AS SEIS HIPÓTESES DE QUE FALA LENIO STRECK EM SUA TEORIA DA DECISÃO:
Em Jurisdição constitucional e decisão jurídica (quarta edição, Revista dos Tribunais, 2015), afirmo que o Poder Judiciário somente pode deixar de aplicar uma lei ou dispositivo de lei em seis hipóteses:
a) quando a lei (o ato normativo) for inconstitucional, caso em que deixará de aplicá-la (controle difuso de constitucionalidade stricto sensu) ou a declarará inconstitucional mediante controle concentrado; as especificidades podem ser encontradas nos respectivos desdobramentos da presente;
b) quando for o caso de aplicação dos critérios de resolução de antinomias. Nesse caso, há que se ter cuidado com a questão constitucional, pois, v.g., a lex posterioris, que derroga a lex anterioris, pode ser inconstitucional, com o que as antinomias deixam de ser relevantes;
c) quando aplicar a interpretação conforme a Constituição (verfassungskonforme Auslegung), ocasião em que se torna necessária uma adição de sentido ao artigo de lei para que haja plena conformidade da norma à Constituição. Nesse caso, o texto de lei (entendido na sua “literalidade”) permanecerá intacto. O que muda é o seu sentido, alterado por intermédio de interpretação que o torne adequado à constituição. Trabalha- se, nesse ponto, com a relação “texto-norma”. Como poderá ser visto amiúde mais adiante, a interpretação conforme, a nulidade parcial sem redução de texto e as demais sentenças interpretativas são importantes elementos para confirmar a força normativa da Constituição. São sentenças interpretativas e perfeitamente legítimas, quando proferidas sob o império de uma adequada teoria da decisão;
d) quando aplicar a nulidade parcial sem redução de texto (Teilnichtigerklarung ohne Normtextreduzierung), pela qual permanece a literalidade do dispositivo, sendo alterada apenas a sua incidência, ou seja, ocorre a expressa exclusão, por inconstitucionalidade, de determinada(s) hipótese(s) de aplicação (Anwendungsfalle) do programa normativo sem que se produza alteração expressa do texto legal. Assim, enquanto, na interpretação conforme, há uma adição de sentido, na nulidade parcial sem redução de texto ocorre uma abdução de sentido (conforme item específico no capítulo em que discuto esses mecanismos de aplicação do direito);
e) quando for o caso de declaração de inconstitucionalidade com redução de texto, ocasião em que a exclusão de uma palavra conduz à manutenção da constitucionalidade do dispositivo;
f) quando – e isso é absolutamente corriqueiro e comum – for o caso de deixar de aplicar uma regra em face de um princípio, entendidos estes não como standards retóricos ou enunciados performativos. Claro que isso somente tem sentido fora de qualquer pamprincipiologismo. É através da aplicação principiológica que será possível a não aplicação da regra a determinado caso (a aplicação principiológica sempre ocorrerá, já que não há regra sem princípio e o princípio só existe a partir de uma regra
– pensemos, por exemplo, na regra do furto, que é “suspensa” em casos de “insignificância”).
Tal circunstância, por óbvio, acarretará um compromisso da comunidade jurídica, na medida em que, a partir de uma exceção, casos similares exigirão – mas exigirão mesmo
– aplicação similar, graças à integridade e à coerência. Trata-se de entender os princípios em seu caráter deontológico e não meramente teleológico. Como uma regra só existe – no sentido da applicatio hermenêutica – a partir de um princípio que lhe densifica o conteúdo, a regra só persiste, naquele caso concreto, se não estiver incompatível com um ou mais princípios. A regra permanece vigente e válida; só deixa de ser aplicada naquele caso concreto. Se a regra é, em definitivo, inconstitucional, então se aplica a hipótese 1. Por outro lado, há que ser claro que um princípio só adquire existência hermenêutica por intermédio de uma regra. Logo, é dessa diferença ontológica (ontologische Differenz) que se extrai o sentido para a resolução do caso concreto.