O Estado está morto, e os presos brasileiros representam essa realidade
Por Carlos Henrique Abrão e Laercio Laurelli
Com o abandono da cidadania pelo Estado, pois cadeia não dá voto, o governo brasileiro, nas últimas duas décadas, ocupou-se somente em aumentar o número de presos, que já ultrapassa 600 mil, e não se preocupou com as condições do encarceramento. O descalabro chega a tal ponto que o Estado não consegue debelar o motim, evitar a rebelião ou impedir a morte a cargo das organizações criminosas.
A verdadeira guilhotina deveria ser aplicada em desfavor dos nossos políticos, governantes que marcharam em direção à corrupção em contratos com superfaturamento, deixando para trás os serviços públicos. Essa morte anunciada entre facções criminosas que envergonha o Brasil perante o cenário internacional não se justifica pela superlotação, pelo número de presos provisórios ou por falta de investimento na construção de mais presídios.
O problema central reside na ressocialização. Os EUA, que adotam em alguns estados a pena de morte, possuem mais de 2 milhões de presos, e a privatização colabora, mas não soluciona o grave aspecto em torno do ambiente macabro, horroroso e que coloca nos ombros do Estado a obrigação de zelar pela incolumidade do preso e indenizar sua família.
A federalização dos presídios é um paliativo que, nos estados que entraram em calamidade financeira, num colapso de contas públicas, sem pagar seus funcionários, não conterá a desabrida fuga de presos ou o modelo para lá de falido. Repitamos que a Revolução Francesa tupiniquim que acontece dentro dos presídios é uma resposta da cidadania contra a política pública malfeita e desviante de sua finalidade.
Nada, absolutamente nada se faz sem o desvio de verba pública ou o pagamento por fora, e ao longo dos anos essa situação somente poderia deflagrar e eclodir uma percepção da guilhotina prisional. O Estado está morto, e os presos representam essa realidade que não acredita mais na humanização das cadeias, mas na piora gradual do modelo, que não encerra cabimento ou se justifica.
Melhoraria um pouco o aumento dos mutirões, mas estamos numa tempestade perfeita, qual seja, a falta de ímpeto econômico aumenta o desemprego e coloca milhares de pessoas na vida do crime, e a consequência lógica desse retrato é o Estado que não sabe punir e mistura preso provisório com preso definitivo.
Seria uma solução a médio prazo o Judiciário assumir o comando prisional? Necessário seriam preparo, estrutura e logística, eis que nos 27 estados da federação temos o mesmo número de facções criminosas, e essa destreza nos leva à reflexão sobre exportação de presos. Sim, pode ser explicado; isso sucede em alguns países desenvolvidos, a exemplo de Suécia e Dinamarca, ambas com as cadeias esvaziadas e população carcerária mínima.
Essa carnificina hedionda que mostra a verdadeira face dos prisioneiros irrecuperáveis conduz ao Estado brasileiro um levantamento com rastreamento e monitoramento para pôr fim imediatamente à guilhotina nas cadeias. Pavilhões são invadidos, e armas de fogo e brancas são utilizadas; cabeças são cortadas e espalhadas pelos corredores, atirando numa comoção da opinião pública e na intrépida situação do vexame que ultrapassa limites de qualquer racionalidade ou mínima razoabilidade.
O Estado de Direito deu espaço ao estado da violência, da animalidade, da brutalidade, dos fora da lei e dos que pouco se lixam pela punição. Fazem o que pensam e entendem que o governo não é responsável, já que atirou todos na vala comum do abandono e da desumanização, à espera de uma previsibilidade dos comportamentos, por meio do amontoamento de seres humanos irreversíveis nos seus modos de agir.
Reuniões de emergência deveriam ser feitas, e não apenas um plano de segurança. Muito mais do que isso, a imediata disposição dos magistrados e promotores de levantarem as fichas e terem uma polícia judiciária. Fundamental a existência de uma polícia judiciária sem conexão com aquelas militar e civil, que seja exclusivamente atrelada às funções preventivas e repressivas da organização da Justiça.
Muito tempo se perdeu à toa na crença de que tudo cessaria, mas preso
não dá voto, e nada interessa aos dirigentes e governantes da República brasileira. A explosão da grave crise econômica e o déficit público das finanças colocaram a nu o rei-Estado e demonstraram que os presídios brasileiros, a totalidade deles, ou a maioria, deveria ser implodida e derrubada, já que sua finalidade é apenas preparar uma pós-graduação no mundo do crime e acirrar os ânimos entre as facções criminosas para que o aparato do banditismo prevaleça sobre o Estado de Direito.
A mudança na Lei de Execução Penal é fundamental, e a instituição do júri está fora da contemporaneidade; os crimes de maior repercussão deveriam ser alvo de rápida analise por um tribunal popular, a fim de apenas identificar a culpa ou a não existência do crime. A partir dessa premissa, caberia ao magistrado aplicar a pena e determinar o início ou não no regime fechado.
Enfim, temos muitos caminhos para serem percorridos e não devemos ficar acendendo a chama da desesperança ou pondo lenha na fogueira. O crescimento de organizações criminosas se explica fundamental e basicamente pela falta da presença do Estado e das estruturas fundantes e estruturantes para banir a violência e pôr ordem nos tentáculos de amontoados que não se dispersam, ou tentar minar as forças de resistência visando apaziguar os ânimos e tentar convívio pacífico.
O aprendizado se faz a partir do Direito estrangeiro e, mormente, pela retirada das celas de presos não violentos ou que não representam risco à sociedade. Dessa forma, se a crise econômica simboliza desemprego e a explosão do crime, nem por isso as prisões serão abrigos de recuperação. Faltam cursos profissionalizantes, bibliotecas e compreensão pela desestruturação familiar comum.
No entanto, sem combatermos de frente as causas, dentre as quais o narcotráfico e o comércio irregular de armas, além de fronteiras livres e corredores do crime, não avançaremos no propósito de mostrar ao mundo que somos civilizados e que estamos preparados para o enfrentamento da fenomenologia do crime e seus reflexos, numa sociedade assimétrica e desamparada pelo Estado brasileiro.
Carlos Henrique Abrão é desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo e professor pesquisador convidado da Universidade de Heidelberg (Alemanha). Tem doutorado pela USP e especialização em Paris.
Laercio Laurelli é desembargador aposentado do Tribunal de Justiça de São Paulo e professor de Direito Penal e Processo Penal.