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Supremo reconhece a juridicidade do afeto nas relações familiares , por Ana Paula Carvalhal

 Supremo reconhece a juridicidade do afeto nas relações familiares

 

“A União alega que apenas a convivência duradoura, pública e contínua, possibilita o reconhecimento da união como entidade familiar. Sendo a pessoa casada, outro relacionamento, não público, seria apenas uma forma de concubinato, que não pode ser confundida com a união estável, especialmente para fins previdenciários.”

 

 

 

Por Ana Paula Carvalhal

 

 

O Supremo Tribunal Federal tem tomado importantes decisões para o Direito de Família. Uma das mais importantes após a Constituição de 1988 é, sem dúvida, a que reconheceu a união homoafetiva como entidade familiar.

Além de marco na luta dos direitos de minorias, o julgamento da ADI 4.277 e da ADPF 132, ao interpretar o artigo 236 da Constituição, estabelecendo a prevalência da liberdade das pessoas na conformação de suas famílias, bem como o pluralismo de entidades familiares, influenciará por certo a definição de outras relevantes causas relacionadas ao Direito de Família.

No âmbito do controle difuso, o número de temas com repercussão geral reconhecida demonstra a vontade da corte em consolidar o “novo paradigma no plano das relações familiares, justificado pelo advento da Constituição Federal de 1988” (ministro Celso de Mello, Relator do RE 477.554, Segunda Turma, DJe 26.8.2011).

Até o momento, tiveram repercussão geral reconhecida os seguintes temas: Superação da coisa julgada para possibilitar nova ação de investigação de paternidade em face de viabilidade de realização de exame de DNA – Tema 392 (RE 363.889, ministro Dias Toffoli); Requisitos legais diferenciados para a concessão de pensão por morte em relação a cônjuges homens e mulheres de ex-servidores públicos – Tema 457 (RE 659.424, ministro Celso de Mello); Alcance do direito sucessório em face de união estável homoafetiva – Tema 498 (RE 646.721, ministro Marco Aurélio); Possibilidade de concubinato de longa duração gerar efeitos previdenciários – Tema 526 (RE 883.168, ministro Luiz Fux); Possibilidade de reconhecimento jurídico de união estável e de relação homoafetiva concomitants, com o consequente rateio de pensão por morte – Tema 529 (ARE 656.298, ministro Alexandre de Moraes); Prevalência da paternidade socioafetiva em detrimento da paternidade biológica – Tema 622 (RE 898.060, ministro Luiz Fux); Validade de dispositivos do Código Civil que atribuem direitos sucessórios distintos ao cônjuge e ao companheiro – Tema 809 (RE 878.694, ministro Roberto Barroso); e Possibilidade de o ensino domiciliar (homeschooling), ministrado pela família, ser considerado meio lícito de cumprimento do dever de educação, previsto no artigo 205 da Constituição Federal – Tema 822 (RE 888.815, ministro Roberto Barroso).

Apenas não teve repercussão geral reconhecida o Tema 560 (RE 633.981, relator ministro Gilmar Mendes), que buscava definir a ausência de coabitação dos cônjuges como prova da separação de fato.

Dos temas com repercussão geral reconhecida, já tiveram seu mérito analisado pela Corte os temas 392 e 622.

No julgamento do mérito do Tema 392, a Corte decidiu relativizar a coisa julgada nas ações de investigação de paternidade em que não foi possível realizar o exame de DNA, privilegiando-se a busca da identidade genética, como emanação de seu direito de personalidade.

Ao analisar a prevalência da paternidade socioafetiva em detrimento da paternidade biológica, Tema 622, o STF acabou por fixar a tese segundo a qual “a paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro público, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitantemente baseado na origem biológica, com os efeitos jurídicos próprios”. Por maioria, os ministros negaram provimento ao Recurso Extraordinário em que um pai biológico buscava ver reconhecida a prevalência da paternidade socioafetiva, de modo a reverter a decisão que estabeleceu sua paternidade, com efeitos patrimoniais, independentemente do vínculo existente entre sua filha e a pessoa que a criou.

Também aqui o conceito de família foi analisado pela corte. O relator, ministro Luiz Fux, assentou que “com a evolução no campo das relações familiares, e a aceitação de novas formas de união, o eixo central da disciplina da filiação se deslocou do Código Civil para a Constituição Federal”, de modo que o afeto passa a prevalecer em relação a centralidade do casamento. Acompanhando a maioria, a ministra Cármen Lúcia ressaltou que “amor não se impõe, mas cuidado sim”, sendo o cuidado um direito assegurado, decorrente da paternidade responsável. O ministro Edson Fachin ficou vencido, ao defender a prevalência do vínculo socioafetivo no caso dos autos.

Embora não tenha sido concluído o julgamento, o Tema 802 já possui ampla maioria formada pela inconstitucionalidade dos dispositivos do Código Civil que distinguem os direitos sucessórios da esposa e da companheira. Suspenso o julgamento em razão de pedido de vista do ministro Marco Aurélio, após o voto divergente do ministro Dias Toffoli, os ministros Edson Fachin, Teori Zavascki, Rosa Weber, Luiz Fux, Celso de Mello e Cármen Lúcia já haviam acompanhado o relator, ministro Roberto Barroso, para quem a ideia de que a relação oriunda do casamento tenha peso diferente da relação havida da união estável é inconstitucional.

A base do voto condutor da maioria formada até o momento reside na concepção de que o regime sucessório sempre foi conectado à noção de família e que a Constituição de 1988 superou a tradicional concepção de família ligada ao casamento, privilegiando os laços decorrentes da afetividade e do projeto de vida em comum.

Dos que ainda não tiveram seu mérito analisado pelo Plenário do Supremo, os Temas 526 e 529 da sistemática da repercussão geral prometem causar grande polêmica e debate na sociedade. Trata-se da possibilidade de reconhecimento de famílias simultâneas e seus efeitos patrimoniais e previdenciários.

No caso do RE 883.168, de relatoria do ministro Luiz Fux, o acórdão do TRF da 4a Região reconheceu o direito a divisão da pensão especial de ex-combatente entre a esposa e a companheira do falecido. Nas razões do recurso, a União alega que apenas a convivência duradoura, pública e contínua, possibilita o reconhecimento da união como entidade familiar. Sendo a pessoa casada, outro relacionamento, não público, seria apenas uma forma de concubinato, que não pode ser confundida com a união estável, especialmente para fins previdenciários.

 

O IBDFAM, que ingressou no feito como amicus curiae, destaca que a matéria, embora suscitada no âmbito do Direito Previdenciário, é atinente ao Direito de Família, uma vez que a questão jurídica em essência trata do “reconhecimento jurídico da existência de uma família e de uma conjugalidade constituídas paralelamente ao casamento”. Voltando ao precedente fixado na ADI 4.277 e na ADPF 132, sustenta que a Constituição não estabelece hierarquia entre as entidades familiares e que o rol do artigo 226 da Constituição é exemplificativo. Defende que as famílias paralelas ou simultâneas são um norte necessário para se repensar o tratamento jurídico dispensado à conjugalidade contemporânea, não mais adstrita ao modelo de família matrimonial, monogâmica.

 

Já no ARE 656.298, de relatoria do ministro Alexandre de Moraes, discute-se situação muito assemelhada a anterior, em que o de cujus teria mantido, simultaneamente, uma união heterossexual e uma união homoafetiva. O acórdão recorrido, no entanto, não reconheceu a possibilidade de existência simultânea de duas famílias, entendendo tratar-se de situação análoga a de bigamia, proibida pelo Código Penal.

Importante diferenciar a situação das “famílias simultâneas” da poligamia, comum em algumas sociedades, como os mórmons. Nas famílias simultâneas, apenas um dos cônjuges mantém dupla vinculação de conjugalidade, ou seja, uma pessoa forma duas famílias paralelas. No caso da poligamia, uma família é formada por meio da vinculação conjugal de mais de duas pessoas.

O também chamado poliamor consiste na formação de vínculo de conjugalidade entre mais de duas pessoas. Já há registros de formação de entidades familiares poliafetivas na sociedade brasileira. No Município de Tupã, em agosto de 2012, foi lavrada a primeira escritura pública de união poliafetiva entre duas mulheres e um homem, tendo os declarantes consignado a formação de um “modelo de união afetiva múltipla e simultânea.

Embora o Supremo Tribunal Federal ainda não tenha sinalizado que enfrentará a matéria, é provável que o precedente a ser fixado em torno do tema das famílias simultâneas venha a influenciar fortemente o reconhecimento das entidades familiares poliafetivas. Ora, os tribunais já vem reconhecendo efeitos previdenciários às concubinas, situações em que a esposa ou companheira não tinha conhecimento da existência de outra família concomitante, parece coerente supor que, nesse mesma linha, tende a reconhecer, igualmente, o poliamor como forma de privilegiar a liberdade das partes envolvidas.

O tema é tormentoso e já foi enfrentado por outras cortes constitucionais. No Canadá,  mórmons fundamentalistas questionaram os dispositivos do Código Penal que criminalizam a poligamia naquele país. Alegaram que a proibição viola direitos fundamentais, tais como liberdade religiosa e liberdade de associação. A questão ainda não foi enfrentada em definitivo pela Suprema Corte Canadense. Já o Tribunal Federal de Utah, nos Estados Unidos, entendeu que a lei que criminaliza a bigamia é inconstitucional por violação da liberdade religiosa (clique aqui para ler).

 

Certo é que, por trás de todos os casos de repercussão geral envolvendo Direito de Família, há um conflito entre a demanda por liberdade dos cidadãos na formação de suas famílias e a intervenção do Estado na regulamentação das entidades familiares. A luta entre o princípio da afetividade e as concepções tradicionais de família ainda travará muitas batalhas pelos corredores do Supremo Tribunal Federal.

Ana Paula Carvalhal é procuradora da Fapesp e professora de Direito Constitucional da FMU. Mestre em Direito Constitucional pela Universidade de Coimbra e doutora em Direito do Estado pela USP.

 

Revista Consultor Jurídico