Democracia e reforma política: a importância do legado de Giovanni Sartori
“…é mandatório que qualquer ensaio de reforma política contemple uma regeneração completa do nosso sistema eleitoral, do nosso sistema partidário e da nossa legislação eleitoral”
Na última segunda-feira (3/4), nós nos despedimos de um dos mais influentes teóricos da democracia de nosso tempo. Aos 92 anos e ainda em plena atividade intelectual, o sociólogo e cientista político italiano Giovanni Sartori parte deixando um legado científico que certamente merecerá nossa revisitação contínua. O presente texto presta uma merecida homenagem ao autor, cujas reflexões não poderão ser negligenciadas no enfrentamento dos desafios atualmente postos às nossas instituições.
Giovanni Sartori formou-se em Ciências Políticas e Sociais pela Universidade de Florença em 1946, tendo se tornado professor emérito dessa instituição anos mais tarde. Na Itália, fundou a Rivista Italiana di Scienza Politica, que até hoje encontra-se em plena atividade. Em 1976, Sartori mudou-se para os Estados Unidos, onde passou a assumir a titularidade da cadeira de Ciência Política da Universidade de Stanford. Três anos depois, tornou-se professor emérito do Departamento de Humanidades da Universidade de Columbia, em Nova Iorque, tendo ocupado a chair Albert Schweitzer.
A lista de prêmios e distinções recebidas por Sartori seria, por si só, suficiente para ilustrar sua proeminência intelectual. Nela congregam-se nada menos que oito títulos Honoris Causa, concedidos por universidades da Itália, dos Estados Unidos, do México, da Grécia, da Argentina e da Espanha. Felizmente, o Brasil também integra o rol de países que reconheceu o brilhantismo do autor. Em 1999, Sartori recebeu do então presidente da República, Fernando Henrique Cardoso, o prêmio de Comendador da Ordem Nacional do Cruzeiro do Sul, distinção da nossa tradição imperial que já foi conferida a importantes teóricos estrangeiros, como o renomado filósofo belga Claude Lévi-Strauss.
Ao longo de sua carreira, Giovanni Sartori produziu influentes obras e ensaios sobre Teoria Política e Teoria da Comunicação. Entre seus títulos de destaque publicados em língua portuguesa podem ser citados os festejados Elementos de Teoria Política, A Teoria Democrática Revisitada: o debate contemporâneo e Homo Videns: Televisão e pós-pensamento. Sua última em vida, intitulada La carrera hacia ningún lugar: Diez lecciones sobre nuestra sociedad en peligro, foi publicada em 2015 e ainda não possui tradução para o nosso idioma. Nesse trabalho, que demonstra a significativa contemporaneidade das reflexões do autor, Sartori aborda diversas inquietudes das sociedades globais, como a busca pelo sistema eleitoral perfeito e os desafios da proteção da cidadania no contexto de fluxos migratórios acentuados.
O constructo intelectual do autor italiano é caracterizado, sobretudo, por sua postura avessa à cristalização comodista de instituições seculares. Suas ideias desmitificam a existência de modelos políticos universalmente válidos e atemporalmente adequados à consolidação dos ideais democráticos. A investigação exaustiva da experiência comparada desenvolvida em suas obras mostra que mesmo alguns dos dogmas mais difundidos da teoria política contemporânea, como a própria representatividade proporcional, podem se afigurar falíveis diante de condições históricas e circunstanciais que exijam soluções regionalizadas.
É válido destacar que, nos seus trabalhos, Sartori conferiu significativo destaque à análise da realidade política brasileira. Em seu Engenharia Constitucional: como mudam as constituições, por exemplo, o teórico italiano tratou especificamente das discussões que permearam o Plebiscito Constitucional de 21 de abril de 1993, no qual se deliberou sobre a possibilidade de modificação do nosso sistema de governo. Em relação a esse plebiscito, Sartori ironizou a viabilidade da implementação do sistema parlamentarista no país, argumentando que a natureza indisciplinada dos partidos políticos brasileiros seria incompatível com esse sistema. Em uma assertiva que parece ser endereçada aos dias atuais, Sartori chegou a afirmar que “provavelmente nenhum país no mundo atual é tão avesso aos partidos políticos como o Brasil — na teoria e na prática”[1]. Nesse sentido, ressaltou ainda que “o credo e a retórica antipartidária que permeiam o país fazem com que o desenvolvimento de qualquer partido apto ao parlamentarismo seja não só improvável, mas totalmente inconcebível”[2].
No enfrentamento desses e de outros pontos controversos que permeiam os debates sobre a reforma política brasileira, o contínuo resgate do legado de Giovanni Sartori afigura-se imprescindível para a racionalização dos rumos que desejamos seguir. Se por um lado já se alça entre nós de forma quase que unânime o diagnóstico de que o estado da arte de nosso sistema político é incapaz de garantir uma soberania popular efetiva, por outro há que se ter em mente que a superação das deficiências de nosso modelo depende de mudanças estruturais que vão muito além da mera incorporação casuística de fórmulas prontas e acabadas.
Nesse sentido, é mandatório que qualquer ensaio de reforma política contemple uma regeneração completa do nosso sistema eleitoral, do nosso sistema partidário e da nossa legislação eleitoral. Ademais, o sucesso de eventuais modificações normativas nesse sentido dependerá ainda do fortalecimento institucional da atuação dos entes incumbidos da fiscalização e acompanhamento do processo eleitoral, em especial da Justiça Eleitoral e do Ministério Público Eleitoral.
Embora ainda seja muito cedo para se fincar previsões definitivas sobre a efetividade das mudanças que estão sendo pensadas, nunca é demais ressaltar a responsabilidade que recai sobre nós de se desenhar soluções inovadoras que não comprometam os ganhos de estabilidade institucional adquiridos a duras penas no período pós-1998. Nos próximos passos da nossa longa jornada, as lições de Sartori certamente servirão para nos alertar sobre a necessidade de se pensar essas mudanças sem desconsiderar os fundamentos estruturantes da nossa ordem constitucional.
Esta coluna é produzida pelos membros do Conselho Editorial do Observatório da Jurisdição Constitucional (OJC), do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP).
[1] SARTORI, Giovanni, Engenharia Constitucional: Como Mudam as Constituições. Brasília, Editora Universidade de Brasília, 1996, p. 112.
[2] Op. Cit., p. 113.
Gilmar Mendes é ministro do Supremo Tribunal Federal e presidente do Tribunal Superior Eleitoral.
Revista Consultor Jurídico