Enunciado cancela enunciado; uma "jurisdição enunciativa"? Quo vadis?
A coluna poderia se chamar O enunciado "paciente zero" e o antivírus para a febre de enunciados, até porque vou mostrar que fizeram um enunciado que implode os demais.
Mas, vamos ao trabalho.
Não é de agora que venho denunciando a febre dos enunciados, conceitos abstratos elaborados em verdadeiros workshops (ver, por exemplo, aqui e aqui e aqui — neste último texto, Friedrich. Müller entra no debate). Também não sou o único: entre outros, Dierle Nunes, F. Quinaud, Lúcio Delfino, Rosemiro Leal (que diz que estamos em face de uma autocracia enunciativa que estão na Tópica de Viehweg… sem Tópica), Bruno Torrano, Horácio Neiva, Francisco Motta, Diego Crevelin, André Karam Trindade, Igor Raatz, Arthur Ferreira Neto, Eduardo Fonseca Costa, Marcelo Cattoni, Ziel Ferreira Lopes, Rafael Tomas de Oliveira, Thomas Bustamante, Alexandre Morais da Rosa, com quem escrevi recentemente sobre isso (ver aqui). Todos com severas críticas ao enunciativismo. Recentemente, a I Jornada de Direito Processual Civil, realizada no CJF, ao aprovar 107 enunciados, deixou a discussão mais explícita. Esta coluna quer dar um trato científico à discussão. Em homenagem aos participantes, para que, juntos, reflitamos sobre tudo isso e que não consideremos que possa haver vencedores no debate. E nem vencidos. Este é o espírito da coisa.
Vejamos: em um dos tantos workshops de enunciados, foi aprovado um dizendo que “o prazo em dias úteis, previsto no artigo 219 do CPC, aplica-se também aos procedimentos regidos pelas Leis 9.099, 10.259 e 12.153”. Esse enunciado foi muito elogiado (ver, por exemplo, aqui)… Sabem a razão do regozijo? Porque ele revogou o E-165, do Fonaje, segundo o qual “nos Juizados Especiais Cíveis, todos os prazos serão contados de forma contínua”. Antes disso, já havia a contradição do E-165 com o E-45 do Enfam e E-175 do Fonajef.
Na verdade, com tantos “órgãos” fazendo enunciados, logo vão criar um Fórum só para dirimir conflitos de enunciados. Bingo. E haverá “enunciados secundários” (afinal, o Direito logo será um “sistema de enunciados primários e secundários”, não é?) … tipo “enuntiatum posterior derogat enuntiatum priori” ou “enuntiatum specialis derogat enuntiatum generalis”. Aliás, logo, logo algum enuncialista desvelará uma estrutura a la Kelsen, mostrando a nova estrutura do ordenamento enunciativo e o seu hipotético e transcendente “enunciado fundamental”, o Grundaussage, como bem ironiza Eduardo Fonseca Costa. E Danilo Cruz, um piauiense intelectual da cepa, contribui na ironia, dizendo que “se a norma hipotética fundamental que justifique os diferentes enunciados ‘é desrespeitar o CPC’, então está atendido o requisito de Kelsen; já em Hart, o que determina a validade do direito é a compatibilização das regras que determinam obrigações (primárias) com as regras secundárias; logo, obedecer aos enunciados é “regra primária” e desrespeitar o CPC é regra (norma) secundária. Como diria o “grande filósofo contemporâneo” Looney Toonies, “That’s all…”.
Sigo. Parece que setores da doutrina acreditam, mesmo, que os enunciados são fontes (autorizadas) de direito, mesmo que construídos abstratamente em encontros de magistrados e especialistas agindo como se legisladores fossem. Assim, quando há um enunciado contra legem, o “problema” não chega a ser “o enunciado”. Porque basta fazer um… enunciado certo. Ah, bom. Esta parece ser a lógica: dois errados fazem um certo. Entramos de vez na fase dos metaenunciados.
Por vezes devemos desocultar o óbvio. O argumento de que dois errados fazem um certo é facilmente apontado como falacioso por qualquer manual de lógica ou retórica. Mais: não preciso, novamente, apontar à ilegitimidade da empreitada “enunciadora”. O que quero é adicionar novas reflexões ao debate; apresentar uma proposta de especificação de quatro categorias no sentido de que, invariavelmente, os enunciados estarão acomodados em uma delas. Trabalho com esse modelo desde o início dos anos 90 na classificação das súmulas. Assim: quando os enunciados não forem (i) inconstitucionais, (ii) contra legem ou (iii) extra legem, serão… (iv) tautológicos. E, por vezes, são enunciados inseridos nessa quarta categoria que surgem para, vejam só, corrigir aqueles que estiverem inseridos nas outras!
Não precisamos ir longe para que possamos verificar o argumento. Afinal, há um oceano de enunciados: FPPC, Fonaje, Fonacrim, Fonajef, Enfam…. Partamos, neste primeiro momento, pois, da mesma I Jornada do CJF (ver enunciados aqui), e seu E19, aquele que foi elogiado por “cancelar” um enunciado errado ao prescrever a aplicação… do CPC. Sim, o CPC, lei ordinária válida e vigente, “derrotado” por um enunciado.
E podemos ir além. Afinal, esse é o mesmo caso do E37, que, acompanhando o E309 do FPPC, corrige o E47 do Enfam, segundo o qual “o artigo 489 do CPC/2015 não se aplica ao sistema de juizados especiais”. Ora, o que fazem esses enunciados “certos” além de repetir o que diz… o CPC? E podia ser diferente? Mas então é possível aprovar enunciados contra legem? Para depois — e isso não é sempre — precisar fazer outro enunciado dizendo o que diz o CPC para corrigir o que diz um enunciado que contraria… o próprio CPC? De novo, pergunto: não estão indo longe demais os nossos adeptos dos enunciados? Imaginemos um fórum de meteorologistas construindo enunciados dispondo que “a partir de agora, a chuva não molha”. Logo depois, um congresso de especialistas lança outro enunciado, este estabelecendo que, bem, vejam só, “a chuva molha sim”. Parece ridículo, não? Por que no Direito isso pode?
O que quero dizer é que, partindo desse exemplo, nesse ritmo, resta à parte que espera uma decisão fundamentada torcer por uma das duas hipóteses: a) ou que o juiz à frente da causa não tenha participado do workshop do Enfam, ou b) que surja algum enunciado tautológico que diga o óbvio.[1]
Quanto tempo levará até que aprovem um enunciado que diga que “o ordenamento jurídico contempla os enunciados”? Ups. Dei a ideia. A propósito: já existe um enunciado que quase chega lá, o E-380 do FPPC (380).
Do enunciado que acerta… por ser autoimplosivo! O “paciente zero”! Bingo!
Last but not least: Aproveitando a oportuna ocasião, atentemos para o E-324 (FPPC). Ele é uma reprodução de três das seis hipóteses que, preocupado com o problema da discricionariedade, enumerei ao desenvolver minha teoria da decisão.[2] In verbis:
“Lei nova, incompatível com o precedente judicial, é fato que acarreta a não aplicação do precedente por qualquer juiz ou tribunal, ressalvado o reconhecimento de sua inconstitucionalidade, a realização de interpretação conforme ou a pronúncia de nulidade sem redução de texto”.
Pois eu digo que… estão certíssimos. Mais três hipóteses e teríamos as seis de minha teoria (leiam a nota 2 abaixo). Mas eis aí uma questão que surge: não se pode dizer o mesmo de uma lei nova (ou velha também) que seja incompatível com precedente existente? E mais: se o enunciado 324 é correto, ele não pode ser lido ao inverso? Explico: se uma lei já existe(pensemos em algo prosaico como… o CPC) então um precedente só poderia ser feito… nessas três hipóteses! Exato! Exatíssimo! Afinal, essa é uma questão simples de lógica que, veja bem, decorre do… próprio enunciado. Obs: tente colocar a palavra “enunciado” no lugar de “precedente”: eis o busílis. Pragmaticamente, isso já ocorre, bastando lembrar do episódio em que um enunciado revoga outro…!
Parece óbvio — embora o óbvio seja ladino e tenha o péssimo hábito de se esconder — que uma lei valha mais do que um enunciado e mais do que um precedente (o que é isto — o precedente — ver aqui), uma vez que, aprovada uma lei que aponte para outro sentido, este — o precedente — deve se desmanchar no ar, porque ainda temos um Parlamento, embora muita gente ache que o Direito seja o que o judiciário diz que é — em uma espécie de despotismo ou vanguardismo iluminista do Judiciário, apoiado por alguns setores da doutrina, que até vão mais longe: agora, o Direito é também aquilo que os fóruns de enunciados dizem que ele é). Isso é pior do que o velho realismo jurídico. Puro empirismo.
Na verdade, o E-324 implode o “sistema”. Por várias razões: i) porque coloca a leitura da lei a partir do precedente (e logo, isso será estendido ao enunciado), faltando só dizer que se deveria fazer uma interpretação conforme ao precedente; ii) porque o E-324 quer que se leia os precedentes[3] do seguinte modo: um precedente somente não será aplicado quando a lei que dispõe de modo diferente for inconstitucional (e mais as duas hipóteses); iii) ora, se existe o CPC, não seria melhor dizer que esse “conflito” é uma falácia, porque o que vale mesmo é o CPC e, se surgir um precedente que for contra a lei (CPC), o que deve valer é a lei? iv) e tudo por uma questão singela:
as intercorrências acerca da inconstitucionalidade da lei (hipótese 1) não necessitam de um enunciado e tampouco de um novo precedente, porque se a lei for declarada inconstitucional, ela, simplesmente, é fulminada/nadificada ou se for feita uma interpretação conforme (hipótese 2) ou uma nulidade parcial (hipótese 3 prevista pelo E 324), é esse próprio julgamento que será (ou poderá vir a ser) o precedente a ser aplicado. Portanto, o E-324 é auto-implosivo. Simples assim.
Digo tudo isso com todo o respeito e lhaneza acadêmica e doutrinária. Mas isso tinha de ser dito. Para a preservação de um mínimo de autonomia do direito legislado (e da dignidade da legislação, diria Waldrom, aliás citado para elogiar a derrubada de um enunciado por outro!) e de uma “coisa demodê”: a Constituição, que fala em divisão de Poderes e democracia. E, fundamentalmente, lembrar que é da democracia que se está a tratar e não de uma autocracia que, mesmo que a maioria não se dê conta, adota uma espécie de “realismo jurídico tardio” ou, repetindo Rosemiro Leal, uma Tópica sem Tópica.
Post scriptum: interpretando a interpretação: como se mostra um timer "voando"?
Leio que já estão fazendo mesas redondas para aprender a interpretar os enunciados. Engraçado: se os enunciados servem para interpretar a lei e “fechá-la” (afinal, enunciados querem imitar precedentes), um curso sobre isso não seria a confissão de que os enunciados, em vez de clarearem, obscurecem (talvez por contrariem a lei)? Sim, porque se, como dizem, enunciados são apenas interpretações pontuais e não tem caráter vinculativo (ainda bem, não?), então por que precisaríamos de interpretações das interpretações? Tenho uma ideia sobre isso: não seria porque os enunciados, por serem a maioria extra legem, contra legem, tautológicos ou inconstitucionais, passaram a necessitar de um discurso de terceiro nível, para explicar a explicação? Ora, se enunciados servem para dar respostas antes das perguntas, por qual razão se necessita ainda treinar o seu uso (e, por vezes, gastando dinheiro público)? Isso me faz lembrar de repórteres da televisão que querem explicar um fato usando metáforas. Por exemplo, para dizer que um time de futebol está bem de preparo, o repórter diz que o “time está voando”. Só que, em vez de parar por aí — afinal, já metaforizou — o repórter mostra a imagem de um pássaro… voando. Bingo. É a explicação da explicação. Houston, Houston, we have a double problem.
[1] A incidência da categoria de enunciados tautológicos não para por aí. Não é difícil encontrar na lista mencionada outros diversos exemplos que nada mais fazem que, de uma maneira ou outra, repetir texto expresso do CPC de 2015: p.ex., os Enunciados 2, 3, 16, 21… A propósito: não vi nenhum enunciado dizendo, por exemplo, que o artigo 926 tem de ser aplicado pelos juízes e tribunais; também não vi enunciado dizendo que o livre convencimento acabou porque a palavra “livre” foi retirada do artigo 371 e não vi enunciado dizendo que o artigo 10 institui a não surpresa… pois é.
[2] Destaco o verbete “Resposta Adequada à Constituição”, de meu Dicionário de Hermenêutica (ver aqui) que traz esse elenco de critérios de forma sistematizada (isso também está em Verdade e Consenso: “Assim, um juiz somente pode deixar de aplicar uma lei em seis hipóteses: (i) quando a lei for inconstitucional, ocasião em que deve ser aplicada a jurisdição constitucional difusa ou concentrada; (ii) quando estiver em face do critérios de antinomias; (iii) quando estiver em face de uma interpretação conforme a Constituição; (iv) quando estiver em face de uma nulidade parcial com redução de texto; (v) quando estiver em face da inconstitucionalidade com redução de texto; (vi) quando estiver em face de uma regra que se confronte com um princípio, ocasião em que a regra perde sua normatividade em face de um princípio constitucional, entendido este como um padrão, do modo como explicitado em Verdade e Consenso (ver aqui).
[3] Imaginem se o precedente for aquilo que os adeptos das Cortes de Vértice pregam: isto é, precedente é fruto de um ato de vontade, estabelecendo obrigatoriedade aos juízes de piso, independentemente do seu conteúdo… Leiam sobre isso aqui na ConJur, nos links citados acima.
Lenio Luiz Streck é jurista, professor de Direito Constitucional e pós-doutor em Direito. Sócio do escritório Streck e Trindade Advogados Associados: www.streckadvogados.com.br.