"Supremo não tem hesitado em derrogar tacitamente a Constituição Federal"
Entrevista com Carlos Blanco de Morais, professor catedrático de Direito Constitucional da Universidade de Lisboa
Por Brenno Grillo para o Conjur
Basta ler o jornal para entender que o Supremo Tribunal Federal se tornou o centro de qualquer decisão política importante no Brasil. Ao mesmo tempo, o tribunal se ocupou da função de resolver os entraves do país, ainda que por meio de "mutações constitucionais", conforme observa o jurista Carlos Blanco de Morais, professor catedrático de Direito Constitucional da Universidade de Lisboa, em Portugal.
“O STF é uma corte constitucional sem paralelo entre as demais”, diz, em entrevista à revista eletrônica Consultor Jurídico. “O Supremo não tem hesitado em derrogar tacitamente a Constituição através de mutações constitucionais de natureza jurisprudencial.”
Blanco de Morais dá alguns exemplos. Quando o tribunal declarou constitucional a equiparação da união entre duas pessoas do mesmo sexo à união estável, “produziu uma mutação constitucional que não se amparou na letra da Constituição”. O professor critica ainda o controle de constitucionalidade de projetos de lei, especialmente quando feito em decisões monocráticas, por meio de mandados de segurança. "O STF autoinvestiu-se de imenso poder de travagem de emendas que possam afetar os seus próprios poderes."
Mas nada acontece sem suas contrapartidas, especialmente na disputa por espaços. “Sendo um tribunal de alto nível e com uma maioria de magistrados de grande saber e ponderação, será de questionar qual o preço a pagar por uma corte constitucional que se tornou a mais poderosa do mundo à custa do enfraquecimento dos demais poderes e de uma certa nominalização da Constituição”, provoca Blanco de Morais.
Leia a entrevista:
ConJur — Numa palestra, o senhor disse que o STF brasileiro é a corte constitucional mais poderosa do mundo. O que quis dizer com isso?
Carlos Blanco de Morais — O STF é uma corte constitucional sem paralelo entre as demais. O Supremo não tem hesitado em derrogar tacitamente a Constituição através de mutações constitucionais de natureza jurisprudencial, como decorre da ADPF 132 e ADI 4.277, sobre a união homoafetiva.
ConJur — Por quê?
Blanco de Morais — O STF produziu uma mutação constitucional que não se amparou na letra da Constituição, não se fundou numa interpretação conforme tecnicamente correta, como decorre do voto do ministro Gilmar Mendes, nem revelou grande consistência sob um ponto de vista jurídico-dogmático — os princípios constitucionais não derrogam regras com o mesmo valor, por força do principio da especialidade. A consagração da mesma solução por via de uma emenda constitucional teria sido a solução mais harmônica com a Lei Fundamental. O resultado não deve ser criticado, mas eventualmente o meio, que abre precedentes para outras mutações mais problemáticas que possam afetar os poderes do Estado ou direitos de liberdade, como o direito à vida.
ConJur — Depois ainda houve a equiparação da união estável ao casamento.
Blanco de Morais — Pareceu-me incompreensível, já agora, que o Conselho Nacional de Justiça, um órgão administrativo, tenha legislado materialmente “de fato”, admitindo a validade do casamento entre pessoas do mesmo sexo sem que houvesse reação judicial. Se em Portugal o Conselho Superior da Magistratura, ao qual pertenci, tivesse tomado a mesma atitude haveria um terremoto político com apelos imediatos à renúncia dos membros. Seguramente que a sua decisão seria cassada pelo tribunal competente.
ConJur — Na mesma palestra, o senhor falou do controle de constitucionalidade de emendas constitucionais.
Blanco de Morais — No que concerne ao exercício do próprio poder de emenda constitucional que alguns qualificam de poder constituinte derivado, o STF já julgou a inconstitucionalidade de diversas emendas — por exemplo, a Emenda 41/2003 — com base na violação de direito adquirido. Mas, sem amparo explícito na Constituição, algumas decisões monocráticas do STF ensaiaram uma espécie de controle preventivo de emendas constitucionais em formação. Veja o que ocorreu no Mandado de Segurança 20.257, no qual foi admitido que os parlamentares poderiam impetrar mandado desta natureza que impedisse a tramitação, no Congresso, de processos de emenda constitucionais que não observassem cláusulas pétreas — interpretadas de forma elástica. O STF autoinvestiu-se, assim, de um imenso poder de travagem de emendas que possam afetar os seus próprios poderes.
ConJur — Isso é visto também no controle de omissões legislativas?
Blanco de Morais — O STF assumiu poderes substitutivos ao legislador quando há omissões em matéria de direitos fundamentais, por exemplo, ao interpretar os mandados de injunção 712-8 e 708. O Supremo mandou aplicar aos servidores públicos a lei da greve dos trabalhadores do setor privado, com alterações introduzidas pelo próprio STF. Criou-se, na linha de pensamento de Levi do Amaral, uma verdadeira medida provisória do Judiciário. Paralelamente, o STF criou, através das súmulas vinculantes de natureza mais inovadora, por exemplo, no caso da lei das algemas, verdadeiras normas primárias com eficácia análoga à da lei. Alguns juízes do STF não se refrearam em alterar a lei, mediante decisão monocrática, como no caso do HC 124.306, quando o ministro Luís Roberto Barroso se substituiu ao Congresso, descriminalizando o aborto que ocorra até ao terceiro mês de gestação, prazo que fixou discricionariamente como se tratasse de um legislador do Congresso Nacional.
ConJur — A defesa de alguns ministros é de que o Supremo é um tribunal também político, por ter o papel de interpretar a Constituição.
Blanco de Morais — No próprio exercício da função política, o STF regulamentou o rito do processo de impeachment. Por outro lado, mediante decisão monocrática de um ministro, que depois foi revogada pelo Plenário, tentou destituir o presidente do Senado. O Supremo, também por força do efeito vinculante das suas decisões em controle abstrato, condiciona e orienta a ação dos tribunais comuns e superintende a administração pública. Mediante reclamação, o STF pode cassar sentenças e invalidar atos administrativos que se afastem do fundamento determinante das suas decisões.
ConJur — Isso quer dizer que o Supremo virou um superpoder?
Blanco de Morais — Como revelou o “caso dos precatórios”, o STF pode até substituir-se a Deus e à dogmática jurídica, julgando normas inconstitucionais e depois repô-las em vigor quando se percebeu a existência de certos efeitos indesejáveis. Sendo um tribunal de alto nível e com uma maioria de magistrados de grande saber e ponderação, será de questionar qual o preço a pagar por uma corte constitucional que se tornou a mais poderosa do mundo à custa do enfraquecimento dos demais poderes e de uma certa nominalização da Constituição. Algum “diálogo” com o Congresso, mediante a aprovação de leis e emendas que procedam ao overruling de algumas decisões do STF e algum self restraint num período delicado da vida nacional ajudariam a poupar o STF da fogueira das tensões políticas.
ConJur — Na época da crise de Portugal, o Tribunal Constitucional acabou conhecido por ter produzido uma "jurisprudência de crise", que teve repercussões até no Brasil. O que o senhor acha desse tipo de interferência da corte constitucional em matéria econômica? Quais foram os resultados dessas intervenções?
Blanco de Morais — O Tribunal Constitucional, não tendo sido ativista, exibiu poder, tomou consciência do fato de que teria a última palavra sobre a validade das políticas públicas do legislador e transformou-se num ramo do poder “moderador”, partilhando-o com o presidente da República. Mas esse ciclo aparentemente terminou.
ConJur — Moderador em que sentido?
Blanco de Morais — Como a Constituição não prevê um estado de necessidade financeira, o Tribunal passou a assumir o domínio da definição de exceção financeira, a estabelecer os critérios da sua admissibilidade e até a fixar as regras sobre a sua duração, criando a cláusula da transitoriedade temporalmente delimitada. Com base nestes critérios, associados às medidas de valor da igualdade, proporcionalidade e tutela da confiança, o Tribunal vetou importantes reformas do governo, que a dado passo quase ficou à sua mercê. Só que, finalizada a exceção financeira e mudado o ciclo político, o Tribunal cessou também, por ora, as suas funções transitórias ou excepcionais de poder moderador supletivo.
ConJur — A conduta do Tribunal foi correta?
Carlos Blanco de Morais — De modo geral, o Tribunal Constitucional censurou, e bem, algumas medidas mal concebidas juridicamente, dotadas de um rigor desnecessário, mal calibradas no plano da sua conformidade com os critérios da igualdade e necessidade, e inaceitáveis à luz da tutela da confiança — figura próxima ao direito adquirido brasileiro. Algumas medidas partiam de uma lógica financista estreita, muito típica em Portugal, nos termos da qual, perante exigências de equilíbrio nas contas públicas, a Constituição deve considerar-se como que tacitamente suspensa, por força de um estado de necessidade implícito.
ConJur — Como isso foi resolvido?
Blanco de Morais — Encontrava-me então na Presidência da República e intervi na preparação de diversos pedidos de controle dessas leis sobre as quais o Presidente tinha dúvidas. Pesa ainda o fato de a maioria governatista ser da mesma linha política da maioria presidencial. O fato é que o cancelamento de diversas reformas juridicamente mal preparadas, entre elas as da segurança social e da legislação trabalhista, não significou o “apocalipse” como o então governo supunha, e o Executivo, a contragosto, encontrou outras receitas para equilibrar as contas.
ConJur — Qual foi o resultado?
Carlos Blanco de Morais — O outro lado da moeda foi um Tribunal Constitucional silenciosamente altivo, um pouco envaidecido pelo apoio popular recebido, apaixonado pelas suas fórmulas jurisprudenciais e disputando com o presidente um certo poder “moderador”. Os atores políticos transferiram para o Tribunal suas divergências sobre a austeridade, colocando nas mãos dos juízes a possibilidade de ter uma palavra decisiva sobre a necessidade ou não de um novo resgate financeiro internacional. O Tribunal Constitucional ganhou uma aversão silente ao Governo e andou no fio da navalha.
ConJur — Por que o senhor diz que o ciclo se encerrou?
Blanco de Morais —A situação alterou-se com a mudança do governo, a mudança do presidente da República — o novo titular não tem recorrido por ora ao Tribunal Constitucional — e com mudanças no próprio Tribunal Constitucional, incluindo a do seu presidente. Houve um “resfriamento” de um órgão jurisdicional que se encontrava um pouco superaquecido.
ConJur — E como impedir que isso se repita?
Blanco de Morais — Uma nova crise financeira exigiria outra atitude diversa da que envolveu os protagonistas da crise de 2012-2014: um governo que preparasse melhor as leis de rigor financeiro e um tribunal mais humilde e aberto a ouvir as razões da maioria. Faltam vias processuais de interlocução e vontade de comunicação. A Justiça Constitucional portuguesa é um bocadinho hermética e nem sempre sensível e coerente no tema das realidades econômico-financeiras.
ConJur — Uma das teses do professor Gomes Canotilho diz que, com a globalização, a Economia deixou o Direito em segundo plano. Diz ele que os memorandos de entendimento entre bancos, os acordos bilaterais e as zonas de livre comércio hoje são mais fortes que os direitos fundamentais garantidos nas constituições nacionais. O senhor corrobora essa análise?
Blanco de Morais — A globalização econômica é a guarda avançada de um projeto de globalização política e jurídica universal sem rosto e isento de controle público. Projeto que, sob o pretexto do livre comércio, da fluidez de capitais como motor do desenvolvimento, da vantagem dos produtos baratos e da celeridade das migrações de mão de obra, serve mais aos interesses dos grandes conglomerados financeiros e dos grupos políticos fechados e ultraminoritários transnacionais que lideram essa dinâmica do que favorece os direitos sociais e políticos das pessoas que têm sido afetadas pelos danos colaterais do fenômeno.
ConJur — Os efeitos, então, foram ruins?
Blanco de Morais — Os grandes escândalos de corrupção e manipulação de mercado, a nível nacional e transnacional, que envolvem conluios entre o poder político e as altas esferas do mundo econômico refletem o nível de captura a que a política e o direito chegaram por parte do poder econômico-financeiro. Se o modelo de mercado livre é seguramente o melhor sistema econômico, o atual paradigma de capitalismo financista especulativo e por vezes predador compromete e corrompe o êxito desse modelo.
ConJur — O senhor concorda com essa tese?
Carlos Blanco de Morais — Concordo, em grande parte ,com o postulado que a globalização impôs o império do poder financeiro, sobre o político. Um poder financeiro transnacional que age como um super-Estado inorgânico, sem controle efetivo, onde a separação de poderes está ausente. Um poder que nos estados em dificuldade desvitaliza a democracia, pois, independente da opção dos eleitores, os eleitos terão de executar uma política imposta por credores internacionais com prerrogativas absolutistas. Um poder, finalmente, que desvitaliza a soberania e a autodeterminação dos estados em disporem deles próprios.
ConJur — Vê solução?
Blanco de Morais — A globalização política e o federalismo europeu, caminhando em pequenos passos, em que o universo bancário e o financeiro configuram uma ponta de lança de mudanças feitas de costas voltadas para a vontade dos povos, constituem o “veneno da madrugada” da nossa liberdade, da livre iniciativa econômica privada em um quadro concorrencial, das empresas nacionais, dos nossos direitos individuais, da democracia e da autodeterminação das nações.
Os Estados devem, sem prejuízo da cooperação internacional, focar-se nos seus cidadãos mais esquecidos e ignorados por uma prosperidade concentrada numa minoria, bem como nas empresas nacionais afetadas por uma concorrência desregulada potenciada por produtos oriundos de novos mercados onde se pratica o dumping social. A reação nacionalista e protecionista gerada nos tempos recentes, pese alguma incerteza política criada, resulta ser compreensível e tem alguns elementos positivos.
ConJur — Os tribunais constitucionais podem dialogar e discutir soluções com membros dos outros poderes?
Carlos Blanco de Morais — Entendo a questão sinônimo de uma relação dialógica mais fluida entre poderes por meio de procedimentos apropriados. Atualmente essa relação está entorpecida, mas ganharia se fosse mais natural e flexível, sob pena de se travar um diálogo de surdos, com uma tensão política desnecessária, como o que ocorreu na relação entre o Tribunal Constitucional e a maioria governista portuguesa durante o ribombar da crise financeira. Vias processuais adequadas deveriam permitir alguma abordagem alternativa em certos problemas que uma análise puramente exegética ou axiológica no plano jurídico não admite ou se mostra deficitária.
ConJur — Que tipo de vias processuais?
Blanco de Morais — No Brasil audiências públicas esclareceram os ministros do Supremo Tribunal Federal sobre questões tecnicamente complexas, como a saúde. Portugal poderia também promover mecanismos de diálogo institucional: audiências com peritos, mesmo que não necessariamente públicas, e amicus curiae. Também sugiro a possibilidade de, em controle abstrato, as partes, em certas circunstâncias que envolvam temas muito especializados, como finanças, saúde, seguridade social, poderem solicitar um contraditório oral. Isso evitará um tribunal enclausurado numa torre de marfim e vulnerável ao discurso “fiat lex pereat mundi” [faça-se justiça, ainda que o mundo pereça] que assoma alguns, felizmente poucos, constitucionalistas e juízes dentro e fora do Tribunal.
ConJur — Um regime parlamentarista funcionaria no Brasil?
Blanco de Morais — Neste ponto sigo Sartori, que considerou que o parlamentarismo no Brasil não funcionaria, de todo em todo. A governabilidade no parlamentarismo depende ou da redução drástica no número de partidos representados no Parlamento que garanta um bipolarismo e governos maioritários estáveis (Reino Unido, Canadá, Espanha até 2015) ou um multipartidarismo limitado numa sociedade pouco conflitual e propensa a compromissos naturais (países escandinavos e, até certo ponto, a Alemanha e a Áustria).
No Brasil não existe uma coisa nem outra. A sociedade é conflitual e os compromissos são frágeis, voláteis e ligados a transações que envolvem, por vezes, interesses e lugares. Por outro lado, o Brasil tem um sistema eleitoral proporcional para a Câmara de Deputados que tende a dispersar adinfinitum a representação, havendo poucos países do mundo com mais de 30 partidos representados na câmara de deputados e 18 no Senado, exceto a Índia.
ConJur — O Brasil passa por uma discussão sobre seu sistema de governo. A ideia mais aceita é copiar o modelo português, de semipresidencialismo. Esse sistema funcionaria no Brasil?
Blanco de Morais — O semipresidencialismo seria um desastre no Brasil. Em coabitação, ou seja, quando a maioria política que elege o Presidente fosse diferente da maioria parlamentar que sustenta o governo, teríamos, na versão do semipresidencialismo português aplicado ao Brasil, um presidente atuando como contrapoder permanente em relação ao primeiro-ministro, vetando, ameaçando dissolver e desestabilizando através da palavra. Se fosse copiado o modelo francês, em que o presidente preside simultaneamente a um conselho de ministros formado por um partido rival do seu, teríamos um cenário que relembra o filme Dormindo com o Inimigo, com Julia Roberts.
ConJur — Em que sentido?
Blanco de Morais — Alguém imagina o presidente Lula presidindo o governo de um primeiro-ministro Aécio Neves? Ou um presidente Alckmin chefiando um conselho de ministros de uma primeira-ministra Marina Silva? Haveria a mais completa ingovernabilidade. O Brasil ganharia em reformar, apenas, o seu presidencialismo de coalizão, reduzindo o poder presidencial, estabelecendo mais freios e contrapesos parlamentares e de entidades independentes e disciplinando o alcance normativo das decisões do poder judicial na esfera do controlo de constitucionalidade.
ConJur — Dá para culpar o sistema partidário pela crise política que o Brasil enfrenta?
Blanco de Morais — O sistema partidário não é estruturado. A par do PT que é um partido de massas centralizado e rígido, os restantes grandes partidos (PMDB e PSDB) são pouco centralizados e dominados por lideranças regionais muito personalizadas. Existem, por outro lado muitos partidos que surgem e se extinguem em torno de interesses e de personalidades, sem ideologia definida nem garantia de organização e democraticidade interna, tornando o sistema partidário instável. Essa instabilidade é agravada pela facilidade com que dissidentes podem abandonar uma legenda e criar outra.
ConJur — É um sistema que inviabiliza o governo?
Blanco de Morais — Como seria possível a um governo sobreviver e manter uma política coerente suportado por tantas bancadas tão instáveis, com partidos e congressistas transacionando a toda a hora o seu apoio parlamentar por vantagens setoriais e regionais? Se um presidente da República, no atual contexto de presidencialismo de coalizão, pode amanhecer de um dia para o outro sem maioria parlamentar, pois a sua subsistência em funções ou a execução das suas políticas não depende dessa maioria, o mesmo já não se passa com o governo no sistema parlamentar, onde a sobrevivência do Executivo depende da confiança política do Parlamento num quadro mínimo de estabilidade.
ConJur — Como funcionaria eventual governo parlamentarista?
Carlos Blanco de Morais — Um hipotético governo brasileiro em um sistema parlamentarista despenderia uma boa parte das suas energias, não conduzindo a política do País, mas negociando a sua sobrevivência e a viabilização das suas políticas mais elementares junto de base aliada fragmentada e pouco fiável, ficando sujeito a todo o tipo de pressões. Caso perdesse, de um dia para o outro, a maioria e não solucionasse rapidamente o problema, ficaria sujeito a ser demitido com uma moção de censura ao virar da esquina, por um concerto negativo das oposições. A sucessão de governos, as transações a todos os níveis, a incapacidade de garantir a coerência de reformas políticas e a ingovernabilidade criaram em Itália e Portugal ciclos políticos marcados por uma média de um governo por ano. No Brasil, dada a quantidade de partidos existentes a instabilidade poderia ser ainda mais grave.
ConJur — Há ainda os problemas de legitimidade do Congresso.
Blanco de Morais — Centrar nele o fulcro do poder e base de sustentação do governo, como ocorre no parlamentarismo, poderia criar problemas de legitimidade evitáveis. Na verdade, apenas um parlamentarismo como no Reino Unido poderia, em tese, funcionar em um Estado como o Brasil, que carece de Executivo forte. Mas, para isso, seria necessário fomentar um quadro partidário bipolar (com bipartidarismo ou multipartidarismo formado por alianças de poucos partidos interdependentes).
ConJur — Mas isso não dependeria de reforma legislativa?
Blanco de Morais — Isso implicaria uma reforma eleitoral radical que introduzisse o voto distrital, ou um sistema proporcional com pequenos círculos, quociente alto e cláusula barreira apta a reduzir radicalmente o número de partidos atualmente representados. É duvidoso, contudo, que os grandes partidos queiram abdicar do seu modelo de liderança regionalmente descentralizada e os pequenos e médios partidos pretendam cometer eutanásia, subscrevendo uma emenda constitucional que consagrasse esse tipo de reforma.
ConJur — O senhor disse que “no presidencialismo, o Executivo não depende do Parlamento para subsistir”, mas o fato de os dois presidentes cassados que tivemos em 30 anos de democracia terem baixíssimo apoio no Legislativo não mostra que nosso modelo depende sim do Congresso? Muito se falou em "parlamentarismo branco" durante o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff.
Blanco de Morais — É preciso ter cuidado com a categorização científica dos sistemas políticos. O sistema político brasileiro não é um parlamentarismo, mesmo atípico, porque o presidente é eleito por sufrágio universal, dispõe de relevantes poderes, dirige o Executivo sem primeiro-ministro, não tem de gozar da confiança política do Congresso para se manter em funções e o Legislativo não pode ser dissolvido antecipadamente. Uma zebra sem cascos, sem listras e com asas não é uma zebra.
ConJur — Mas o baixo apoio que os presidentes derrubados tinham no Congresso pode ser uma explicação, não?
Blanco de Morais — O impeachment não derivou do fato de esses dois presidentes terem baixíssimo apoio no Congresso, mas sim por terem, supostamente, cometido crimes de responsabilidade. Os processos de impeachment não substituíram as moções de censura próprias do parlamentarismo, já que envolveram a necessidade de por termo a condutas presidenciais que, alegadamente, fomentavam ou encobriam práticas criminais muito graves que, em tese, punham em causa o Estado de Direito. No caso de Dilma Rousseff, as pedaladas constituíram um crime menor que serviu de pretexto para afastar quem dirigia um sistema cujos colaboradores acobertariam, alegadamente, a prática de ilícitos muito mais sérios.
ConJur — O que acha do cumprimento da pena a partir da condenação em segunda instância?
Carlos Blanco de Morais — Concordo em absoluto com essa fórmula que evita um abuso do direito à presunção de inocência propiciando quadros de impunidade em que que, arguidos com forte probabilidade de culpabilidade, podem sair do país ou manter uma vida indecorosa confiando no arrastamento dos julgamentos no tempo. Tenho, ainda assim, reservas em relação à interpretação feita pelo STF que configurou criativamente essa possibilidade. O princípio poderia, salvo melhor opinião, ser introduzido com vantagem por emenda.