Dano in re ipsa cria, sem lei, novo tipo de improbidade administrativa
Escrevi em recente texto publicado nesta coluna que “a característica mais marcante do Direito brasileiro no século XXI é a afirmação da jurisprudência como fonte”. Esse é um dado da realidade, com o qual todos os estudiosos e aplicadores do Direito têm que lidar nos últimos tempos. É impressionante o prestígio e a preponderância das decisões das “cortes de vértice”, cujas tendências e ementas muitas vezes superam — por vezes desdizem — a autoridade dos atos legislativos.
Quando se está diante de processos que envolvem agentes políticos, a questão se torna ainda mais delicada. Paira no ar da sociedade brasileira um desejo de punição — e pouca dose de tolerância —, culminando num sistema de presunções, não prescrito pelo legislador democrático. Veja-se, a propósito, o caso das ações de improbidade administrativa.
Com efeito, para a jurisprudência do STJ, as condutas delitivas previstas no artigo 9º (atos que revelam enriquecimento ilícito) e no artigo 11 (atos que violam princípios da administração pública), ambos da Lei 8.429/92 (LIA), somente se configuram mediante conduta dolosa do agente (aquela praticada com a intenção que visa ao resultado vedado). Já as condutas descritas no artigo 10 da Lei 8.429/92 (atos que causam lesão ao erário) admitem configuração mediante “qualquer ação ou omissão, dolosa ou culposa”.
Bem de ver que a Corte Especial do STJ já se pronunciou no sentido de que a culpa configuradora da improbidade administrativa deve ser a “culpa grave”1 2, conquanto haja jugados que se bastam na afirmação da simples culpa, a ver, por todos, o REsp 1.637.839/MT, rel. min. Herman Benjamin, julgado em 13/12/2016, DJe 19/12/2016.
Para além do elemento subjetivo, o artigo 10, caput da Lei 8.429/92 exige a ocorrência de lesão ao erário, consistente em desvio, apropriação, malbaratamento ou dilapidação de bens ou haveres. O dano ao erário, portanto, comparece no artigo 10 da LIA como elemento objetivo do tipo de improbidade administrativa em questão. Assim sendo, as condutas descritas nos incisos do artigo 10 da LIA não devem ser interpretadas como tipos autônomos de infração, senão como tipos conectados com o caput da regra, a exigir a presença efetiva do dano ao erário.
Nessa linha, o STJ chegou a pacificar sua jurisprudência, em decisões da 1ª e da 2ª Turma, manifestando que “as condutas descritas no art. 10 da LIA demandam a comprovação de dano efetivo ao erário público, não sendo possível caracterizá-las por mera presunção”3.
A tese é acertada, porquanto os elementos do tipo têm como uma de suas funções a de garantir as liberdades individuais e limitar o poder punitivo estatal. O jurisdicionado carece da segurança de que só será punido caso venha a praticar efetivamente a conduta vedada pela lei com todos os contornos previamente definidos. Presumir a ocorrência de algum dos elementos do tipo infracional é, em última instância, presumir a própria ocorrência da infração.
Sem embargo disso, de uns tempos para cá, a jurisprudência do STJ tem admitido, sem que haja previsão legal, a figura do dano in re ipsa. Trata-se de hipótese de dano presumido, que termina por facilitar a tipificação do ato de improbidade descrito no artigo 10 da Lei 8.429/92, como se pode ver nos casos de indevida dispensa de licitação (inciso VIII).
A questão do dano in re ipsa em matéria de improbidade administrativa teve como uma de suas primeiras manifestações a apreciação do AgRg nos EDcl no AREsp 419.769/SC, rel. min. Herman Benjamin, 2ª Turma, julgado em 18/10/2016, DJe 25/10/2016, no qual se destaca a seguinte passagem: “A fraude à licitação tem como consequência o chamado dano in re ipsa, reconhecido em julgados que bem se amoldam à espécie”.
Convém destacar que o voto condutor do acórdão faz referência a dois precedentes da própria 2ª Turma do STJ, ambos da relatoria do min. Mauro Campbell Marques (REsp 1.280.321/MG, DJe 9/3/2012 e REsp 1.190.189, DJe 10/9/2010). Além disso, o voto cita um julgado da 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal, de relatoria do min. Marco Aurélio (RE 160.381/SP, DJ 12/8/1994).
O primeiro acórdão citado como precedente (REsp 1.280.321/MG) foi prolatado em sede de ação civil pública comum — e não em sede de ação de improbidade administrativa. Nesse precedente, o Superior Tribunal de Justiça não admitiu — e nem poderia — a tipificação do ato de improbidade administrativa com base em dano presumido, bastando-se em decidir sobre a nulidade do ato administrativo impugnado e sobre a obrigação de ressarcimento (que independe da tipificação do ato de improbidade).
Os dois últimos (REsp 1.190.189 e RE 160.381) também não foram prolatados em sede de ação de improbidade administrativa, senão em sede de ação popular, que não é ação judicial de caráter punitivo. A Lei 4.717/65 prevê, no artigo 4º, hipóteses de atos presumidamente lesivos ao patrimônio público, mas a disposição tem o efeito prático (e jurídico) apenas de inverter o ônus de prova sobre a legitimidade das condutas, jamais de possibilitar a condenação ao ressarcimento sem efetivo dano ao erário.
O aresto citado (que inaugurou ciclo de reprodução em cadeia no repertório do STJ) contraria o próprio entendimento firmado pela 1ª Seção do Superior Tribunal de Justiça em sede de embargos de divergência, no sentido de que mesmo em ação popular, é necessária a prova da lesão efetiva para que o agente público seja condenado a ressarcir ao erário.
ADMINISTRATIVO. AÇÃO POPULAR. CABIMENTO. ILEGALIDADE DO ATO ADMINISTRATIVO. LESIVIDADE AO PATRIMÔNIO PÚBLICO. COMPROVAÇÃO DO PREJUÍZO. NECESSIDADE.
1. O fato de a Constituição Federal de 1988 ter alargado as hipóteses de cabimento da ação popular não tem o efeito de eximir o autor de comprovar a lesividade do ato, mesmo em se tratando de lesão à moralidade administrativa, ao meio ambiente ou ao patrimônio histórico e cultural.
2. Não há por que cogitar de dano à moralidade administrativa que justifique a condenação do administrador público a restituir os recursos auferidos por meio de crédito aberto irregularmente de forma extraordinária, quando incontroverso nos autos que os valores em questão foram utilizados em benefício da comunidade.
3. Embargos de divergência providos4.
Percebe-se, portanto, que a figura do dano in re ipsa apresenta-se para além do arcabouço legislativo do artigo 10 da Lei 8.429/92 — e a máxima do não enriquecimento sem causa —, revelando descompasso com o princípio da tipicidade da pena. Seu reconhecimento tem o efeito prático de retirar condutas — não efetivamente lesivas ao erário — do campo normativo de incidência do artigo 11 da Lei 8.429/92 (que exige dolo para sua configuração), para acomodá-las no artigo 10, que admite — para o ver jurisprudencial, tanto a modalidade dolosa quanto a culposa.
Admitir-se a configuração dos tipos infracionais do artigo 10 da Lei 8.429/92 com base em mera presunção de dano ao erário, corresponde a estabelecer, sem prévia lei que a defina, uma nova hipótese de improbidade administrativa, a dos atos lesivos por presunção e puníveis com dolo ou culpa.
1 STJ – Corte Especial – AIA 30/AM, rel. ministro Teori Albino Zavascki, j. 21/9/2011.
2 Mais recentemente, no caso emblemático das admissões de parentes por agente político para cargos em comissão ocorridas em data anterior à lei ou ao ato administrativo do respectivo ente federado que a proibisse e à vigência da Súmula Vinculante 13 do STF, o Superior Tribunal de Justiça, por meio de sua 1ª Turma, voltou a afirmar que “a improbidade é uma ilegalidade qualificada pelo intuito malsão do agente, atuando com desonestidade, malícia, dolo ou culpa grave” (REsp 1.193.248-MG, rel. min. Napoleão Nunes Maia Filho, julgado em 24/4/2014).
3 STJ – REsp 1228306/PB, rel. ministro Castro Meira, j. 9/10/2012, REsp 621.415/MG, rel. ministra Eliana Calmon, j. 16/2/2006; REsp 805.080/SP, 1ª Turma, DJe 6/8/2009; REsp 939.142/RJ, 1ª Turma, DJe 10/4/2008; REsp 678.115/RS, 1ª Turma, DJ 29/11/2007; REsp 285.305/DF, 1ª Turma; DJ 13/12/2007; REsp 714.935/PR, 2ª Turma, DJ 8/5/2006; REsp 1.038.777/SP; min. rel. Luiz Fux, 1ª Turma, Dj 3/2/2011, Dp 16/3/2011.
4 STJ – EREsp 260.821/SP, rel. ministro Antonio Carlos Ferreira, rel. p/ acórdão ministro João Otávio De Noronha, j. 1/12/2011.