão final a ser respondida: Celso Mello “deve” dar ao entrevero interpretação “conforme a constituição” – que é uma das linhas admitidas no STF e no Direito Constitucional Brasileiro –, admitindo os embargos infringentes em nome do princípio da mais ampla defesa, postulado este antevisto na Constituição da República?
A resposta positiva a esta questão pode até não ser justa, mas as perguntas (referindo-se ao caráter técnico-jurídico da decisão) são outras: é razoável que assim seja – em prol da ampla defesa? Outra decorrente da primeira: É legítima tal decisão (ou seja, o Ministro, em sua independência funcional, enquanto Julgador e membro do Poder Judiciário, “pode” decidir contra a vontade da sociedade e da comunidade jurídica – que flerta com a tese de não cabimento dos infringentes no STF?)?
O Ministro Celso Mello, por toda sua trajetória, parece experiente e sóbrio o bastante para não ser óbvio. Por esta razão, há que se ver com reservas a suposta ‘antecipação de voto’ sua – como vem se especulando – na entrevista dada na noite de quinta-feira (12|09|2013), quando indagado sobre ‘o voto decisivo’ na discussão então empatada (5×5) na Suprema Corte sobre a admissibilidade ou não de recurso de embargos infringentes no âmbito do STF.
De fato, não nos parece que a decisão dele, em 2012, flertando com a tese de cabimento dos infringentes no âmbito do STF, possa impedí-lo de modificar sua decisão no caso em debate, harmonizando-se coma tese encabeçada pelo Ministro Joaquim Barbosa e outros, enterrando de vez a esperança dos “mensaleiros” de conseguirem um redimensionamento de suas penas e, em alguns casos, de levarem, pelo decurso do tempo, à prescrição da pretensão punitiva do Estado.
Não custa lembrar que ele – Celso Mello – não está vinculado aos próprios votos (não existe “Voto Vinculante” no ordenamento pátrio), nem a precedentes que, como já mencionamos acima (caso Maluff e Fleury), podem e até mesmo devem ser modificados em razão da movibilidade do direito e da sensibilidade dos intérpretes da norma jurídica frente aos anseios atualizados da justiça e da sociedade, na época do julgamento.
Sem embargos de pensamentos contrários, a tese de cabimento dos embargos infringentes no STF parece ser – juridicamente – admissível. A Lei 8038 é de 1990. Até hoje, passadas mais de duas décadas, não houve qualquer discussão sobre "revogação tácita" do Regimento Interno do STF (RISTF). Na referida Lei, o artigo 2º, caput, foi introduzido pela Lei Federal nº 8658/93. O artigo 20 da Lei 8038/90 dispõe que o Código de Processo Penal e o RISTF podem ser aplicados, subsidiariamente, nas ações penais originárias do STF. Isso mostra que a intenção da Lei 8038/90 não foi – s.m.j – revogar o RISTF, o que afastaria a tese encabeçada pelo Ministro Joaquim Barbosa da “ratio legis.”
Assim, admitindo que não houve revogação tácita do RISTF, os embargos infringentes poderiam ser usados, mesmo no STF, para modificar erros encontrados, por exemplo, na dosimetria das penas, dentre outros erros de caráter material e até mesmo processual que acarretem impacto à harmonia dos princípios constitucionais da isonomia, razoabilidade dentre outros.
Por outro lado, a tese da suposta "revogação tácita" do RISTF certamente tem um viés mais político que jurídico. Afinal, trata-se de entendimento calculado a causar prejuízo aos réus, em ações penais da competência originária da Corte Maior da República, a qual tem o dever (ou deveria) de prestigiar e resguardar a garantia fundamental da "ampla defesa". Com efeito, retirar de circulação a previsão dos infringentes, antevista no RISTF, com tal interpretação, equivale a reduzir a capacidade da Defesa impugnar "erros" eventualmente constatados em decisões do STF.
Que o número de recursos previstos na legislação brasileira leve feitos à prescrição, é uma questão realmente lamentável. Mas ao nosso sentir, o Ministro não pode ser responsabilizado ao fazer aplicar as Leis em vigor do país, e dar a estas interpretação conforme a Constituição.
Seja como for, o dia 18/09/2013 passa para a história da justiça brasileira. Será emblemático A saga de Celso Mello, no STF, fala por si, e sua justiça e sensibilidade sempre foram marcantes em seus votos.
Independente do resultado, há que se lembrar de Schopenhauer em sua obra: “Como Vencer um Debate Sem Precisar Ter Razão”.
Que a Justiça vença as inclinações pessoais é o desejo mais puro de todos os que a realmente desejam.
NOTAS
[1] WEBER, Max. Ciência e Política: Duas Vocações. Eitora Cultrix.
[2] BARROSO, LUIZ ROBERTO., in: “Constituição, Democracia e Supremacia Judicial – Direito e Política no Brasil Contemporâneo”, artigo trazido na obra “O Novo Direito Constitucional Brasileiro”, Ed. Forum, 2013.
[3] STRECK, Lênio Luiz: “Como a Dogmática Jurídica Traiu a Filosofia”, cit. emConstituiçãoo e Processo – uma análise hemenêutica da (re) construção dos códigos”, Editora Fórum. Belo Horizonte, 2013).