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Não há previsão constitucional para afastamento do presidente do Senado, diz Lênio Streck

 Não há previsão constitucional para afastamento do Presidente do Senado

 

Isso pode não acabar bem. Somos duzentos milhões querendo trabalhar e progredir. Se há corrupção, devemos combate-la a partir da lei. Fazer atalhos é sempre perigoso. Uma democracia somente pode se consolidar se não for atrapalhada por uma juristocracia.

Por Lenio Luiz Streck

   

decisão do ministro Marco Aurélio, afastando da Presidência do Senado o senador Renan Calheiros, mostrou-se um perigoso equívoco. Não há previsão constitucional para esse afastamento. Estamos indo longe demais. O Supremo Tribunal Federal não é o superego da nação, para usar uma frase da jurista Ingeborg Maus, ao criticar o ativismo praticado pelo Tribunal Constitucional da Alemanha. Vou invocar uma frase famosa que eu mesmo fico repetindo e que é da autoria do ministro Marco Aurélio: os poderes da República são Legislativo, Executivo e Judiciário e não o contrário. Quando ouvi isso da boca do ministro, vibrei! Eu disse: Bingo! Só que agora o ministro fez o contrário do que havia dito.

De fato, hoje mais uma vez ficou demonstrado o extremo ativismo do STF, contra o qual eu achava que o ministro Marco Aurélio estava imunizado. Mas, não. Na decisão, o ministro fala das manifestações de rua: “O Senador continua na cadeira de presidente do Senado, ensejando manifestações de toda ordem, a comprometerem a segurança jurídica”.

Ora, a Suprema Corte não é porta voz do povo. Ao contrário: nela temos que ver a garantia contra maiorias exaltadas. A Constituição é o remédio contra maiorias. E o STF deve ser o guardião da Constituição. Quem disse que a voz das ruas tem legitimidade? Somos duzentos milhões de habitantes e menos de 400 mil foram às ruas. Isso é fundamentação? Cadê a Constituição? Aliás, no HC 126.292 o próprio ministro Marco Aurélio disse — sabiamente — que a decisão sobre a presunção da inocência não poderia ser dada ao sabor da voz das ruas. E agora, ministro?

Sou insuspeito em falar sobre isso. E não tenho simpatia pelo Renan. Sou um conservador em relação ao constitucionalismo. Já muita gente me chamou de “originalista”. Não. Não sou originalista. Sou um jurista que defende a Constituição naquilo que o constitucionalismo foi cunhado pela tradição democrática. Proteção contra injunções morais e politicas. O Supremo Tribunal federal, desse modo, comporta-se moralmente. E Direito não é moral. A moral não corrige o Direito. Quem deve tirar o presidente do Senado é o Senado. Seria inconcebível que o Senado ou Legislativo lato sensu quisesse tirar o presidente da Suprema Corte. Onde estão as relações institucionais? No mínimo, a decisão teria que ser proferida pelo Plenário da Corte. Qual é a urgência?

De todo modo, enfrento outro argumento utilizado, o de que já havia uma maioria quando da votação de ADPF na qual um ministro pediu vista.       Essa maioria justificaria o afastamento do presidente do Senado. Dois problemas: primeiro — o uso de uma decisão ainda dependente de um pedido de vista (Em novembro, seis dos oito ministros do STF votaram a favor da ação apresentada pelo partido Rede Sustentabilidade de que réus não poderão ocupar cargos na linha de sucessão presidencial, que inclui os presidentes da Câmara e do Senado. A sessão, no entanto, foi suspensa após pedido de vistas do ministro Dias Toffoli. Na ocasião, os ministros Ricardo Lewandowski, Gilmar Mendes e Luís Roberto Barroso não estavam presentes na sessão). Segundo: o uso da analogia do artigo 86, parágrafo 1º, I, da CF. Esse dispositivo só impede que o presidente do Senado venha a assumir a Presidência da República eventualmente, quando isso venha a acontecer. O dispositivo não impede que o Senador Renan fique na presidência do Senado. Essa interpretação é demasiado elástica.

Explico melhor: A Constituição estabelece no artigo 86 que somente o presidente da República é que deve ser afastado do cargo caso vire réu em ação penal comum perante o STF durante o exercício do cargo. No caso, o STF fez uma superinterpretação (sobreinterpretação) do texto. Por ela, todos que estiverem na linha de sucessão e que se transformem em réus também devem ser afastados. Ora, caso o presidente da República fosse réu antes de tomar posse como presidente, nem a ele se aplicaria o artigo 86, por ter o crime sido cometido antes do mandato. Já estaríamos fora da hipótese do artigo 86, portanto. No caso de Renan, o caso é anterior ao seu mandato atual e anterior ao mandato do atual Presidente da República. O que quero dizer é que a Constituição fala em perda de cargo no caso do presidente da República que vire réu. A analogia, neste caso, é construção de um novo texto. Uma emenda constitucional. O presidente do Senado somente poderia vir a ser impedido de assumir o cargo se o processo fosse decorrente deste mandato (crime cometido no exercício do seu mandato quando processado. Impedido de assumir. E não ter seu cargo de presidente cassado.

Isso pode não acabar bem. Somos duzentos milhões querendo trabalhar e progredir. Se há corrupção, devemos combate-la a partir da lei. Fazer atalhos é sempre perigoso. Uma democracia somente pode se consolidar se não for atrapalhada por uma juristocracia.