UM DECRETO REVELADOR
Foi muito festejado um Decreto do Governo Federal que veio para coibir abusos das grandes corporações do mercado de telefonia mas que se dirige, por igual, para as mega empresas de aviação civil, energia elétrica, abastecimento de água, planos de saúde, instituições financeiras, transportes terrestre, operadoras de TV a cabo e acesso a Internet. Ou seja, veio para dizer que o que está escrito no Código de Defesa do Consumidor deve ser cumprido, especialmente no tocante aos direitos básicos do consumidor contra métodos comerciais coercitivos ou desleais, bem como contra práticas e cláusulas abusivas ou impostas no fornecimento de produtos e serviços. Ora, o que pode ter de prática mais desleal e abusiva do que aquela que, mediante ardil e fraude escancarados, impede o consumidor (o Decreto só entrará em vigor em dezembro) de promover o cancelamento do serviço? A proibição está no Código mas as grandes empresas, sem rosto, sem escritório, sem endereço, e sem telefone nas cidades, contratam a voz terceirizada dos "call centers" para impor uma prática comercial que impede o consumidor de exercitar seus direitos elementares. Esse é apenas um dos pontos mais visíveis do embuste ao consumidor. Há outros cuja lista iria extrapolar o espaço deste artigo. Passaram-se anos sem que as agências reguladoras e os demais órgãos de fiscalização e controle fizessem cumprir os princípios e as normas contidas no Código do Consumidor. Qual o custo dessa omissão, inclusive financeiro, para o mercado consumidor, vale dizer, para as famílias brasileiras? Mas o diretor do Procon do Distrito Federal foi logo avisando que sem fiscalização o Decreto vai acabar "virando letra morta". E é aí que está o risco, pois foi exatamente por não fiscalizarem que as agências reguladoras acabaram permitindo essa prática despudorada do "jogo-do-empurra" que se espalhou por todo o Brasil.
É bom que se lembre que as agências reguladoras, como Anatel, Aneel, Anac e outras existem porque se transferiu um monopólio, que era do Estado, para o particular, para o setor privado, na época das privatizações. Uma atividade econômica que era exercida exclusivamente pelo governo passou a ser explorada exclusivamente por uma empresa privada. Sem concorrência e sem competição alguma, era preciso criar um mecanismo que pudesse compensar a sua falta. Daí a existência das agências reguladoras. E quando elas não funcionam ou fazem de conta que…? Bom, nesses casos, é na base do salve-se quem puder e, na verdade, poucos poderão se salvar, pois se trata de um monopólio…
A assinatura do Decreto, muito bem recebido pelo mercado que implorava uma ação política estatal contra tais abusos, revela, de forma subjacente, como está deplorável e caótica a atuação dessas agências reguladoras e dos órgãos de defesa do consumidor. Uma economia que conseguiu situar-se entre as dez maiores do mundo não poderá ostentar esse magnífico e aplaudido crescimento às custas da opressão e da espoliação dos seus consumidores, sob pena de comprometer o Estado democrático e de direito. Assim, a assinatura do Decreto nos dá, também, um claro sinal de que o Estado, opressor no passado, tornou-se aliado do cidadão em defesa dos seus direitos.
O liberal Álvaro Valle costumava afirmar, em advertência aos abusos dessas e outras grandes empresas, que "os liberais lutaram contra os reis quando eles oprimiam a liberdade. Passaram a lutar contra o Estado, quando ele se tornou o opressor. Talvez amanhã, para arrepios de Hayek ou Von Mises, venham a lutar contra as grandes corporações do mercado que estão se candidatando ao lugar do Estado como opressores da liberdade individual."
A realidade em que vivemos, quando falham as agências reguladoras ou os mecanismos de controle do Estado sobre as grandes corporações do mercado – quer no setor da aviação civil, telecomunicações, instituições financeiras ou de energia elétrica – é a da mais vergonhosa opressão à liberdade individual.
O Decreto do presidente Lula veio, assim, em boa hora, mas trouxe, consigo, revelações que nos aconselham a direcionar nossa luta contra essas corporações gigantescas que escapam, com freqüência, ao controle do Estado e oprimem, amiúde, os direitos fundamentais do cidadão.
Sergio Tamer é presidente do Centro de Estudos Constitucionais e de Gestão Pública – CECGP e doutor em Direito Constitucional pela Universidade de Salamanca.