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Garantismo à la carte: integral, desnatado ou semi-desnatado? Por Salah H. Khaled Jr

                          

Garantismo à la carte: integral, desnatado ou semi-desnatado?

Por Salah H. Khaled Jr., Doutor e mestre em Ciências Criminais (PUCRS), mestre em História (UFRGS). Professor da Universidade Federal do Rio Grande (FURG). Escritor de diversas obras jurídicas. Palestrante.

 

 

Esta coluna não irá explorar o garantismo em si mesmo. Para quem procura um texto pequeno com tais contornos, indico a síntese de Alexandre Morais da Rosa (veja aqui) ou o meu texto sobre o discurso de legitimação da pena de Ferrajoli (veja aqui).

Minha intenção é outra: discutir brevemente as aventuras – e desventuras – do garantismo em terra brasilis. Trata-se de um processo fascinante de recepção, apropriação, adaptação e readaptação de uma teoria desenvolvida para uma realidade completamente distinta da nossa e que revela muito sobre a postura utilitária que governa as escolhas conceituais de muitos atores jurídicos brasileiros.

Tive a oportunidade de acompanhar no início do milênio – como aluno da graduação em Ciências Jurídicas e Sociais da PUCRS – o entusiasmo com que foi recebido pelos professores da instituição Direito e Razão, de Luigi Ferrajoli. Os motivos para comemorar eram muitos: a obra efetivamente representava, naquele momento, um sopro de esperança significativo. O garantismo de Ferrajoli sistematizava grande parte dos postulados do Direito Penal de forma consistente e poderosa, podendo até hoje ser considerado como o produto mais acabado da tradição moderna do conhecimento jurídico-penal. Certamente havia muito a descobrir – e redescobrir – na obra. Não foi diferente em inúmeros outros recantos do país: assim como no festejado Departamento de Ciências Criminais da PUCRS, células de resistência garantista brotaram rapidamente nas mais distintas regiões do Brasil. Diante do deserto conceitual que caracterizava a manualística brasileira da época – com raras exceções – a obra representava praticamente um arsenal de guerrilha para hostilizar o poder punitivo.

Muitas grandes obras do período – hoje consideradas clássicas – como "Introdução crítica ao processo penal: fundamentos da instrumentalidade garantista" (de Aury Lopes Jr) e "Pena e garantias" (de Salo de Carvalho) orgulhosamente ostentavam o estandarte do garantismo e demonstravam a matriz teórica da qual os autores partiam.

Mas quem conhece minimamente essa história sabe que o "Império" contra-atacou. Uma campanha massiva foi deflagrada contra o garantismo pelos punitivistas de plantão. O processo de estigmatização foi tão intenso e bem sucedido que a expressão rapidamente adquiriu conotação pejorativa: a etiqueta "garantista" foi distribuída em grande escala e "garantistas" e "não-garantistas" simpatizantes da teoria e comprometidos com a contenção do poder punitivo foram implacavelmente rotulados e desclassificados. Garantismo e impunidade rapidamente tornaram-se equivalentes para muitos adeptos do senso comum jurídico. Com certeza todos que viveram essa época se recordam de frases como "esse é mais um daqueles garantistas", o que indicava um discurso a ser evitado e repudiado. O processo de satanização foi tão bem sucedido que a simples utilização da nomenclatura "juiz de garantias" no projeto do novo CPP bastou para praticamente sepultar a ideia, mostrando o quanto o garantismo havia se tornado objeto de desprezo em terra brasilis: referir o garantismo passou a ser um equívoco estratégico, ou seja, era garantia – perdoe o trocadilho – de derrota em várias instâncias do campo jurídico.

A história poderia acabar aqui, mas o relato da recepção do garantismo no Brasil comporta uma reviravolta digna dos melhores roteiros de Hollywood. Com o passar dos anos, grande parte dos autores que haviam abraçado a teoria na primeira década do milênio começaram a pensar para além do garantismo. E isso não tem nenhuma relação com o processo de estigmatização a que ele foi submetido: decorreu da percepção de inúmeras insuficiências do próprio garantismo, por parte de muitos dos entusiastas originais. Dentre elas, em apertada síntese, poderia citar:

a) O fato de se tratar de uma teoria essencialmente moderna, o que significa dizer que o garantismo é demasiadamente dependente de uma série de conceitos cujo prazo de validade já prescreveu. (ver aqui).

b) A adoção de um conceito de verdade como correspondência – de Tarski – que é insuficiente para o processo penal e capacita delírios inquisitórios, apesar de Ferrajoli não admitir que o juiz interfira na gestão da prova. (Ver KHALED JR, Salah H. A busca da verdade no processo penal: para além da ambição inquisitorial. São Paulo: Atlas, 2013).

c) Uma visão absolutamente ingênua de história, que glorifica a apropriação da justiça – ou dos mecanismos de resolução de conflitos – pelo Estado como negação da violência privada, leitura que a historiografia contemporânea desqualifica completamente. (ver aqui).

d) A adoção de uma teoria de legitimação da pena – o utilitarismo renovado – que não escapa da crença na bondade do poder punitivo, embora Ferrajoli não possa exatamente ser considerado um devoto dessa religião. (ver aqui).

Eu poderia listar muitas outras insuficiências, mas como referi no início, não é este o propósito da coluna. Como o leitor pode perceber, são muitas as razões que levaram Aury Lopes Jr a abandonar a expressão garantista na obra anteriormente referida: sua edição mais recente trazia o subtítulo instrumentalidade constitucional. Sua obra posterior foi "Direito processual penal e sua conformidade constitucional" e as edições mais recentes, já pela Saraiva, apenas "Direito processual penal", o que não indica rompimento ou rejeição completa do garantismo, mas o reconhecimento de que ele somente pode ser recebido com significativas reservas. Em minha tese de doutorado publicada pela editora Atlas – "A busca da verdade no processo penal: para além da ambição inquisitorial" – tentei (re)pensar o processo penal a partir do signo da complexidade e para além da tradição moderna (ver aqui). Elmir Duclerc tem sustentado uma teoria agnóstica do processo penal, um trabalho que vale a pena conhecer (ver aqui). Enfim, são inúmeras as leituras e não tenho como relacionar todas aqui.

Por outro lado, se os acadêmicos comprometidos com a contenção do poder punitivo foram progressivamente se afastando do garantismo e/ou pensando para além dele, nos últimos anos um processo absolutamente inesperado ganhou cada vez mais impulso: antigos adversários do garantismo o (re)descobriram e passaram a defender uma interpretação muito peculiar da teoria, que chamam de garantismo integral. Sob essa leitura, ela assume outra conotação: supostamente deixa de estar restrita ao aspecto negativo, ou seja, de contenção, e é chamada a autorizar argumentativamente funções positivas de proteção de direitos fundamentais; é comum que a argumentação conecte garantismo com a leitura da proporcionalidade de acordo com o par proibição de excesso/proibição de insuficiência, segundo concepção alemã recepcionada no Brasil por número significativo de autores.

Com certeza é um fenômeno impensável no início do milênio: os adeptos do garantismo "integral" sustentam que os defensores do que chamam de garantismo penal são responsáveis por uma recepção parcial e inadequada da teoria de Ferrajoli e, curiosamente, reivindicam para si mesmos a condição de intérpretes privilegiados do garantismo. Com certeza o leitor compreende agora a minha provocação inicial: garantismo integral, desnatado ou semi-desnatado?

Evidentemente estamos diante de um imbróglio acadêmico significativo e, para além dele, de um fascinante processo de recepção e adaptação teórica. Não tenho qualquer intenção de reivindicar a condição de intérprete privilegiado da obra de Ferrajoli e de forma pedante indicar que leitura é ou não condizente com a sua teoria. No entanto, é preciso indicar que existem limites para o que a hermenêutica comporta. Ainda que de certo modo o texto somente se realize com a execução pelo leitor, um relativismo saudável não pode autorizar que se diga "qualquer coisa sobre qualquer coisa", como pontuou Lenio Streck.

A primeira questão que me parece pertinente é bastante óbvia: pode existir uma recepção não parcial do garantismo, considerando que estamos na América Latina e a nossa realidade concreta em nada se assemelha ao contexto no qual foi produzida a teoria? De imediato eu digo que não. Não é por acaso que Dussel afirmou que "a filosofia europeia não é universal" (ver aqui). Grande parte dos acadêmicos politicamente engajados está envolvida no empreendimento inadiável que é o desenvolvimento de um pensamento decolonial, ou seja, o repensamento do discurso para que tenhamos uma estrutura de pensamento voltada para a particularidade da nossa realidade marginal, como diria Zaffaroni. A distância que separa nossos jardins devastados dos jardins floridos da Europa é incomensurável: afinal, nós convivemos diariamente como um sistema penal predador de direitos humanos. Eles não conhecem nada remotamente semelhante a isso. Consagramos um aparato penitenciário catastrófico e sedento por corpos objetificados e submetidos a um poder punitivo executivo, que não se deixa controlar por mecanismos jurídicos que lá não penetram. Nosso processo penal permanece refém de dispositivos inquisitórios do CPP de 1941, cuja inspiração no sistema "misto" do Código de Instrução Criminal de Napoleão e no próprio Manual dos Inquisidores de Eymerich dificilmente pode ser negada.

Diante disso, não pode existir defesa de um garantismo "integral" no Brasil senão como abstração teórica absoluta que desconsidera a complexidade da realidade concreta. Necessariamente estaremos diante de adaptações e apropriações mais ou menos utilitárias e pragmáticas da teoria, sejam elas conscientes ou inconscientes. Não há como ser diferente.

Afinal, o que fizeram os acadêmicos que "recepcionaram parcialmente" o garantismo no início do milênio? Creio que foram sensíveis justamente a essa dor: pensaram a teoria de forma conectada com a realidade e se valeram dela como elemento importante para o desenvolvimento de uma narrativa jurídica comprometida com a democracia e a contenção do poder punitivo. E como esse propósito é maior do que a fidelidade a qualquer teoria, continuaram a empreender esforços nesse sentido, o que fez com que avançassem em relação ao próprio garantismo. Será este um garantismo semi-desnatado ou desnatado, com calorias reduzidas para comportar a realidade peculiar do paciente que potencialmente receberá o remédio?

Talvez. Mas como eu referi, existe um "outro" garantismo: um garantismo supostamente "integral" que – pelo menos na minha leitura – ultrapassa o limite do que pode ser dito. De fato, a teoria de Ferrajoli comporta um aspecto positivo. E nenhum dos autores que receberam o garantismo no Brasil no início do milênio negou isso. Salvo melhor juízo, não me recordo de que tenham dito que o Direito Penal não tutela bens jurídicos – ou direitos fundamentais – no sentido de que os protege (algo que eu particularmente não admitiria: mas isso é conversa para outro dia). Apenas não deram ênfase a tal aspecto, e não devem ser condenados por isso: não é na dimensão positiva que naquele momento a obra de Ferrajoli representava uma significativa contribuição. Diferentemente, o que os adeptos do garantismo "integral" estão defendendo é um garantismo travestido de Defesa Social: estão usando a expressão como artifício apto a legitimar até a prisão preventiva e quiçá a prisão para condenados em 2ª instância por crimes graves. Se querem Defesa Social, a matriz é Marc Ancel e não Ferrajoli. Não estamos diante de uma mera adaptação seletiva e muito menos de uma revelação da essência da teoria. Nenhuma leitura que restrinja drasticamente as liberdades individuais – e com isso o próprio Estado Democrático de Direito – pode reivindicar amparo no garantismo de Ferrajoli, sob o pretexto de desempenho mais eficaz de supostas funções positivas.

O garantismo "integral" não é sequer desnatado. Estão colocando soda cáustica, formol, água oxigenada e cal no leite e isso tem nome: falsificação. É mais do que garantismo à la carte: estão colocando no menu uma opção esdrúxula, que não só não combate a catástrofe que é o nosso sistema penal, como potencialmente a aprofunda.

Mas o prato está fazendo muito sucesso, para o delírio de quem é viciado em punição (dos outros, é claro).

Estou no Justificando quinzenalmente, sempre nos sábados. Até a próxima. Um grande abraço e bom fim de semana!

Salah H. Khaled Jr. é Doutor e mestre em Ciências Criminais (PUCRS), mestre em História (UFRGS). Professor da Universidade Federal do Rio Grande (FURG). Escritor de obras jurídicas. Autor de A Busca da Verdade no Processo Penal: Para Além da Ambição Inquisitorial, editora Atlas, 2013 e Ordem e Progresso: a Invenção do Brasil e a Gênese do Autoritarismo Nosso de Cada Dia, editora Lumen Juris, 2014 e e co-autor, com Alexandre Morais da Rosa, de In dubio pro hell: profanando o sistema penal, Empório do Direito, 2015.

 

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