O STF e a modulação de efeitos na guerra fiscal
Por Celso de Barros Correia Neto
Nas últimas sessões, o Supremo Tribunal Federal debateu casos importantes em matéria tributária. Alguns deles inclusive aguardavam desfecho há mais de uma década.
Passaram pelo Plenário do tribunal discussões como: a) a necessidade de lei complementar para disciplinar os requisitos para a imunidade das entidades beneficentes de assistência social, em relação às contribuições para seguridade social (ADIs 2.028, 2.036, 2.228 e 2.621, rel. min. Joaquim Barbosa); b) a aplicação de imunidade do livro aos chamados e-books e aos suportes eletrônicos utilizados para lê-los (RE 330.817, rel. ministro Dias Toffoli); bem como c) às peças que acompanhem livros ou fascículos com fins meramente didáticos (RE 595.676, rel. min. Marco Aurélio), e d) também a vultosa questão da inclusão do ICMS na base de cálculo para fins de incidência do PIS e da Cofins (RE 574.706, rel. min. Cármen Lúcia), definida na última quarta-feira.
Em meio a uma pauta fiscal tão importante, não pode passar despercebido o desfecho dado a duas ações diretas de inconstitucionalidade contra leis estaduais — as ADIs 3.796, rel. min. Gilmar Mendes, e 2.663, rel. ministro Luiz Fux —, julgadas na sessão do dia 8 de março de 2017.
As ações tinham em comum o fato de voltarem-se contra benefícios fiscais em matéria de ICMS. Além disso, foram julgadas procedentes pelo mesmo fundamento: a desobediência ao artigo 155, parágrafo 2º, XII, “g”, da Constituição Federal, que confere à lei complementar a tarefa de “regular a forma como, mediante deliberação dos Estados e do Distrito Federal, isenções, incentivos e benefícios fiscais serão concedidos e revogados”.
A rigor, não há novidade alguma nessa fundamentação. Há décadas o STF decide da mesma forma. Os benefícios fiscais no âmbito do ICMS, concedidos de forma unilateral, sem prévia celebração do convênio interestadual exigido pela na Lei Complementar 24/1975, são inconstitucionais. O que merece destaque é a modulação de efeitos que se aplicou às duas decisões.
Até recentemente, o STF não costumava modular os efeitos das decisões de inconstitucionalidade de benefícios fiscais estaduais concedidos de forma unilateral, compreendidos no âmbito da chamada “guerra fiscal”. As decisões eram tomadas com eficácia ex tunc. Restringir os efeitos da declaração de inconstitucionalidade, segundo entendia o Supremo, poderia estimular ainda mais a concorrência fiscal predatória entre os estados-membros.
O acórdão prolatado nos embargos de declaração opostos na ADI 3.794, de relatoria do ministro Roberto Barroso, julgada em 18/12/2014, é um bom exemplo dessa orientação. Consta na própria ementa do julgado o seguinte: “A modulação dos efeitos temporais da declaração de inconstitucionalidade no presente caso consistiria, em essência, incentivo à guerra fiscal, mostrando-se, assim, indevida”.
A tendência de mudança se vê na ADI 4.481, também de relatoria do ministro Roberto Barroso, julgada em 11/3/2015. A despeito de se ter o mesmo relator, o desfecho do caso foi diferente. Por maioria — vencido apenas o ministro Marco Aurélio —, o tribunal modulou os efeitos de declaração de inconstitucionalidade de lei de incentivo fiscal em matéria de ICMS para operar apenas a partir da data da sessão de julgamento, sem eficácia retroativa.
As razões da mudança foram o tempo de vigência da lei impugnada e a demora do Supremo em julgar o feito. O relator justificou assim sua posição:
18. É certo que a jurisprudência do STF sobre o procedimento a ser observado para o deferimento de benefícios em matéria de ICMS é mais do que conhecida. Não gera grande surpresa a decisão ora proferida, no sentido da inconstitucionalidade da lei estadual. Por outro lado, a norma em exame vigorou por oito anos, com presunção de constitucionalidade, de modo que a atribuição de efeitos retroativos à declaração de inconstitucionalidade geraria um grande impacto e um impacto injusto para os contribuintes.
19. Por isso, registro que a minha sugestão, nesses casos, é de que os relatores procurem se pronunciar sobre o pedido de cautelar no primeiro momento possível, trazendo em seguida a decisão ao plenário para referendo. Não tendo havido deferimento de cautelar, contudo, parece-me difícil afastar a modulação dos efeitos temporais da decisão.
No voto divergente, o ministro Marco Aurélio destacou o estímulo negativo que esse tipo de orientação poderia causar em matéria de guerra fiscal, nos seguintes termos:
É menoscabo à Carta da República editar uma lei como essa, em conflito evidente com a Constituição, já que a sujeição ao convênio unânime nela está em bom vernáculo, para chegar-se ao benefício, e, então, simplesmente, apostar-se na morosidade da Justiça, que, em um futuro próximo, acomodará a situação.
Não se estimulam, dessa forma, os cidadãos em geral a respeitarem o arcabouço normativo constitucional em vigor. Ao contrário, em quadra muito estranha, incentiva-se a haver o desrespeito e, posteriormente, ter-se o famoso jeitinho brasileiro, dando-se o dito pelo não dito, o errado pelo certo.
Não modulo, Presidente.
Ao que tudo indica, a decisão proferida na ADI 4.481 foi a primeira em que o tribunal fez claramente uso da faculdade prevista no artigo 27 da Lei 9.868/1999 para um caso de guerra fiscal de ICMS. Antes, a posição da corte era de negar pedidos dessa natureza[1].
No último dia 8 de março, com as decisões proferidas nas ADIs 3.796 e 2.663, a tendência se confirmou. Em ambos os julgamentos, o Supremo declarou a inconstitucionalidade de dispositivos que concediam benefícios fiscais, mas conferiu à decisão efeitos ex nunc, a partir da publicação da ata de julgamento. Ficou vencido o ministro Marco Aurélio, nos dois casos.
A julgar pelos três precedentes analisados, doravante, a tendência do Supremo será conferir apenas efeitos prospectivos às decisões de controle concentrado em matéria de guerra fiscal, sempre que a vigência alongada do programa de benefícios fiscais e a demora no julgamento Plenário da ação assim recomendarem. Em contrapartida, caberá aos relatores avaliar a concessão monocrática de medidas cautelares contra leis de incentivo, ad referendum do Plenário, nas novas ações propostas, para evitar a demora no julgamento.
Afora isso, a orientação adotada pelo tribunal também apresenta uma sinalização importante em relação à Proposta de Súmula Vinculante 69, da lavra do ministro Gilmar Mendes, hoje em tramitação na corte, com a seguinte redação:
Qualquer isenção, incentivo, redução de alíquota ou de base de cálculo, crédito presumido, dispensa de pagamento ou outro benefício fiscal relativo ao ICMS, concedido sem prévia aprovação em convênio celebrado no âmbito do CONFAZ, é inconstitucional.
Como se sabe, um dos pontos mais controvertidos quanto à PSV diz respeito justamente à necessidade de se modularem seus efeitos, na linha do que prevê o artigo 4º da Lei 11.417/2006, que permite que o tribunal restrinja a eficácia vinculante da súmula, por decisão de 2/3 dos seus membros, tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse público.
Se mantida a tendência à modulação, inclusive na aprovação da proposta de súmula, o tribunal dá passos no sentido de desenhar um novo quadro no debate judicial da guerra fiscal em ICMS. Serão preservadas as situações pretéritas e coibidas de forma mais célere as novas concessões, seja por meio da reclamação constitucional, quando couber, seja por meio de cautelares concedidas monocraticamente em ADI, tendência, aliás, que parece assentada na corte não apenas para esses casos.
Diante do quadro atual de crise econômica, não há dúvida de que as decisões recentes oferecem certo alento ao contribuinte de ICMS, sempre receoso da precariedade dos benefícios estaduais. Resta então aguardar os próximos julgamentos e conferir como os governos estaduais vão reagir à nova orientação do tribunal.
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Celso de Barros Correia Neto é doutor em Direito pela USP, chefe de gabinete de ministro do STF e professor da graduação e do Mestrado da Universidade Católica de Brasília e da pós-graduação lato sensu do Instituto Brasiliense de Direito Público. Autor do livro O Avesso do Tributo.
Artigo publicado originalmente na revista eletrônica Consultor Jurídico, edição 18.3.2017.
Foto: Nicki Mannix/Flickr.
[1] Como bem destacado por Saul Tourinho, em recente artigo publicado na ConJur, o tema da modulação de efeitos foi discutido também na ADI 424, de relatoria do ministro Luiz Fux, julgada em 20/8/2014. No caso, declarou-se a inconstitucionalidade sem pronúncia de nulidade, pelo prazo de 12 meses, de dispositivo de lei do estado do Ceará que concedia isenção tributária de ICMS “aos implementos e equipamentos destinados aos deficientes físicos auditivos, visuais, mentais e múltiplos, bem como aos veículos automotores de fabricação nacional com até 90 HP de potência adaptados para o uso de pessoas portadoras de deficiência”. (TOURINHO, Saul. Novas nuances da “guerra fiscal” à luz do Supremo Tribunal Federal. ConJur. 15 de março de 2017. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2017-mar-15/saul-tourinho-leal-novas-nuances-guerra-fiscal-luz-stf).