Ceticismo e autodestruição: a moda do Direito retrô à brasileira
Por Lenio Luiz Streck e Flavio Quinaud Pedron
Nosso ponto de partida é o livro O Orfanato da Srta. Peregrine para Crianças Peculiares(originalmente escrito, em 2011, por Ransom Riggs e lançado neste segundo semestre na adaptação cinematográfica dirigida por Tim Burton), no qual somos apresentados a um mundo ficcional habitado por crianças com habilidades especiais das mais diversas, chamadas de peculiares (super força, invisibilidade, levitação, etc.), que habitam não apenas um local especial, um orfanato, como ainda um tempo especial. A Srta. Peregrine, responsável pelo cuidado das crianças e por gerir o orfanato que dá título ao livro/filme é, também, uma pessoa peculiar; ela é capaz de se transformar em uma ave — um falcão peregrino — além de controlar o tempo cronológico, possibilitando esconder os protagonistas em um loop, uma fenda no tempo, de modo que estão destinados a repetir sempre o mesmo dia, e, com isso, nunca envelhecerem.
O que a obra tem em comum com o cenário atual da Teoria e da Dogmática do Direito brasileiro?
Ao que parece, estamos em um caso curioso de loop, condenados a repetir anos e anos, em sequência, uma versão caricaturada do que na Alemanha, durante o curso da República de Weimar, logo após o fim da Primeira Guerra Mundial, se convencionou chamar de período do debate sobre os Métodos Jurídicos (ou a crise da Ciência Jurídica e da Teoria do Estado).[1] Na história alemã, temos a constatação da insuficiência das teorias e das tradições básicas da Teoria do Direito: de um lado o já insustentável Jusnaturalismo, do outro o Positivismo Jurídico; e, se não bastasse, a ascensão de uma postura cético-realista assumida por um conjunto de teorias decisionistas. Assim, apelam ou para toda uma linha de raciocínio jurídico (quer no jusnaturalismo, quer no positivismo jurídico) fundada em uma ordem ainda presa àquilo que Ronald Dworkin denominará por aguilhão semântico [2] — ou seja, a (equivocada) pressuposição de que todas as teorias do direito partem dos mesmos critérios e dos mesmos pressupostos para realizar suas afirmações — ou o advento de posturas céticas [3] que abdicam pressupostos de legitimidade democrática em troca de uma funcionalidade do direito.
Assim, no contexto histórico do Direito alemão, vamos assistir ao esforço monumental de diversos juristas em desenvolver teorias tentando superar a crise e dar respostas para os problemas que estavam vivenciando sem, contudo, serem capazes de perceber que a própria crise era produto de um esgotamento dos paradigmas jurídicos tradicionais por eles assumidos. Dessa forma, tal como Chronos (Χρόνος), o esgotamento das tradições jurídicas presas ao aguilhão semântico pareceria devorar seus filhos e, porque não, a si próprio. Apenas com a percepção de que tais teorias semânticas não eram suficientemente capazes de fornecer respostas aos novos problemas e, dessa forma, o próprio paradigma necessitava ser rompido, iniciando-se todo um esforço de volta a zero, para (re)construir a Ciência Jurídica a partir de um novo horizonte de sentido. Mas apenas com o pós Segunda Guerra que tal constatação atingirá a Teoria do Direito alemã, impulsionando-os para uma revolução jurídica que ficou conhecida como pós-positivismo.
O que se mostra peculiar, no curioso caso brasileiro, é que — talvez por adesão consciente a alguma forma de postura retrô/hipster da parte de nossos juristas; talvez por ignorância de debates acerca de tradições jurídicas — a prática jurídica atual (quer pela via de uma jurisprudência lotérico-defensiva, quer por uma Dogmática submissa à primeira [4]) parece ainda ignorar toda o conjunto de aprendizados históricos que são possíveis se assumir a partir da experiência alemã. E a partir desse desprezo histórico, vamos nos perceber como se presos no tal loop, condenados a repetir as discussões de um direito passado, em total descompasso com os temas em discussão nos principais fóruns jurídicos mundiais.
É igualmente peculiar imaginar que, após um pouco mais de um século após a experiência estrangeira, ainda estejamos discutindo a possibilidade de redução de complexidade pela via de um curioso sistema de julgamentos de teses, denominados de precedentes à brasileira. O direito é o que as cortes de precedentes dizem que é. Isto chega a ser espantoso. Ou que tenhamos um judiciário que ainda reluta e se debata para não assumir que tem o compromisso democrático — o que não se trata se uma opção! — de fundamentar adequadamente seus provimentos por meio de razões e não mais de impressões, ou naquilo que tomou em seu café da manhã. Igualmente, vemos que esses juristas nacionais ainda se mostram vacilantes em abraçar uma teoria normativa sobre os princípios jurídicos, reduzindo-os, na maioria das vezes, a um uso retórico, sob o mantra “princípios são valores” — pois quando querem afirmar que uma norma é importante, a rotulam como princípio — abraçando, com isso, um panprincipiologismo.[5]
O que parece também muito assentado em nosso senso (in)comum jurídico é o que fato de que teoria e prática se assentarem em zonas opostas e, quase sempre, inconciliáveis. A teoria é desvalorizada pela defesa de uma praxisdescomprometida com a construção de um paradigma democrático. Ao passo que por prática se assume um culto estratégico-narcísico de reprodução de entendimentos, enunciados, súmulas do Judiciário nacional, que, contudo, não se entende comprometido e vinculado a seus próprios julgamentos marcando uma verdadeira jurisprudência lotérica.[6] Isso tudo agravado pela cultura prêt-à-porter reproduzida por um ensino standard, retroalimentado por concursos públicos, cursinhos de preparação e livros de rasa doutrina. Não é raro ver nas bancadas de fóruns e tribunais — e nas citações em julgados — livros utilizados para decoreba em concursos públicos e por alunos para estudar para a prova da OAB.
Resumo da Ópera: mesmo obras de ficção no campo da literatura e do cinema parecem perder para a criatividade do direito brasileiro, que (re)inventa o tempo todo as velhas fórmulas sob novos rótulos para se mover sem sair do lugar;[7] ou seja, com isso tentamos ainda sustentar a insustentável tradição de velhas teorias positivistas-não-positivistas ou pós-positivistas (há tantas variações) sob novas roupagens, sendo que todas elas ancoradas no mesmo imaginário cético-realista (agora já retrô) que invadia a Europa no início do século XX. Todas com uma coisa em comum: o desprezo pela teoria da decisão e a aposta no protagonismo judicial.
A pergunta é: até quando essa moda retrô jurídica vai durar? Até quando vamos continuar nos negando a ruptura dos velhos e insuficientes esquemas teóricos travestidos de “paradigmas”? O incrível de tudo isso é que a comunidade jurídica caminha, no entremeio dos dois ceticismos, para aautodestruição. A teoria do Direito foi transformada em teoria política do poder. Consequência: vale a interpretação a partir do ato de vontade (de poder). Com isso, cria-se o paradoxo: se essa postura estiver certa, está errada. Porque se, ao fim e ao cabo, o Direito é o que quem decide disser que é, então o próprio Direito já não é direito. É como aquele sujeito que diz aos quatro ventos: “não há verdades”. Pronto: acabou de confessar que é um mentiroso.
1 Esse cenário, bem como os principais argumentos de diversos pensadores da Teoria do Direito nesse contexto histórico são reconstruídos no cap. 2 do livro: PEDRON, Flávio Quinaud. Mutação Constitucional na Crise do Positivismo Jurídico. Belo Horizonte: Arraes, 2012. Remetemos também a leitura de duas outras obras: (1) CALDWELL, Peter C. Popular sovereignty and the crisis of German Constitutional Law: the Theory and Practice of Weimar Constitutionalism. London: Duke University Press, 1997; e (2) JACOBSON, Arthur J.; SCHLINK, Bernhard (Org.). Weimar: a jurisprudence of crisis. Trad. Belinda Cooper. Berkeley/London: University of California, 2002.
2 Segundo o autor: “Ou advogados, apesar das aparências, realmente aceitam, em linhas gerais, os mesmos critérios para decidir quando uma afirmação sobre o direito é verdadeira, ou não pode existir absolutamente nenhum verdadeiro acordo ou desacordo sobre o que é o direito, mas apenas a estupidez de pessoas pensando que divergem porque atribuem significados diferentes ao mesmo som” (DWORKIN, Ronald. O Império do Direito. Tradução de Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 1999. [Direito e Justiça], p. 56).
3 O Ceticismo se apresenta tanto sobre a forma de um ceticismo interior, quando de um ceticismo externo. O cético interior acredita que é possível interpretar; mas não acredita que alguém possa estar certo. O cético exterior nem acredita na atividade interpretativa. Ele afirma a possibilidade de desenvolver uma leitura das práticas sociais livre de valores pessoais ou culturais do observador. Dworkin é fulminante, ao dizer que diante da suposta falta de parâmetros, esses céticos afirmam que não poderá nunca haver uma resposta correta, mas apenas a resposta que aquele responsável pela decisão quiser. A questão é saber qual dos dois ceticismos impera no Brasil: a interna ou a externa?
4 Vide voto do ex-Min. Eros Grau em seu voto na Rcl. 4335/AC e sua equivocada alegação de que a função da doutrina é repetir as decisões e posições tomadas pelo STF. Isso constitui uma arrematada confissão de realismo jurídico, transformando o direito naquilo que o judiciário diz que é.
5 STRECK, Lenio. O que é isso: decido conforme minha consciência? Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010; ver crítica em THEODORO JR; NUNES; BAHIA; PEDRON. Novo CPC: Fundamentos e Sistematização. Rio de Janeiro: GeN/Forense, 2016, cap. 2.
6 Chamamos por jurisprudência lotérica a prática viciosa dos tribunais brasileiros que negam qualquer compromisso com a coerência e com a integridade do direito, de modo que produzem decisões completamente diferentes para casos semelhantes, quer por seus órgãos colegiados em um mesmo tribunal, quer o mesmo julgador; dessa forma não demarcam a prática adequada de um overruling (superação) do entendimento já fixado. THEODORO JR; NUNES; BAHIA; PEDRON. Novo CPC: Fundamentos e Sistematização. Rio de Janeiro: GeN/Forense, 2016
7 Um caso típico é o ressurgimento da adoção de uma leitura avessa da teoria de mutação constitucional apenas para mascarar e fornecer uma capa de legitimação ao decisionismo que impera no STF. Sobre mais dessa crítica ver: PEDRON, Flávio Quinaud. Mutação Constitucional na Crise do Positivismo Jurídico. Belo Horizonte: Arraes, 2012.
Lenio Luiz Streck é jurista, professor de Direito Constitucional e pós-doutor em Direito. Sócio do escritório Streck e Trindade Advogados Associados: www.streckadvogados.com.br.
Flavio Quinaud Pedron é sócio do escritório Tolentino, Chernicharo & Pedron Sociedade de Advogados, doutor e mestre em Direito pela UFMG. É professor adjunto do mestrado em Direito e da Graduação da Faculdade Guanambi (Bahia). Professor Adjunto da PUC-Minas (Graduação e Pós-graduação). Membro da Rede Brasileira de Direito e Literatura (RDL).
Revista Consultor Jurídico