A criminalização do preço do frango grelhado
Por Marion Bach
Há quem deteste almoçar sem companhia. Eu adoro. Por diferentes razões. O primeiro: é um dos poucos momentos em que consigo ficar em silêncio. Nos demais momentos do dia, falo.
Em sala de aula, em sala de audiência, na sala de reunião ou na sala de casa. Segundo: não tem ninguém controlando o que e, principalmente, o quanto eu como. Terceiro: posso ouvir a conversa alheia. Educado não é. Mas é interessante.
Foi num desses almoços. O garçom apresentou a ele a conta. “O que? Setenta reais? Cobrar esse valor por um frango grelhado deveria ser crime!” Estava com o rosto vermelho. Não sei se engasgado com o preço ou com o frango. Passei o dia com aquilo – a frase, não o frango – na cabeça.
O Brasil, hoje, conta com aproximadamente 1690 tipos penais incriminadores. Em outras palavras: embora a cobrança de valor injusto no frango grelhado ainda não tenha sido criminalizada, há cerca de 1690 comportamentos proibidos, sob pena de privação da liberdade. Parece essencial questionar a razão dessa monomania penal.
Arrisco uma possível explicação. A teoria de prevenção geral negativa da pena ainda conta com crentes adeptos. Tal teoria – que é geral justamente porque direcionada à generalidade dos cidadãos – se baseia na coação psicológica, pretendendo a pena intimidar e dissuadir potenciais infratores (SANCHEZ, 2015, p. 31).
Há, portanto, quem creia, seguindo os passos de FEUERBACH (2007) – 1755-1833 –, que o fato de haver uma ameaça de pena prevista em lei, é capaz de infundir temor no potencial infrator, de modo a frear e inibir a tentação e o impulso criminoso.
Há, numa segunda perspectiva – e justamente diante da falha da primeira -, quem entenda que a imposição exemplar da pena ao criminoso pode exercer o efeito intimidatório nos demais cidadãos.
Não à toa as penas por muito tempo foram – como bem demonstra FOUCAULT logo nas páginas iniciais de Vigiar e Punir (2005) – executadas à luz do dia, em praças públicas.
Fato é que ambas as perspectivas esbarram em significativos problemas. A teoria da coação psicológica, ao crer que a pena abstratamente cominada pode dissuadir potencias criminosos, ignora o alerta que já fazia BECCARIA (1993): o que intimida não é a extensão da pena prevista, mas a certeza de sua aplicação. Ademais, tal teoria encerra um perigo.
A crença de que a pena cominada inibe a prática delituosa tende a violar a razoabilidade e a proporcionalidade necessárias ao Poder Legislativo. Sim, pois nesse caso, diante da criminalidade, há a natural tendência ao aumento progressivo das penas.
Por fim, tal teoria – que justifica a existência da pena pela intimidação que provoca -, não explica a razão da sanção imposta aos crimes culposos (nos quais não há, portanto, qualquer tentação a qual possa resistir o criminoso) e se enfraquece diante dos chamados crimes de impulso.
Se a primeira perspectiva, portanto, é passível de críticas, o mesmo ocorre com a segunda. Como já alertava KANT, a imposição exemplar da pena, na esperança de intimidação social, acaba por instrumentalizar o condenado. O apenado, antes de ser sujeito de direitos, passa a ser objeto útil aos fins sociais.
Não bastassem tais críticas – suficientes, por si só, para questionar tal função como sendo a primordial da pena -, vale registrar que a proliferação dos tipos penais, bem como o incremento e o endurecimento na extensão e no modo de execução das penas não enseja qualquer redução na criminalidade.
FEIJOO SANCHEZ (2015, p. 37) bem esclarece que a teoria da prevenção geral negativa conta com seguidores, pois “uma parte significativa da população aceita políticas criminais equivocadas de endurecimento do Direito Penal em razão de se sentir mais segura, quando, na verdade, tal premissa apoia-se em pressupostos falsos e empiricamente refutáveis.”
E que “uma das armas para combater o uso eleitoreiro e perverso do direito penal por parte dos partidos políticos – e certos meios de comunicação a seus serviços – é a população estar consciente de que certas mensagens sobre lei e ordem ou sobre (in) segurança cidadã estão construídas sobre crenças que, apesar de generalizadas, não deixam de ser falsas.
A criminalização do preço abusivo do frango grelhado, portanto, não garantiria ao indignado homem – aquele, do rosto vermelho – a economia ao final de cada almoço. Mas garantiria a eleição do candidato que anunciasse que chega. Chega da exploração em torno da carne branca.
Chega de abusos em torno das penosas. E faria com que o homem – aquele, do rosto vermelho – se sentisse melhor e mais seguro, após abrir o Código Penal e conferir a pena de até quatro anos de reclusão a quem extrapolar no preço do frango. Lembrando que, se for grelhado, aumenta-se a pena em um terço.
REFERÊNCIAS
BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. Bauru: Edipro, 1993.
FEUERBACH, Johannes Paul Anselm von. Tratado de Derecho Penal. Buenos Aires: Hammurabi, 2007.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. Petrópolis: Vozes, 2005.
SANCHEZ, Bernardo Feijoo. A Legitimidade da Pena Estatal – Uma breve incursão pelas teorias da pena. Florianópolis: Conceito Editorial, 2015.
Fonte: Canal Ciências Criminais
N.R.: Fiz, a propósito desse artigo, o seguinte comentário:
Excelente artigo! Escrito com estilo literário e apreciada verve. Frangos à parte há formas mais eficientes de se conter as condutas delitivas que o encarceramento. Em matéria penal a sociedade brasileira está se enforcando com a própria corda. Mas enquanto não abraçamos essa nova tendência, proponho a Marion Bach que lidere um movimento para criminalizar essa fúria criminalizadora adotando como tema de campanha a música de Caetano Veloso que tanto sucesso fez entre os jovens dos anos 70: "É proibido proibir"…